O Blog do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes é um dos veículos de comunicação em que circulam informações, produção de conhecimento, experiências clínicas e de pesquisa de seus diferentes membros. A interlocução com o público, dentro e fora do Departamento, é uma maneira de disseminar a troca no campo da Psicanálise e possibilitar a ampliação do alcance das reflexões em pauta. Equipe do Blog: Fernanda Borges, Gisela Haddad, Gisele Senne de Moraes, Lucas R. Arruda e Paula Lima Freire.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Marielle e Anderson - A voz que fica quando um corpo vai

"O assassinato de Marielle e Anderson causou grande comoção. Vejam a seguir uma breve reflexão do grupo de pesquisa e trabalho do Departamento de Psicanálise do sedes Faces do Traumático, escrita pelas psicanalista e integrantes deste grupo  Flávia Steuer, Marina Singer e Myriam Uchitel sobre este acontecimento".


Marielle e Anderson
A voz que fica quando um corpo vai

Comovidas pelo cruel assassinato de Marielle Franco, vereadora, mulher, negra,  mãe, ativista defensora dos direitos humanos e de Anderson Gomes, cidadão brasileiro, trabalhador, pai de família, também presente como tantos outros que morreram por exercer  sua cidadania, buscando uma sociedade mais livre, justa e solidária,  tratamos de pensar como resgatar da morte do corpo, a força da alma,  a força das palavras, dos  atos e gestos. Muito já foi dito e há ainda muito a dizer na tentativa de contornar, rearranjar os cacos e estilhaços que sobram dessa cena.

Surpresa, sobressalto, bloqueio, paralisia, ameaça à vida: são nomes que definem a condição do traumático. Fragmentação culpa, raiva, impiedosa interrupção da existência. São também efeitos da quebra.

O desmentido aprofunda a ferida no tecido social esgarçado. Muitas Marielles e Andersons se somam nas ruas, enquanto nas redes sociais boatos circulam na tentativa perversa de desmentir, de desqualificar as vítimas e justificar a barbárie.

Calar uma voz com rajadas  fará o tiro sair pela culatra.

Parafraseando o crítico dramaturgo de pós guerras, Brecht sentencia: “aquele que não conhece é simplesmente um ignorante, mas aquele que conhece e diz que é mentira, este é um criminoso”.

Quando pensamos no trauma como interrupção e na  ética psicanalítica como enlace, nos perguntamos: como propiciar o enlace como psicanalistas e cidadãos?

Precisamos responder ao susto, à perplexidade, à dor, ao sofrimento humano, com palavras e ações, com construção de história, significando e resignificando fatos para que não se instalem lacunas coletivas e para que possamos
 organizar respostas sociais.


Grupo de trabalho e pesquisa: Faces do Traumático
por Flávia Steuer, Marina Singer, Myriam Uchitel

terça-feira, 20 de março de 2018

Release do livro - A psicanálise e os lestes - vol. 1

No dia 3 de março aconteceu um evento inédito, Questões Sociais e Políticas na História da Psicanálise ontem e hoje, organizado pelo Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, em que foram apresentados aspectos da obra de autores que ficaram à margem ou foram expurgados da história oficial da Psicanálise por refletirem posiçoes sociais e políticas que se opunham ao status quo de suas épocas. Otto Gross, Sabina Spielrein, Frantz Fanon e Erich Fromm puderam retornar e impressionar pela sua atualidade. Na ocasião foi lançado o livro A psicanálise e os lestes (vol.1) organizado por Paulo Sérgio de Souza Junior que participou do evento. 
    


Confira agora o release do livro escrito pelo organizador:

A psicanálise e os lestes - vol. 1
Editora Annablume (2017) – 217 pág.
Organizador: Paulo Sérgio de Souza Jr.
Prefácio: Paulo Schiller


A psicanálise e os lestes - vol. 1 é o volume inaugural de um projeto que tem como objetivo colocar em circulação, no Brasil, reflexões de autores de diversos países e orientações que escrevem sobre as suas clínicas, bem como sobre a transmissão e as variadas inscrições da psicanálise em diferentes contextos linguísticos, geográficos, políticos e culturais. A partir da escrita e da recolha dos efeitos da comunicação “O analista e os bárbaros” (2014) — escrita pelo organizador, apresentada em colóquio promovido pela Association de Psychanalyse Encore e presente neste volume —, surgiu a iniciativa deste projeto, dado o reconhecimento de certa carência, na literatura psicanalítica em português, de trabalhos oriundos de regiões nas quais, muitas vezes, ou o brasileiro desconhece haver uma produção local rica no campo da psicanálise, como um todo; ou conhecem-se apenas alguns nomes tidos como importantes sem que, no entanto, haja efetivo acesso sequer aos trabalhos por eles realizados. Com isso, acaba-se muitas vezes restringindo-se a leituras, para além de traduções realizadas de idiomas canônicos, apenas de originais escritos em francês, inglês e espanhol (idiomas mais comumente acessíveis aos leitores da área no país); trabalhos escritos em idiomas menos próximos, por sua vez, restando infelizmente um tanto quanto desconhecidos.

Os textos versam, dentre outros temas, sobre: a tradução da psicanálise para línguas tidas como periféricas; a história da psicanálise em países do Terceiro-Mundo; a relação entre a clínica psicanalítica e o contexto político, econômico e religioso de países pouco presentes no repertório do leitor de psicanálise brasileiro; a clínica com imigrantes e o papel dos idiomas no exercício da psicanálise; as incidências da psicanálise em áreas afins, bem como de áreas afins na psicanálise.  As traduções são sempre diretas dos originais em que foram escritos os capítulos e são acompanhadas de um rico conjunto de notas de tradução e edição — no vol. 1, além do organizador, participaram como tradutores: Claudia Berliner (psicanalista, tradutora e cientista social) e Renata Dias Mundt (tradutora e professora de língua alemã para refugiados).

Neste primeiro volume, que se abre com uma apresentação escrita pelo organizador — aventando a pluralização presente no título (lestes), e seu possível interesse para a psicanálise —, Paulo Schiller (psicanalista e tradutor do húngaro, do inglês e do francês) apresenta, em seu prefácio, uma reflexão que convida o leitor a problematizar a dicotomia Leste/Oeste, colocando em cena a Hungria da Europa Central e as movências possíveis em conceitos supostamente estanques como “Oriente”, “Ocidente” e “língua materna”.

Em “A possibilidade de uma psicanálise lacaniana em língua árabe”, Zoubida Bessaih | زوابيدة بسايح (psicanalista argelina que clinica na cidade de Argel) indaga-se a respeito da prática psicanalítica de orientação lacaniana em meio à espécie de “diglossia interna” vivida pelos povos árabes, em geral (entre o árabe clássico e o dialetal), assim como diante das especificidades linguísticas do árabe falado na Argélia.

Em “O intraduzível entre os ecos cálidos e mortíferos de uma mesma língua”, Janine Altounian | ժանին ալթունյանը (ensaísta e tradutora, membro da equipe coordenada por Jean Laplanche para a tradução das obras completas de S. Freud para o francês) procura elaborar sua entrada na psicanálise através do texto freudiano, articulando aí a sua herança armênia e o seu ofício de tradutora, após a primeira visita que realizou à Turquia — terra de onde haviam fugido seus pais, quando do genocídio de 1915.

Em “Psicanálise na Rússia”, Renata Udler Cromberg (psicanalista, membro do Depto. de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae) apresenta uma leitura do percurso histórico da psicanálise na Rússia, desde os primórdios até o final da União Soviética. A partir de sua pesquisa sobre a obra de Sabina Spielrein (de cuja obra completa é responsável pela organização e publicação em português brasileiro), a autora desdobra o papel singular da psicanálise ao longo do Regime, elaborando um texto rico e detalhado que perpassa diversos autores, instituições e épocas do país.

Em “Sobre a palestra do Dr. Skalkovsky” — um dos últimos textos de psicanálise publicados da URSS antes da condenação do freudismo, em 1931, e o único texto concebido pela autora em sua língua materna, o russo —, Sabina Spielrein | Сабина Шпильрейн [1885-1942] (uma das pioneiras da psicanálise; membro didata e do corpo diretivo da Sociedade Psicanalítica Russa) relata a conferência do referido médico, entremeando seus pareceres a respeito do que é ali tratado e suas experiências tanto com a doutrina freudiana, em geral, quanto com o atendimento psicanalítico em contexto ambulatorial, em específico.
Em “De língua a língua na linguagem e, então, à assunção da fala”, Katerina Malichin | Κατερίνα Μαλίχιν (teóloga, psicóloga clínica e psicanalista em Elliniko [Grécia]; membro da Associação Psicanalítica ateniense “Freud-Lacan”) narra sua experiência com o atendimento de imigrantes, tanto em consultório particular quanto fora, quando muitas vezes é necessário o auxílio de intérpretes — em missões junto aos Médicos do Mundo, por exemplo, em barcos de transporte de refugiados, bem como noutras situações de “clínica dos extremos”.

Por fim, em “Alucinando o outro: fantasias derridianas sobre a escrita chinesa”, Chang Han-Liang | 张汉良 (professor emérito de literatura comparada da Universidade Nacional de Taiwan, catedrático da Universidade de Fudan [Shangai] e membro honorário do Círculo Linguístico de Praga) propõe uma leitura das oscilações, ao longo da história, a respeito do estatuto da língua chinesa nas teorizações realizadas por estrangeiros (Descartes, Leibniz, Hegel, Fenollosa, Eisenstein, Derrida); questiona, assim, as visadas orientalistas em relação à realidade linguística na China e aos seus possíveis desdobramentos.

Paulo Sérgio de Souza Jr. é psicanalista, linguista e tradutor. Bacharel e doutor em linguística pelo IEL/Unicamp, pós-doutoramento no  Depto. de Ciência da Literatura da UFRJ. Selecionado pelo Grupo Coimbra (Bélgica, 2009), atuou como professor-associado junto ao Depto. de Língua Romena e Linguística Geral da Universidade Alexandru Ioan Cuza – UAIC (Iași). Em 2013, pelo programa “Univers”, foi tradutor residente do Instituto Cultural Romeno – ICR (Bucareste). Organizou o volume Psicanálise e mal-estar na Universidade (Mercado de Letras, 2013; coorg. N. Leite e E. Gasparini) e é responsável pelas traduções e notas de, entre outros: O amor da língua, de J.-C. Milner (Ed. da Unicamp, 2012); A psicanálise é um exercício espiritual?, de J. Allouch (Ed. da Unicamp, 2014, cotrad. M. R. S. Moraes); Os olhos da alma, de J.-C. Rolland (Blucher, 2016); O autista e a sua voz, de J.-C. Maleval (Blucher, 2017); A incompletude do simbólico (Ed. da Unicamp [no prelo]). Organizou, com M. Checchia e R. Alves Lima, e traduziu o primeiro volume da edição brasileira das obras de Otto Gross (Editora Annablume, 2017): Por uma psicanálise revolucionária.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Cassandra França resumo de seu ótimo livro "Nem sapo, nem princesa: terror e fascínio pelo feminino"

De que maneira a Psicanálise pode participar do debate sobre o conceito de gênero? 

Confira no resumo que Cassandra França faz de seu ótimo livro "Nem sapo, nem princesa: terror e fascínio pelo feminino" a convite do Blog do Departamento



Livro: “Nem sapo, nem princesa: terror e fascínio pelo feminino
Editora Blucher (2017) – 192 pág.
Autora: Cassandra Pereira França
Apresentação: Renato Mezan
Prefácio: Miriam Chnaiderman

Abordar a temática da gênese da identidade de gênero parece ser a princípio uma contra-ordem num momento em que a luta pelo fim da homofobia e pelo direito dos cidadãos à diversidade sexual é uma das principais bandeiras em nossa sociedade. Todavia, abrir espaço para questionamentos intra e interdisciplinares é fundamental nesse momento. Assim, é preciso que nos perguntemos, seriamente, de que maneira a Psicanálise poderia participar, de modo ético, do debate acerca do conceito de gênero, que é um conceito sociológico, enquistado nos processos de subjetivação produzidos pela cultura e que acompanham os movimentos da história e da política.
Acreditamos ser necessário que a Psicanálise possa reconhecer a necessidade de fazer um inventário do seu instrumental teórico/técnico para lidar com a mudança sócio-cultural, principalmente no campo da sexualidade, ocorrida ao longo de um século de sua existência. A Psicanálise precisa se pronunciar e apagar os rastros deixados por Freud, desde os Três Ensaios (1905), onde ficou subentendido que a identidade sexual articulava-se com a eleição de objeto, o que enlaçou de modo contraditório, heterossexualidade, identidade e Superego. Apesar do devir da clínica psicanalítica ter desmanchado essa associação, mostrando que a presença de um Superego bem estruturado nos mais distintos aparatos psíquicos era completamente independente das eleições homo ou heterossexuais das pessoas, no campo clínico, esse postulado freudiano desencadeou efeitos nefastos: durante muito tempo, deixou margem para que algumas correntes teóricas vinculassem a perversão adulta aos transtornos de gênero e à eleição homossexual de objeto[1].
O livro “Nem sapo, nem princesa: terror e fascínio pelo feminino” coloca em discussão alguns pilares conceituais do pensamento psicanalítico, chamando a atenção do leitor para a precocidade da identidade de gênero, atestada tanto na literatura, com os inúmeros casos clínicos estudados, entre outros, por Stoller (1982[2], 1993[3]), Graña (1996)[4] e Bleichmar (2006)[5], quanto pela observação clínica, através dos relatos de pacientes e familiares que apontam o terceiro ano de vida dos meninos como a época em que a identidade de gênero parece estar visivelmente configurada. É indispensável ouvir o sofrimento psíquico de uma criança aprisionada pelos ditames da sexualidade normativa, para que se possa, então, vislumbrar, a um só tempo, tanto a fragilidade do clássico modelo edipiano, quanto a necessidade da Psicanálise em reconhecer que, como dizia Silvia Bleichmar[6]: “a identidade de gênero antecede a eleição de objeto e se inscreve no núcleo do Eu, antes mesmo que a criança reconheça sua correlação com a genitalidade”.
Um aspecto ilustrativo no material clínico estudado é a maneira em que o desejo de ser mulher não tem, a princípio, sua origem no desejo sexual pelo homem, antes pelo contrário, é um desejo bordejado por um grande desprezo pela genitália masculina e por tudo que um homem pode representar em nossa sociedade.  Tampouco é o efeito do desenlace de uma eleição genital antecedida pelo sepultamento do complexo de Édipo ou pelas conseqüências da angústia de castração. O desejo contundente de se travestir de mulher expressa nesse caso e, em muitos outros, a fascinação narcisista pelo corpo feminino – ao qual não se pretende possuir desde uma posição masculina – mas sim, apenas envolver-se nele, em uma tentativa desesperada de proteção da integridade egóica,
Enfim, a proposta do livro é a de colocar na roda dos debates psicanalíticos, fatos clínicos capazes de evidenciar que as variações na identidade sexual não se reduzem ao posicionamento do sujeito diante da castração, e sim aos complexos modos de combinação entre os fantasmas que articulam o desejo sexual e as formas de organização dos atributos de gênero a cada época, em determinada sociedade. Por reconhecer quão parco é o nosso conhecimento sobre as identificações primárias, o convite ao leitor é o de acompanhar a plasticidade inscrita em movimentos identificatórios nos primórdios da constituição psíquica, e que ilustram tão bem a riqueza das identificações múltiplas, em permanente movimento de ressignificação do desejo, e a limitação dos dualismos estanques presentes nas categorias enrijecidas de masculinidade e feminilidade.




[1] Bleichmar, S. (2010) El desmantelamiento de la subjetividad: estallido del Yo. Buenos Aires: Topía Editorial.
[2] Stoller, R. (1982) Extrema feminilidade em meninos: a criação da ilusão. In: A experiência transexual. Rio de Janeiro: Imago Editora.
[3] Stoller, R. (1993) Feminilidade acentuada em meninos: uma ênfase nas mães. In: Masculinidade e feminilidade: apresentações do gêneroPorto alegre: Artes Médicas.
[4] Graña. R. (1996) Além do desvio sexual: teoría, clínica e culturaPorto Alegre: Artes Médicas.
[5] Bleichmar, S. (2006) Paradojas de la sexualidad masculina. Buenos Aires: Paidós.
[6] Bleichmar, S. (2000) El transexualismo infantil, un modo restitutivo de identificación. Actualidad psicológica, 25 (281), p. 3.