O Blog do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes é um dos veículos de comunicação em que circulam informações, produção de conhecimento, experiências clínicas e de pesquisa de seus diferentes membros. A interlocução com o público, dentro e fora do Departamento, é uma maneira de disseminar a troca no campo da Psicanálise e possibilitar a ampliação do alcance das reflexões em pauta. Equipe do Blog: Fernanda Borges, Gisela Haddad, Gisele Senne de Moraes, Lucas R. Arruda e Paula Lima Freire.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Quem tem medo da descriminalização do aborto?

Neste mês vimos o avanço na Argentina da proposta de descriminalização do aborto. Veja a seguir um texto que discute este acontecimento e o tema do aborto articulados a outras questões como saúde pública, saúde mental e as representações psíquicas e sociais acerca da mulher.


Quem tem medo da descriminalização do aborto?
                                                                                             Helena Canto Gusso, Julia Fatio, Paula Rojas, Renata Conde (1)


Em 1970, Simone de Beauvoir escreveu um manifesto na França em favor da descriminalização do aborto. No texto, assinado por ela e mais 342 mulheres, se lia: Um milhão de mulheres na França têm um abor to a cada ano. Condenado ao sigilo, eles têm acontecido em condições perigosas, sendo que este procedimento, quando realizado sob supervisão médica, é um do s mais simples. Essas mulheres são vela das em silêncio. Eu declaro que sou uma delas. Eu tive um aborto. Assim como nós exigimos o acesso livre ao controle de natalidade, exigimos a liberdade de ter um aborto.” Intitulado como “Manifesto das 343”, a declaração causou grande escândalo no país. A palavra aborto, até então tabu nos meios de comunicação, passou a ocupar os noticiários e rapidamente o movimento foi nomeado pelos conservadores de “Manifesto das 343 Vagabundas”. Quatro anos depois, em 1975, o aborto foi legalizado na França. Recentemente , presenciamos também a descriminalização do aborto no Uruguai, Polônia, Irlanda e agora a Argentina avança nessa direção, com sua aprovação no Câmara dos Deputados.

No Brasil, o aborto segue como tema em disputa. Grupos religiosos e conservadores tentam pautar o debate para que o Estado incorpore suas crenças e morais nesse assunto. A partir da PEC 181 buscam tornar crime toda e qualquer forma de interrupção da gravidez. Por outro lado, há um longo trabalho de mulheres, movimentos feministas e organizações em defesa de seus direitos. Tivemos avanços concretos, como a legalização do aborto em casos de anencefalia, somando-se aos outros dois casos em que já era permitido – quando a gravidez representa um risco para vida da mulher ou é resultante de um estupro.

Ainda assim, estima-se que no Brasil 5,3 milhões de mulheres já tenham abortado ilegalmente. Só em 2014 foram contabilizadas 190 mil internações no SUS para curetagem. É a segunda maior atividade dos obstetras, sendo a primeira a realização de partos. Segundo pesquisas da UNB e UERJ a maioria delas tem entre 20 e 29 anos, vivem em relacionamento estável (70%) e têm pelo menos um filho. 

Quanto às suas crenças, 65% disseram ser católicas e 25% protestantes. Mulheres negras tem 2,5 mais chances de morrer durante um aborto do que as mulheres brancas, em sua maioria são provenientes de classes sociais mais pobres e ficam excluídas do acesso a procedimentos seguros. Também diante de aborto mal-sucedido, estudos mostram que elas têm menos acesso a serviços de saúde, o que aumenta o risco de vida.

A realidade brasileira expressa, portanto, a urgência em tomar o debate da legalização do aborto não como uma questão moral, mas de saúde pública que envolve atravessamentos de raça, classe e gênero. “Educação sexual para decidir; Contraceptivos para não engravidar; Aborto legal e seguro para não morrer” foi o mote da luta argentina.

Os movimentos feministas argentinos têm pautado fortemente o debate sobre osdireitos das mulheres e nos últimos treze anos fizeram uma árdua campanha pelo aborto legal, com debates semanais em Buenos Aires e nas províncias, construindo um amplo diálogo com a população. Segundo Flávia Biroli este trabalho de base, feito de modo estratégico e articulado, foi central para a compreensão de que a cidadania das mulheres é um valor democrático e é dever do Estado garantir sua integridade física e psíquica. O movimento #NiUnaMenos, surgido em 2015, foi também parte decisiva deste processo ao mobilizar milhares de argentinas e argentinos a lutar contra o feminicídio e pelos direitos das mulheres.

Outro ponto importante à descriminalização na Argentina, anterior e fundamental para a organização dos movimentos feministas atuais, é a longa história de resistência no país frente às violências de Estado. O encontro das mães e das avós de maio com as secundaristas, a cena de tantas jovens com pañuelos verdes amarrados em seus pescoços, braços e mochilas, ilustram que a transmissão da resistência tem a potência de quebrar e transformar o que poderia ser apenas um ciclo de dor e sofrimento. As mães e avós de maio ao manterem viva a memória das violências cometidas na ditadura argentina abrem caminho para que novas gerações de mulheres não aceitem a violência como destino e se apropriem do direito sobre seus corpos. Afinal, sabemos desde Freud que aquilo que não é recordado e elaborado, atualiza-se e retorna como compulsão à repetição.

O reflexo dessas articulações se evidenciou nos discursos pronunciados na Câmara dos Deputados da Argentina para defender a descriminalização do aborto: “ Se a gravidez é uma contingência, o desejo tem que ser a norma para decidir se queremos ou não ser mães. Não o desejo de outros, nem o parecer de um juiz.”; “ (...) a diferença entre o aborto voluntário e o involuntário é o desejo, e o que não queremos [sociedade argentina] discutir é que nós mulheres tenhamos direito a exercer nosso desejo, nossa liberdade.” 

Freud, em seu texto A Moral Sexual Civilizada, escrito em 1908, aponta para a moral sexual dupla. Segundo ele, a própria sociedade não acredita que seus preceitos possam ser obedecidos, e que a experiência também mostra que as mulheres são verdadeiros instrumentos dos interesses sexuais da humanidade. Freud afirma que “Uma das óbvias injustiças sociais é que os padrões de civilização exigem de todos uma idêntica conduta sexual, conduta esta que pode ser observada sem dificuldades por alguns indivíduos, graças às suas organizações, mas que impõe a outros os mais pesados sacrifícios psíquicos. Entretanto, na realidade, essa injustiça é geralmente sanada pela desobediência às junções morais.” (2) Não será sobre isso, que as mulheres na Argentina estão dizendo ao discursarem no Congresso em Buenos Aires que “O aborto existiu, existe e existirá! Legislem vocês o que quiserem” ?

Sobre esse assunto, a psicanalista argentina Iresis Greisis comenta que o tema do aborto levanta uma questão para a sociedade que é a separação entre a figura da mulher e da mãe. Para ela há um esforço em justamente manter a representação da mulher como mãe e, nesse sentido, o aborto é um golpe nessa crença, visto por muitos como um atentado à figura da mulher como mãe santa. Segundo Djamila Ribeiro, a maternidade compulsória implica nisso, uma construção social da feminilidade na qual a maternidade se torna o principal destino para a mulher, destino este tomado como natural. A maternidade, neste sentido, seria também uma forma de controlar os corpos das mulheres. As ditas “vagabundas” seriam então aquelas que recusam a representação de si como mães? Estaríamos diante da dupla representação da mulher como santa ou puta?

Nesse sentido, a conquista argentina opera uma disjunção entre mulher e mãe, o que gera efeitos nas próprias significações dadas à experiência aborto. Em um texto autobiográfico, Anne Ernaux comenta que em nossa sociedade o fato é que acabamos nos calando sobre a real experiência do aborto. Costumamos associá-lo a experiências traumáticas, de culpa, da qual uma mulher raramente se recuperaria. Ora, a generalização é o oposto da escuta analítica, e nesse momento lembramos de nossas hermanas argentinas: “(...) não queremos governar sobre os homens, queremos governar sobre nós mesmas, queremos governar sobre o nosso corpo, queremos governar sobre o nosso desejo, queremos governar sobre os nossos sonhos.”(Gabriela Cerruti, deputada Argentina)


Notas bibliográficas
2) FREUD, S. Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna (1908). In: O delírio e os sonhos na “Gradiva”, Análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos (1906-1909). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2015 (Obras completas, volume 8).



[1]Helena Canto Gusso - acompanhante terapêutica, psicanalista e aspirante a membro do Departamento de Psicanálise; Julia Fatio Vasconcelos - acompanhante terapêutica e psicanalista; Paula Grimberg Rojas - psicanalista e acompanhante terapêutica, formada no Departamento de Psicanálise; Renata Conde - psicanalista e professora da Escola de Psicanálise de São Paulo; e integram o Grupo de Estudos e Trabalho em Psicanálise e Feminismo, grupo criado em 2015, com a proposta de pensar diálogos e tensões entre feminismo e psicanálise, a partir de diferentes espaços como rodas de conversa, debates e produções teóricas.