Sobre Silvios e Anieles

Em meio às ressonâncias da demissão do ministro Silvio Almeida a partir das denúncias de assédio, Camila Munhoz tece um texto que impacta por seus questionamentos que ampliam o debate. Confiram: 


SOBRE SILVIOS E ANIELES

Camila Munhoz 

O que acontece quando um homem negro é acusado de importunação sexual? A fantasia racista sobre o homem negro animalizado e hiper sexualizado se confirma. Fantasia racista e hipócrita, pois todos sabemos a cor dos homens que, por meio de abusos contra as mulheres negras escravizadas, originaram a miscigenação racial brasileira.

O que acontece quando uma mulher negra sofre importunação sexual? Confirma-se o óbvio para certas pessoas: ela é objeto para o desfrute dos homens (como todas as mulheres em geral, mas mais especificamente). Muitas vezes dos homens brancos, mas não só.

Já um homem e uma mulher negros em posição de destaque e poder vão contra qualquer imaginário racista. Abre-se uma rachadura perigosa em um terreno imaginário branco que se crê e se quer homogêneo e superior. Como diz Emicida: “Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei”[1]. A trajetória de Silvio Almeida e de muitos outros negros de destaque, da ascensão à queda, é cantada por Emicida na música citada acima, Ismália: “Quis tocar o céu, mas terminou no chão”. A mesma ideia da queda é expressa, de forma menos poética e bem mais violenta, no velho ditado racista (me custa escrever, mas é importante que não nos esqueçamos do que já foi dito sem vergonha na cara) “preto quando não suja na entrada, suja na saída”.

Essas máximas sociais que antecipam ou até preveem a situação tão impactante que estamos acompanhando, me levantaram a questão sobre qual a influência que os mandatos sociais exercem nos sujeitos e qual a responsabilidade da sociedade que os produz e reproduz.

De quem é a responsabilidade por um ato individual? Minha pronta resposta, na qual acredito acima de tudo, pois trabalho com isso, é: Da própria pessoa, mesmo que esse ato venha de seu lugar mais obscuro, mesmo que não combine com o resto de si. Essa é a ética da psicanálise: somos responsáveis inclusive sobre o que não reconhecemos em nós. Mas se há um imaginário social projetado sobre nós, uma expectativa geral sobre o que podemos ou não ser, devemos ou não fazer, um lugar desenhado para nos encaixarmos perfeitamente, como resistirmos a isso? Através de muito trabalho psíquico.

Minha intenção aqui não é justificar ou perdoar Silvio Almeida, muito menos julgá-lo. Meu propósito é não parar de pensar frente à dor que a quebra da idealização de um homem nos causou. Nesse sentido, não podemos perder de vista as variáveis dessa equação, e uma delas é o racismo que atravessa a sociedade e traumatiza todos os corpos negros gerando efeitos psíquicos diversos. A outra é o machismo.

Em um primeiro momento podemos ficar mobilizados por ódios. Ódio do homem que carregou nossas esperanças e se mostrou “demasiado humano” e falho. Ódio da mulher que “se deixou importunar”, que se incomodou com isso mais do que com o movimento antirracista ou com nossas expectativas sobre Silvio Almeida, que não denunciou a importunação sexual de imediato, mas criou um “diz que me disse” entre os ministros, ódio da que, enfim, denunciou.

Foi justamente esse “diz que me disse” que me aproximou de Anielle. Imaginei (e é só imaginação mesmo, já que não quero investigar nem julgar ninguém) a surpresa dela ao ser olhada por um colega de trabalho como se fosse um objeto sexual ao invés de uma mulher forte que pegou para si o que o mundo lhe reservou depois do assassinato da irmã. Um homem que talvez tenha feito sua investida em uma reunião de trabalho, em um café em que trocariam informações importantes sobre algum assunto de Estado ou mesmo sobre assuntos cotidianos. A estupefação ao ver uma pessoa expert em Direitos Humanos olhando para ela como se não fosse humana, apenas um objeto sexual. Suponho – ainda na minha imaginação – que o olhar tenha sido esse, pois caso contrário se trataria de um assunto pessoal, sentimentos que podem ocorrer entre duas pessoas e que ela conseguiria olhar de volta e dizer: “Puxa, Silvio, não sinto o mesmo, mas te respeito muito, vamos cuidar de reconstruir nossa relação de trabalho e seguir?” E o assunto estaria terminado. Imagino sua solidão tendo que se haver com a quebra de expectativa sobre este homem, a mesma quebra de expectativa com a qual estamos lidando tão mal mesmo nos apoiando coletivamente.

Imagino a dificuldade em acreditar no ocorrido, a dúvida se ela deveria se sentir honrada por ser atraente para um homem tão admirado ao invés de ofendida. Na tentativa de lidar com essas questões, imagino Anielle começando a falar disso com pessoas próximas pra ver no rosto delas se ela estava maluca, se seria escutada. Também imagino algumas respostas naturalizando a situação em um meio tão machista quanto a política. Ou alguém aqui acha que em outros ministérios, câmara, senado, palácio do planalto isso não acontece a torto e a direito? Enfim – na minha imaginação essa questão só se colocou no fim – pensando no regozijo que seria para os racistas de plantão uma possível denúncia de um homem negro de destaque e como isso respingaria nos movimentos antirracistas.

E se posso imaginar (não saber) o que alguém tão distante de mim quanto a Anielle viveu, posso fazer o mesmo com o Silvio. Como será que ele está se sentindo agora? Será que consegue enxergar que em algumas situações possa ter constrangido mulheres? Será mesmo que ele ficou surpreso com a possibilidade de algumas mulheres não terem se encantado por ele? Como alguém tão inteligente, arguto e sensível às questões humanas pode ter sido tão obtuso?! Pois é... é disso que se trata. Silvio pode ser tanto esse sujeito brilhante, que nos deu discursos lindos e contundentes, uma obra rigorosa e ao mesmo tempo acessível como Racismo Estrutural e uma pessoa tola e cheia de si.... conhecemos a cegueira narcísica que impede o sujeito de se questionar. Será que ele se dará ao trabalho de pensar em suas contradições?

E nós? Somos também vítimas dessa cultura patriarcal quando colocamos nossos líderes acima de qualquer defeito ou crítica, quando queremos e ansiamos por não enxergar as contradições que nos habitam projetando neles a pessoa sem máculas que gostaríamos de ser. Os personagens dessa tragédia não são apenas homens, mulheres ou negros. Muito menos apenas vítimas ou agressores. Somos e são multifacetados e complexos, cruéis, fortes e frágeis, capazes de muitas belezas e sujeiras, covardias e coragens. Temos dentro de nós, todos, silvios e anielles potenciais. Que tenham, e tenhamos, pelo menos a coragem de encarar nossa humanidade imperfeita e suas consequências.

Camila Munhoz é psicanalista, membro e professora do curso Conflito e Sintoma do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e dos Grupos Faces do Traumático e A Cor do Mal-estar. 



[1] Emicida, Ismália, música do álbum Amarelo de 2019.

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