A Supressão do outro e o Necromovimento

Como explicar um assassinato a queima roupa num clube privado de São Paulo ou um atropelamento no estacionamento ao lado de uma 'balada' num bairro 'nobre' da cidade? Ivan Martins discute a violência como fenômeno que acompanha a história do Brasil e agora adentra o campo social e cultural da classe média. 

 

A SUPRESSÃO DO OUTRO E O NECROMOVIMENTO

Desde quando nos tornamos uma nação de assassinos? Embora retórica, a pergunta poderia ser respondida de forma simples: desde sempre.

Os portugueses chegaram às nossas praias em 1500 para assassinar uma quantidade incalculável de homens, mulheres e crianças indígenas. Foi uma guerra de extermínio pela terra que, a rigor, ainda não acabou. Os mesmos portugueses trouxeram para o matadouro da escravidão 4,8 milhões de africanos, com a ajuda inestimável, a partir do século XIX, da elite econômica e política brasileira. Depois disso houve o genocídio da Guerra do Paraguai, o massacre em Canudos e incontáveis episódios de violência contra o povo rebelado. No século XX, à ditadura do Estado Novo sucedeu-se, depois de breve intervalo, a ditadura militar de 1964, exemplar na tortura e na eliminação física de opositores. Durou mais de 20 anos. Desde a redemocratização, o foco da violência mudou do político para o social. Em plena democracia, mata-se informalmente, aos milhares, os pobres e os pretos, aqueles que foram empurrados pela violência econômica para a marginalidade ou têm a má sorte de viver na proximidade dela, nos guetos periféricos explorados pelo tráfico e pelas milícias. Também se matam mulheres a torto e a direito no Brasil. O feminicídio é endêmico.

Recentemente, já na terceira década do século XXI, assistimos chocados e impotentes, mas não inteiramente surpresos, à escalada da violência em nosso próprio meio, os redutos sociais e culturais da classe média branca.

No dia 13 de agosto, sábado passado, um rapaz de 20 anos foi atropelado de forma selvagem e premeditada na frente de uma casa noturna no Itaim, bairro chique de São Paulo. O homem que jogou o carro sobre Fernando Palomino Zambori, depois de xingá-lo na saída do estacionamento, dirigia uma Land Rover Velar, que custa 570 mil reais. Ele está foragido e Fernando está morto. Semanas antes, ocorrera a morte absurda do militante petista Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, assassinado a tiros em sua festa de aniversário por um bolsonarista tresloucado. Entre um crime e outro, houve, pelo que me lembro, a morte de um homem negro, pai de três filhos, baleado por um “colecionador de armas” em Mogi Guaçu, interior de São Paulo, depois de raspar no carro dele e tentar fugir. O assassino é empresário e tinha três armas “de colecionador” registradas na polícia. Ocorreu, também nesse ínterim, a morte de um homem de 27 anos na cidade de Jacareí, em São Paulo, depois que um menino de 8 anos disparou acidentalmente a arma “de colecionador” que estava solta no banco de trás do carro, carregada com 12 cartuchos.

A grande novidade no cortejo atual da barbárie é o contexto político. Existe um líder de massas - e uma ideologia abraçada por multidões de eleitores - que legitima o uso indiscriminado de armas e a prática generalizada da violência. Não estamos diante de explosões pessoais de passionalidade e agressividade. Não se trata mais de atos esporádicos e aleatórios de violência. Está em marcha um necromovimento de caráter nacional. Formou-se ao redor da extrema direita, tendo Jair Bolsonaro como centro, uma cultura de ódio e supressão do “outro” que atrai e mobiliza milhões de brasileiros e brasileiras. O “outro” pode ser petista, bandido, corrupto, feminista ou umbandista. Pode ser também o cara que raspou no meu carro ou está empatando minha saída do estacionamento. O certo é que, posto na posição de “outro”, a vida dele não vale mais nada. Pum! Está morto.

Fala-se em polarização, mas não é disso, absolutamente, que se trata. A violência física e simbólica parte apenas de um lado. A mentira organizada de forma industrial nas redes sociais vem de um lado. A recusa explícita do jogo democrático e a ameaça constante de ruptura vem de um lado. Existem dois candidatos disputando com chances a presidência, mas só um deles ameaça incendiar o país se perder a eleição. Onde está o outro polo da polarização?

Para nosso imenso azar, essa coisa fascista – porque é disso que se trata, o culto ao líder, à violência e à morte – infiltrou-se na cultura e fundiu-se, como nos Estados Unidos, a aspectos da religiosidade popular, como a defesa da família. Nesta eleição, temos líderes cristãos associados de forma fervorosa (e paradoxal) a uma forma de governar cujo lema poderia ser “mate e deixe morrer”. Estão aí os quase 700 mil mortos da pandemia e as vidas inocentes perdidas nas ações policiais nas favelas. Elas não nos deixam mentir.

Cabe perguntar, a esta altura, o que há de errado com a nossa cultura para permitir tais crimes, e a resposta, novamente, seria simples: quase tudo.

A nossa alegria e a nossa cordialidade convivem sem constrangimento com a indiferença social em relação à miséria e à sorte dos excluídos. Nossa famosa afetividade anda de braços dados com o racismo e a homofobia. Somos o país que mais mata homossexuais e jovens negros, e o abismo de classes que criamos é único no mundo, verdadeiramente espetacular.  O cimento que mantém de pé essa construção social obscena é a violência, em suas diversas formas: econômica, de classe, racial, policial e, agora, política.

O bolsonarismo é um descaramento do que somos como sociedade, uma espécie de explicitação cínica e visceral. Ele emerge numa crise global do capitalismo – a mesma crise que levou Donald Trump ao poder nos EUA e turbinou a extrema direita europeia – e talvez submerja com ela, se tivermos sorte. Mas os bolsonaristas permanecerão entre nós, lembrando que a única alternativa ao fascismo e à necropolítica é o aprofundamento da democracia e a inclusão social dos milhões de brasileiros que vivem à margem da prosperidade e dos benefícios da civilização.

 

Ivan Haro Martins é psicanalista, jornalista e autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”.

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