O Blog do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes é um dos veículos de comunicação em que circulam informações, produção de conhecimento, experiências clínicas e de pesquisa de seus diferentes membros. A interlocução com o público, dentro e fora do Departamento, é uma maneira de disseminar a troca no campo da Psicanálise e possibilitar a ampliação do alcance das reflexões em pauta. Equipe do Blog: Fernanda Borges, Gisela Haddad, Gisele Senne de Moraes, Lucas R. Arruda e Paula Lima Freire.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Depois de 11 de agosto

No post de hoje Cida Aidar escreve sobre o ato  de 11 de agosto no Largo São Francisco em prol da democracia. Um momento de esperança e de exaltação de Eros. Cida busca destacar o que representou o ato do dia 11 e nos convida a pensar sobre o futuro, sobre o depois.

  

DEPOIS DE 11 DE AGOSTO

A festa foi bonita, pá!

Tive que começar assim, abrasileirando o verso de Chico Buarque, para descrever em poucas palavras o que foi a manifestação pela Democracia e pelo Estado de Direito Sempre! Expressão comum, suprapartidária, que uniu gregos e troianos e pretos e brancos e indígenas e ricos e pobres numa manifestação que deixou bem claro que não vamos nos curvar aos golpes e autoritarismos do fascismo, dessa extrema-direita canhestra, tosca, desses milicianos que nos governam até o fim deste ano – no máximo, esperamos.

Os movimentos, as associações, as universidades e todas as pessoas que estavam nesse onze de agosto de 2022 dentro e fora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), que ocuparam não só o Largo São Francisco, mas tantos outros espaços pelo país afora onde a Carta foi lida. Os mais de um milhão de assinantes da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros são uma amostra expressiva que demonstra que a sociedade civil não vai aceitar calada os desmandos dos fascistas que tomaram nosso país ao ganharem as últimas eleições.

Como sabemos, esse documento foi inspirado num anterior, de 1977, em plena ditadura civil-militar. A Carta aos Brasileiros, escrita pelo jurista e professor da Faculdade de Direito Goffredo da Silva Telles Junior, também foi lida numa manifestação que conclamava à reconstrução da democracia no país. Seguiram-se, depois, no início dos anos 1980, o movimento pelas Diretas Já e a formação de uma Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição de 1988, vigente em nosso país.

Bom lembrar que nossa democracia é claudicante e jovem e precisa de muita construção para ser de fato uma democracia do povo, para o povo. Há muito a fazer! Como se diz, estamos na luta, a luta continua. Importante retomar a história, porque nesse onze de agosto de 2022 me chamou a atenção que havia poucos jovens, ao menos no Largo São Francisco, onde estive. É possível que se deva à apatia que nos assola diante da falta de ideais, à melancolia que impera. Mas não podemos parar de sonhar. Verdade que os jovens também se manifestam de outra forma – na balada, no pancadão, no baile funk, na street dance e nos skates da vida. Ao mesmo tempo, é fundamental que quem viveu a ditadura civil-militar participe dizendo “Nós não esquecemos”. Lembro muito bem do que foi viver parte da infância, adolescência e início da fase adulta num regime pautado pelo terror de Estado. Viver com medo. Eu me lembro muito bem e farei tudo o que estiver ao meu alcance para que isso não se repita.

Daí o título que escolhi para estes comentários. Sim, foi um belo dia, com alguns discursos excelentes e emocionantes, mas temos que seguir na luta. Temos o sete de setembro e o dois de outubro e a vida inteira pela frente. Como seguimos? Como podemos reimaginar o mundo?

Com a arte, certamente. Nossos queridos mestres-poetas-músicos Caetano, Chico e Gil – só para citar alguns – têm nos embalado, do alto de seus oitenta anos, com vida e samba, mostrando que é preciso e possível andar com força e fé, reinventando-se sempre.

E nós, qual nossa intervenção como psicanalistas? Nosso Departamento está localizado no Sedes, instituição com grande tradição de luta política – e que foi bem representado na manifestação do dia onze. Além das participações em diferentes grupos militantes dentro e fora do Instituto, há que reconhecer nossa atividade clínica – seja onde for – como atividade fundamental para a promoção e construção da civilização contra a barbárie, que insiste.

Inconsciente aberto às inflexões da história, da cultura, dos movimentos imprescindíveis da sociedade em que vivemos. Da luta antirracista, da afirmação de nossos povos originários, de seu direito à terra, que foi e é sua desde sempre, ao direito de ser quem se quer ser, seja L ou B ou G ou T… Cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é. A escuta psicanalítica só pode ser assim chamada se estiver aberta ao outro, à alteridade, à associação livre que flui no encontro analítico – no divã ou na praça. Entretanto, como disse Isildinha Batista num evento em nosso Departamento, a clínica não é lugar de militância, mas de abertura da escuta e por isso é transformadora. Essa é nossa contribuição maior, em nosso métier de analistas, para que a transformação aconteça, para que o sujeito desejante se imponha à compulsão repetidora e para que Eros se enrosque em Tânatos, impedindo a destruição.

Assim, quando um fascista genocida grita “Viva a morte”, nós respondemos com todas as forças: “Viva a vida, a liberdade, a criatividade, a empatia, a solidariedade”. Para que isso aconteça, para que a gente possa reexistir, com diferença e diversidade, com a democracia que de fato nunca tivemos – do povo, para o povo –, gritamos com todas as forças: “SEGUIMOS SONHANDO!”.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A Supressão do outro e o Necromovimento

Como explicar um assassinato a queima roupa num clube privado de São Paulo ou um atropelamento no estacionamento ao lado de uma 'balada' num bairro 'nobre' da cidade? Ivan Martins discute a violência como fenômeno que acompanha a história do Brasil e agora adentra o campo social e cultural da classe média. 

 

A SUPRESSÃO DO OUTRO E O NECROMOVIMENTO

Desde quando nos tornamos uma nação de assassinos? Embora retórica, a pergunta poderia ser respondida de forma simples: desde sempre.

Os portugueses chegaram às nossas praias em 1500 para assassinar uma quantidade incalculável de homens, mulheres e crianças indígenas. Foi uma guerra de extermínio pela terra que, a rigor, ainda não acabou. Os mesmos portugueses trouxeram para o matadouro da escravidão 4,8 milhões de africanos, com a ajuda inestimável, a partir do século XIX, da elite econômica e política brasileira. Depois disso houve o genocídio da Guerra do Paraguai, o massacre em Canudos e incontáveis episódios de violência contra o povo rebelado. No século XX, à ditadura do Estado Novo sucedeu-se, depois de breve intervalo, a ditadura militar de 1964, exemplar na tortura e na eliminação física de opositores. Durou mais de 20 anos. Desde a redemocratização, o foco da violência mudou do político para o social. Em plena democracia, mata-se informalmente, aos milhares, os pobres e os pretos, aqueles que foram empurrados pela violência econômica para a marginalidade ou têm a má sorte de viver na proximidade dela, nos guetos periféricos explorados pelo tráfico e pelas milícias. Também se matam mulheres a torto e a direito no Brasil. O feminicídio é endêmico.

Recentemente, já na terceira década do século XXI, assistimos chocados e impotentes, mas não inteiramente surpresos, à escalada da violência em nosso próprio meio, os redutos sociais e culturais da classe média branca.

No dia 13 de agosto, sábado passado, um rapaz de 20 anos foi atropelado de forma selvagem e premeditada na frente de uma casa noturna no Itaim, bairro chique de São Paulo. O homem que jogou o carro sobre Fernando Palomino Zambori, depois de xingá-lo na saída do estacionamento, dirigia uma Land Rover Velar, que custa 570 mil reais. Ele está foragido e Fernando está morto. Semanas antes, ocorrera a morte absurda do militante petista Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, assassinado a tiros em sua festa de aniversário por um bolsonarista tresloucado. Entre um crime e outro, houve, pelo que me lembro, a morte de um homem negro, pai de três filhos, baleado por um “colecionador de armas” em Mogi Guaçu, interior de São Paulo, depois de raspar no carro dele e tentar fugir. O assassino é empresário e tinha três armas “de colecionador” registradas na polícia. Ocorreu, também nesse ínterim, a morte de um homem de 27 anos na cidade de Jacareí, em São Paulo, depois que um menino de 8 anos disparou acidentalmente a arma “de colecionador” que estava solta no banco de trás do carro, carregada com 12 cartuchos.

A grande novidade no cortejo atual da barbárie é o contexto político. Existe um líder de massas - e uma ideologia abraçada por multidões de eleitores - que legitima o uso indiscriminado de armas e a prática generalizada da violência. Não estamos diante de explosões pessoais de passionalidade e agressividade. Não se trata mais de atos esporádicos e aleatórios de violência. Está em marcha um necromovimento de caráter nacional. Formou-se ao redor da extrema direita, tendo Jair Bolsonaro como centro, uma cultura de ódio e supressão do “outro” que atrai e mobiliza milhões de brasileiros e brasileiras. O “outro” pode ser petista, bandido, corrupto, feminista ou umbandista. Pode ser também o cara que raspou no meu carro ou está empatando minha saída do estacionamento. O certo é que, posto na posição de “outro”, a vida dele não vale mais nada. Pum! Está morto.

Fala-se em polarização, mas não é disso, absolutamente, que se trata. A violência física e simbólica parte apenas de um lado. A mentira organizada de forma industrial nas redes sociais vem de um lado. A recusa explícita do jogo democrático e a ameaça constante de ruptura vem de um lado. Existem dois candidatos disputando com chances a presidência, mas só um deles ameaça incendiar o país se perder a eleição. Onde está o outro polo da polarização?

Para nosso imenso azar, essa coisa fascista – porque é disso que se trata, o culto ao líder, à violência e à morte – infiltrou-se na cultura e fundiu-se, como nos Estados Unidos, a aspectos da religiosidade popular, como a defesa da família. Nesta eleição, temos líderes cristãos associados de forma fervorosa (e paradoxal) a uma forma de governar cujo lema poderia ser “mate e deixe morrer”. Estão aí os quase 700 mil mortos da pandemia e as vidas inocentes perdidas nas ações policiais nas favelas. Elas não nos deixam mentir.

Cabe perguntar, a esta altura, o que há de errado com a nossa cultura para permitir tais crimes, e a resposta, novamente, seria simples: quase tudo.

A nossa alegria e a nossa cordialidade convivem sem constrangimento com a indiferença social em relação à miséria e à sorte dos excluídos. Nossa famosa afetividade anda de braços dados com o racismo e a homofobia. Somos o país que mais mata homossexuais e jovens negros, e o abismo de classes que criamos é único no mundo, verdadeiramente espetacular.  O cimento que mantém de pé essa construção social obscena é a violência, em suas diversas formas: econômica, de classe, racial, policial e, agora, política.

O bolsonarismo é um descaramento do que somos como sociedade, uma espécie de explicitação cínica e visceral. Ele emerge numa crise global do capitalismo – a mesma crise que levou Donald Trump ao poder nos EUA e turbinou a extrema direita europeia – e talvez submerja com ela, se tivermos sorte. Mas os bolsonaristas permanecerão entre nós, lembrando que a única alternativa ao fascismo e à necropolítica é o aprofundamento da democracia e a inclusão social dos milhões de brasileiros que vivem à margem da prosperidade e dos benefícios da civilização.

 

Ivan Haro Martins é psicanalista, jornalista e autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

O sentido de um tempo: para sempre e nunca mais

Inspirada pela visita ao Museu de Arte Osório César, sediado no Complexo Juqueri, nossa colega Soraia relembra suas experiências no campo da saúde mental nos anos de 1984/5, período em que o Brasil passava pelo processo de redemocratização. Nesse belo texto a autora nos fala de ações voltadas aos direitos humanos, de memória e da restauração da possibilidade de sonhar.  

 O SENTIDO DE UM TEMPO: PARA SEMPRE E NUNCA MAIS

Soraia Bento


Nos longínquos anos 1984/5 um grupo de jovens universitários que cursavam Psicologia e Medicina, reuniu-se nos porões da FMUSP com um desejo vivo de refletir sobre os caminhos que a área da saúde mental poderia percorrer em um Brasil sob processo de redemocratização. Éramos muito jovens, tínhamos nascido sob as garras da ditadura civil militar e alimentávamos o sonho de viver em liberdade de pensamento com garantia de direitos na diferença. Essa era a perspectiva que orientava nossos olhares, nossos autores estudados e nosso desejo de iniciarmos uma prática clínica. A partir de um relatório da Comissão Teotônio Vilela por Direitos Humanos (CTV), tivemos acesso à investigação de violações cometidas aos sujeitos internos em estabelecimentos de privação de liberdade sob custódia do Estado, como manicômios e prisões. As descrições eram aterradoras e incendiaram a nossa força juvenil a buscar elaboração do traumático vivido através de alguma ação. A verdade inacreditável era verdade, mesmo inacreditável!

Nenhum muro nos deteria sem que pudéssemos questioná-lo empunhando livros e coragem. Iniciamos com duas ações paralelas: conhecer o maior número das chamadas instituições totais entre São Paulo e Rio de Janeiro e infiltrar-nos em uma clínica feminina do complexo Juqueri com a consígnia de que faríamos um trabalho voluntário, passando tempo com as internas para ocupá-las com histórias, brincadeiras e outras coisas que se faziam nos hospitais psiquiátricos com alguma dignidade.

Visitamos a antiga FEBEM, o Manicômio Judiciário, O Hospital Anchieta, Hospital Vila Mariana, Engenho de Dentro, Pedro II, o ateliê onde trabalhou Nise da Silveira... em cada lugar, incontáveis histórias se abriram.

Conhecemos Artur Bispo do Rosário e seus mantos adornados pelos bordados feitos a partir do desmanche de tecidos, de onde retirava os fios de linha. A figura de Bispo do Rosário e seus estandartes era a síntese da resistência contra os processos de dessubjetivação, não da esquizofrenia propriamente dita, mas do confinamento imposto pelo Estado. Se o propósito era retirar todas as garantias identitárias, tornando os pacientes zumbis; ele, ao contrário, era um rei no seu território, diferente de tudo e de todos, sendo duplamente louco porque adoeceu e porque ao romper com o sistema para dar textura e forma às vozes que o acompanhavam, tornou-se artista, único.  Ele vivia entre suas empoeiradas obras deslumbrantes e montanhas de sucata recolhida em um anexo próprio. Aquele espaço despertava encantamento sem tamanho, mas também dimensionava o sofrimento de uma vida apartada do espaço social. Curiosidade, simpatia e admiração nos aturdia nessa visita guiada por ele.                                                           

Sim, romantizávamos muito o saber da loucura e ao adentrar o espaço de horror, encontramos um universo de sobreviventes estropiadas por um processo terrível de alienação: mulheres vestidas com aventais iguais e puídos, andando a esmo no pátio delimitado por muros altos e um avarandado que contornava o belíssimo pavilhão projetado por Ramos de Azevedo. Em poucos passos fomos conhecendo a carência de convívio em que viviam aquelas mulheres. Chegavam pedindo tudo: principalmente para serem tiradas dali, mas também pediam cigarro, bala ou nossos pertences. Queriam nos tocar como se fossemos seres de outro planeta.

Muitas histórias foram ouvidas ao invés de serem contadas por nós, como imaginado inicialmente. Fomos ganhando um pouco da confiança de algumas que resistiram a robotização e a clausura. Nos falaram da Rotunda, lugar onde os “rebeldes” eram confinados em solitárias forradas por estofamento para machucarem-se menos quando desesperavam. Eletrochoques, “sossega-leão” e camisa de força eram as “terapêuticas” adotadas contra rebeldias.

Subversivos, jovens grávidas, gays e lésbicas eram internados pelos familiares por não aceitarem suas escolhas. A força bruta da tortura e do exílio, em prática nos anos de chumbo, condensavam-se nesse abusivo exercício de poder das “famílias de bem” que decidiam afastar aqueles membros desadaptados em relação aos seus valores.

O modo como se estabelecem as relações de poder dentro dos espaços asilares, sem dúvida, passa pelo poder no uso excessivo de medicações antipsicóticas e pela supressão de referenciais identitários e familiares, produzindo sujeitos sujeitados. Na perdição e apagamento de suas histórias, os nexos associativos vão esvaindo-se com o tempo e fabricam-se andarilhos com seus maneirismos, dando voltas em círculo, numa conversa interminável com as vozes que habitavam suas cabeças. Uma mulher de meia idade repetia sem parar seu nome, sua ocupação antes da internação e cidade onde morava. Ficava clara a tentativa de preservar na memória a sua identidade, mas também ficava sugerido o aprisionamento nas referências da anamnese psiquiátrica. Porém, com uma simples pergunta sobre o tempo de permanência no hospital, uma certa singularidade foi resgatada:  - “não sei, mas esse muro já foi pintado algumas vezes”. Qual seria o intervalo entre as pinturas: 10, 15 anos?!  Trata-se de uma bela imagem literária.

A partir das nossas conversas, criamos uma festa como projeto de trabalho conjunto. Inventamos a festa a partir das lembranças de músicas significativas que eram aprendidas e cantadas por todos nós. Sem nenhum exagero, foi uma festona com sanfoneiro, pipoca, salsicha e sorvete. Foram 4 meses de preparativos entre buscar patrocínio externo e o convite ao resgate das histórias de vida. Ouvimos que sem homens a festa perderia sua graça e batalhamos pela autorização para a entrada de alguns internos para dançarem com elas. Foi um dia louco e inesquecível...

Histórias, nossas e delas, foram entremeando-se para nos escancarar a força bruta do pulsional. Para conter as intensidades da experiência convidamos Suely Rolnik e Sergio Maida para nos ajudar. Constituiram para nós, uma espécie de casal parental, sabido dessas coisas da subjetividade e de instituições. Foram fundamentais continentes para nossas angústias. Estudamos e vivemos a loucura em nós e no outro. Um de nós sucumbiu e fez um vôo sem retorno, do 11* andar ao chão. A dor de olhar para o lado de dentro de si levou-o ao salto eterno como saída. Nunca esteve confinado entre muros, porém a impossibilidade de viver dentro dos muros interiores, conduziu nosso jovem poeta ao extremo.

Algum tempo depois, o grupo, no formato original, se desfez; resistimos uns poucos, garantindo uma visita semanal ao Juqueri, já sem outro objetivo a não ser estar lá, com elas.

O hiato entre essas experiências e uma visita atual ao Museu de Arte Osório César, sediado no Complexo Juqueri, é imenso, mas condensou-se em um instante, quando a percepção da exuberância arquitetônica, do caminho de asfalto bordeado pela mata e do barulho do trem, reconectou fios que andavam perdidos na memória.

O museu fundado em 1985, foi restaurado depois de um incêndio e reinaugurado no final de 2020. Cem anos antes, o médico Osório César fundou uma escola livre de artes plásticas depois de ficar impressionado com a produção de alguns pacientes. Casado com Tarsila do Amaral, convidou intelectuais e artistas; Flavio de Carvalho esteve entre eles; para influenciarem no fazer artístico, mostrando nova técnicas. É lindo ver a transformação em alguns.

O museu dispõe de um rico acervo com obras de vários artistas que estiveram ali internados.    

A visita, numa linda tarde de inverno, contou com a companhia de uma amiga historiadora e uma monitora local. Conversando sobre os artistas, nossa guia postou-se em frente a uma tela em que uma mulher japonesa era representada múltiplas vezes, como se dançasse em frames. Com os olhos marejados, ela nos diz que o tema comum entre os artistas era a saudade de um tempo e de lugares inalcançáveis. A artista Masayo Seta soube representar como ninguém seu Japão perdido para sempre.

O tempo que corria no complexo Juqueri tinha a densidade do para sempre e nunca mais.  Os lugares de memórias difíceis nos lembram daquilo que não pode ser esquecido, para não ser repetido.

Esses artistas convidam nossos olhares, para reconduzi-los aos seus sonhos de outrora.

Em tempos de ataque à democracia orquestrado por um homem sem escrúpulos, que ocupa o mais alto cargo dentro da nossa República e de uma sensação de atordoamento zumbi da grande massa digitalmente indignada, mas sem maiores manifestações na rua, essas lembranças da juventude vieram à tona. Nós também precisamos restaurar nossos sonhos de democracia e ar respirável para sustentar enunciados nas ruas.

Se “No princípio era o verbo”, no fim há de ser também. O verbo, do ponto de vista semântico, contém a ação. Os sonhos daquela juventude, que subiu no trem e entrincheirou-se com os deserdados da sociedade, não podem ser em vão. Já passamos dos 50 anos de idade, mas estejamos resistentes contra a apatia e prontos para abraçar quem mais vier para tomarmos o trem de hoje.

Soraia Bento é psicanalista, professora e supervisora do curso de Psicanálise e membro do Departamento de Psicanálise

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Era uma vez Pindorama

Mara Selaibe, comenta sobre a importante iniciativa do Departamento de Psicanálise do Sedes de aproximação e de escuta da questão indígena inaugurada pela Revista Percurso que incluiu o tratamento do tema na publicação de número 66 e o evento "Mundos indígenas: o que vive em nós?" realizado no final de junho pelo Grupo da seção Debates de Percurso.

Era uma vez Pindorama

Mara Selaibe

 

“E aquilo que nesse momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio” 

(Um índio, Caetano Veloso, 1977)


Pindorama: Terra das Palmeiras em tupi-guarani, língua das tribos litorâneas originárias.  Desde que os Pataxó foram abordados pela invasão das caravelas portuguesas e seus 1400 homens desembarcaram, nunca mais Pindorama pode ser Terra livre dos Males.

São 522 anos de extermínio e de sofrimentos atrozes; não seria viável neste espaço recuperar dados que os livros escolares de História jamais contaram, mas que se encontram disponíveis na literatura acadêmica comprometida e, principalmente, impresso na vida dos povos originários destas terras. Monte Pascoal, Ilha de Santa Cruz, Terra de Vera Cruz... Marcada pela aliança entre Estado e Igreja, a vida dos indígenas tornou-se propriedade portuguesa e europeia. A Constituição Republicana de 1891 não mudou as condições dos indígenas. E se a Constituição de 1988 salvaguarda o direito de proteção especial à cultura dos povos indígenas, na prática as atrocidades seguem impunes na maior parte das vezes.

Sobre isso não falamos quase nada ainda. E devemos falar, precisamos falar, temos de escutar o que cada cidadão brasileiro indígena tem a nos contar e a nos ensinar, a participar e a transformar nesta vida que tem se tornado a cada dia mais miseravelmente reduzida ao capital. O futuro é ancestral, frase de Ailton Krenak que reverbera pela beleza, precisa ser muito bem compreendida por nós. Trata-se da História da vida neste país – e não apenas nele.

Nessa direção inconteste, o Grupo da seção Debates de Percurso – Revista de Psicanálise inaugurou – no interior deste Departamento de Psicanálise – um diálogo público explicitamente voltado para nossas questões atuais e mais urgentes desde 21 de abril de 1500...  Quem esteve presente na manhã de sábado, dia 25 de junho último, para acompanhar e participar do evento Mundos indígenas: o que vive em nós?[1], transmitido pelo canal do YouTube do Instituto Sedes (e lá segue disponível), possivelmente desfrutou de horas que marcaram suas reflexões e reverberarão daqui em diante para a busca de outros encontros dessa ordem.

Temos ainda mais a agradecer ao Grupo de Debates da revista Percurso uma vez que, antes desse memorável evento, trouxe, em seu número 66, um Debate que nos introduziu a esse tema, incluindo outras vozes e perspectivas.[2] [3]

Os participantes da mesa abordaram a gravidade do que segue se passando no Brasil em relação ao extermínio genocida e aos ataques constantes aos povos indígenas, invisibilizados, traumatizados e desconhecidos da grande população do país. Essa catástrofe humana vem do período colonial e recebeu enorme agravo no período da ditadura civil-militar, conforme podemos ler no Relatório Figueiredo[4], mais de uma vez citado por Renata Tupinambá. Contudo, Renata também sublinhou a força dos “lugares de pensamento indígena”: conceitos, filosofias, cosmopolíticas, manifestações culturais que sustentam a existência e a resistência de todas as coletividades ancestrais e atuais por mais de cinco séculos.

Os presentes puderam dialogar também com os depoimentos dos não-indígenas que mantiveram ou mantêm algum grau de convívio profissional com algumas tribos. Luiz Bologhesi em suas andanças e permanências junto a tribos Yanomami que participaram das gravações de seus filmes, evidenciou as tentativas frequentes, desde a colonização até o presente, de submetimento desses povos a modelos culturais eurocêntricos e como se dá ainda hoje a correlata resistência ativa ou silenciosa que exercem.

Na posição de antropóloga e indigenista, Juliana Rosalen generosamente compartilhou parte de suas experiências junto a povos Waiãpi, no Amapá, tendo como foco o que “aprendi sobre a formação das pessoas” junto a eles, ao longo de mais de duas décadas.

Pataxó, Tupinambá, Guarani, Yanomami, Wajãpi... são povos diferentes, com cosmologias e culturas diversas, com tradições e histórias singulares. E são fontes de brasilidades “pindorâmicas” pouco ou quase nada conhecidas entre nós. Porém, agora, neste Departamento, são fontes de desejo de aproximação na medida em que, afinal, como nos ensina Eduardo Viveiros de Castro “Hoje a população urbana do país, que sempre teve vergonha da existência dos índios no Brasil, está em condições de começar a tratar com um pouco mais de respeito a si mesma, porque, como eu disse, aqui todo mundo é índio, exceto quem não é.”[5]

Mara Selaibe é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae.

[1] Com a participação de Luiz Bologhesi (diretor dos filmes Ex-Pajé (2018) e A última floresta (2021), disponíveis na Netflix), Juliana Rosalen (antropóloga, sócia fundadora do Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena) e de Renata Tupinambá, cujo nome indígena é Aratykra (jornalista da etnia Tupinambá, difusora das culturas indígenas), mediados por Lucila de Jesus Gonçalves (psicanalista e autora de Na fronteira das relações de cuidado em saúde indígena (2011) e Ponte (2018)).

[2] Debate O que vive em nós, com a participação de Emerson Souza Guarani, Juliana Rosalen, Lucila de Jesus Mello Gonçalves, Preiscila Ambrósio Moreira, Thiago Barbalho e Maria Rita Kehl.

[3] Numa feliz coincidência, é preciso marcar que no número 67 da mesma Percurso – Revista de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Sedes, consta a entrevista Pergunte aos indígenas, realizada pela equipe de entrevista junto ao antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro!

[4] Relatório Figueiredo – Jader de Figueiredo Correia foi o procurador da República que entre 1967 e 1968, a pedido do ministro do Interior à época, Afonso Augusto de Albuquerque Lima, apurou, em mais de 7000 páginas, as violências cometidas contra os povos originários a partir de 1950. Violências cometidas diretamente pelo Estado ou por fazer vistas grossas frente aos crimes cometidos por fazendeiros. O Relatório só foi reencontrado em 2012, no Museu do Índio/RJ. O texto está disponível na internet e também há o livro Relatório Figueiredo – Genocídio Brasileiro, de Alvaro Ricardo de Souza Cruz, editado em 2018, pela Lumen Juris.

[5] Eduardo Viveiros de Castro   No_Brasil_todo_mundo_é_índio.pdf   (agosto, 2006)