Não fui eu, não fui eu, não fui eu...
Maria Silvia Borghese faz uma leitura perspicaz e interessante sobre a série Adolescência, ainda sob o impacto do “universo inteiro que é descortinado em apenas quatro episódios, filmados em plano-sequência, de propósito, para que o espectador mal consiga respirar”. Confira!
NÃO FUI EU, NÃO FUI EU, NÃO FUI EU...
Adolescência, a série. Há quem diga que caiu como uma bomba nas nossas cabeças. Na verdade, muito tem sido dito, formou-se um burburinho sem fim nas últimas semanas. No entanto, penso que ainda corremos o risco de banalização ou anulação completa da mensagem (ou mensagens) contida nessa história, contada como quem ‘esfrega’ em nossa cara algo que insistimos em deixar encoberto. Um universo inteiro foi descortinado em apenas quatro episódios, filmados em plano-sequência, de propósito, para que o expectador mal conseguisse respirar. Eu, de início, fiquei bastante assustada, surpresa. No entanto, rapidamente me dei conta de que estava diante do Unheimlich. Estranhamento e desconfiança diante de velhos conhecidos. As questões denunciadas na série não são exatamente novas, apenas tínhamos escolhido fingir que elas não existiam ou, o que é pior, que elas não nos diziam respeito diretamente. Adolescência abre as cortinas do inferno da contemporaneidade, denunciando de modo incontornável que alguma coisa está fora da ordem, mas completamente ‘dentro’ da nova ordem mundial.
Jamie nega ter cometido aquele crime bárbaro, mesmo diante do vídeo que o delata irreversivelmente. Ele diz muitas vezes, principalmente ao pai, que não foi ele a cometer o assassinato a facadas de uma colega de escola, assassinato extremamente violento, sem defesa. As câmeras o flagraram, o fato era inquestionável. Apesar disso, ele segue negando durante todo o primeiro episódio.
Havia verdade em suas negativas, havia muita verdade. Jamie não se sentia o autor do ato que cometera e, de certa forma, essa pergunta incômoda nos persegue a todo momento porque todas e todos segurávamos a faca usada por Jamie, também são nossas as mãos que desferiram os golpes matando aquela menina. A arte imita a vida, expressando, no mais das vezes, o que desejaríamos deixar encoberto, o que não gostaríamos de dar a conhecer. Stephen Graham, criador da série (ele é também o ator que interpreta o pai de Jamie) nos conta em entrevista que foi, a partir de dois episódios reais, nos quais dois meninos assassinaram duas meninas, no norte e no sul da Inglaterra, respectivamente, que ele decidiu fazer alguma coisa. ‘O que está acontecendo?’ e ‘O que temos a ver com isso?’ são as questões que escolheu enfrentar.
Escondidas atrás das próprias telas de seus smartphones, as pessoas têm passivamente assistido às crianças e aos jovens, abandonados à própria sorte, absortos em um mundo virtual violento, no qual a principal moeda de troca é o ódio, banalizado ao extremo, como meio de atingir sua eficácia mais cruel. Odiar é tão barato quanto tomar um café na primeira esquina, odiar e agir de acordo com o ódio é possível na terra sem lei, sem necessidade de respeito aos mais básicos pactos civilizatórios, que é a ‘rede social’. Conceito tão vago quanto paradoxal, pois a trama tecida nessas tais redes sociais é costurada com os milhares de fios imaginários de sujeitos/ indivíduos/ empreendedores/ soldados/ alienados, completamente abandonados ao próprio sofrimento. Vanessa Cavalieri, juíza titular da Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, tem dito em diversas entrevistas dadas recentemente a alguns veículos da mídia, que estamos ‘esquecendo’ dos nossos filhos fechados em seus quartos, ‘distraídos’ com suas bugigangas tecnológicas, fingindo acreditar que estão seguros. No entanto, ela nos diz, é como se os deixássemos vagar por uma ‘cracolândia’ sozinhos, todos os dias.
Eu radicalizaria ainda mais essa observação, perguntando se já não estamos vivendo, todas e todos, vagando como zumbis imersos na lógica dos algoritmos, que gradualmente nos despreparam para os embates do cotidiano. Assim, expostos e desprotegidos, vivemos na lógica das intensidades virtuais, na qual vale tudo, principalmente odiar e ser odiada(o), matar ou morrer. O ‘cancelamento’ é a expressão extrema desse ódio primário, infantil e desesperado, alimento da angústia que dilacera e fragmenta o Eu, nossa última e única chance de sermos humanos. Jamie diz ‘não fui eu’, ‘eu não fiz nada’. Ele está dizendo a verdade, pois naquele momento, após ter sido tão atacado em suas bases narcísicas necessárias, seu narcisismo de vida, como diria André Green, a passagem ao ato horripilante que protagonizou era tragicamente, ao mesmo tempo, o derradeiro grito de sua humanidade evanescente. “Você está me dizendo que eu sou feio?’, ele grita raivoso para a perita que o entrevistava. Isso o aterroriza, uma vez que ser feio o descredenciaria ao pertencimento social, o deixaria vulnerável diante dos tribunais das redes. No mundo das redes sociais, o horror circula solto, domado apenas pelos algoritmos controlados pelos donos do capital. Somos presas, mas também somos parte. Esse espelho do terror tem o fascínio e a sedução de Eros, de um lado, mas a lascívia e os apelos mais mortíferos de Thanatos.
Há bem pouco tempo, podíamos dizer que as crianças trazem uma radicalidade em seus pensamentos que a levariam a matar e a morrer todos os dias, precisam do contorno amoroso dos adultos, sob o binômio ‘carinho e firmeza’. Também podíamos dizer que adolescentes trancados em seus quartos não estão nos dando um sinal de que estão bem, mas que seu isolamento deve ser rompido com diálogo, orientação, limites, sob o binômio ‘carinho e firmeza’. Mas isso era antigamente. Eram clichês? Sim, mas eram bons clichês, que deviam e podiam ser explicitados por psicólogos, psicanalistas, professores. Podíamos usá-los e tinham sua eficácia, certamente. Mas isso era quando existiam pais que podiam escutar.
Hoje, todas e todos precisamos fazer um enorme esforço para compreender os gritos desesperados da mulher visionária/vidente de Saramago*, a única que não perdeu a visão. Talvez a série Adolescência seja essa mulher, tentando nos iluminar com sua abençoada (ou amaldiçoada) visão. Mas isso... se não furarmos também os seus olhos.
Maria Silvia Borghese é psicanalista, membro do Departamento de psicanálise e professora do Curso de Psicanálise do Departamento. É autora dos livros “O tempo e os medos” (2017) e “Depressão & doença nervosa moderna” (2024), ambos da Ed. Blucher. É colunista do Blog do Departamento.
*Saramago, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Excelente análise! Em que labirinto nos metemos?! Perdemos ou não sabemos mais usar os sentidos! Como escutar se só queremos falar? Como enxergar se não queremos ver? Cansados, extenuados, centrifugados pela vida louca optamos pela alienação, como se isso nos isentasse da responsabilidade de guiar, zelar escutar, enfim, acolher à quem amamos! Fui eu, foi você, somos todos nós!
ResponderExcluirMuito bom! Obrigada por levantar essa importante discussão!
ResponderExcluirExcelente análise. Como pai, passei os 4 episódios “na pele” do pai do garoto. Há tempos uma obra não me impactava tanto. Penso ser imperdível, mesmo para quem não tem filhos, pois não se trata só disso. Parabéns!
ResponderExcluirÓtima análise, Maria Sílvia. A pergunta final de Jamie é sobre o amor. Vc me ama? Eu existo pra você? E ela fica sem resposta….
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