Silvio, Anielle, e o problema dos dois corpos
Hoje publicamos mais um texto sobre a situação vivida por Silvio Almeida. Se a denúncia de assédio causa decepção e desesperança, Ivan Martins aponta uma perspectiva otimista ao olharmos para as mudanças, para a vida e para o cotidiano da clínica.
SILVIO, ANIELLE, E O PROBLEMA DOS
DOIS CORPOS
Ivan Martins
Faz sucesso na Netflix uma série de
ficção científica chamada “O problema dos três corpos”, cuja premissa é uma
civilização extraterrestre que busca invadir a Terra para resolver um problema
insolúvel: ela surgiu no interior de uma configuração planetária de três corpos
que, a cada tanto, interagem gravitacionalmente de forma a causar total
destruição geológica. A única forma de escapar ao aniquilamento e reconstrução
periódica é mover-se para um sistema planetário estável, subjugando a
civilização de seus ocupantes.
Pensei no encontro dos corpos – agora
humanos - ao ouvir as considerações apaixonadas sobre a demissão do ex-ministro
Silvio de Almeida, do Direitos Humanos, acusado de assediar sexualmente várias
mulheres, entre elas a sua colega Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial.
As denúncias contra Sílvio foram feitas sigilosamente ao movimento MeToo,
chegaram ao público pelo portal de notícias Metrópoles e foram respondidas pelo
governo Lula com o afastamento imediato do ministro. Entre o vazamento da denúncia
e a demissão se passaram 48 horas. Ainda não houve o chamado processo legal
para confirmar ou desmentir as acusações, mas Silvio já foi socialmente
cancelado – e contratou advogados famosos para defendê-lo na Justiça.
Em consequência desses
acontecimentos, circula em nosso meio, sobretudo entre as mulheres, a sensação
de profundo pessimismo: se um homem como Sílvio – um intelectual refinado,
engajado por décadas na luta social e antirracista – foi capaz de agir sistematicamente
como predador sexual, não há esperança para as relações entre homens e
mulheres. O encontro desses dois corpos estaria fadado à violência e ao
desastre, e a forma mais eficaz de resolver o problema seria expor os
agressores, punindo-os com opróbio e execração pública. Na impossibilidade de
mudar os homens e a cultura machista, restaria reprimi-los e intimidá-los,
opondo à violência sexual a violência simbólica dos tribunais da internet. A
lei, afinal, demora, e frequentemente nega justiça às mulheres vítimas de
assédio.
Chegamos, assim, a mais um aspecto da
vida pública no qual a utopia da mudança vai sendo substituída pelo pessimismo
punitivista. Assume-se que o assédio e a violência contra as mulheres
continuarão, assim como a catarse periódica dos cancelamentos. Mas essa
situação nos traz ao menos uma consequência indesejada: congelar, no
imaginário, coletivo, os homens na posição de predadores e as mulheres na
condição de vítimas indefesas, algo que não faz jus ao que somos e nem às lutas
e conquistas da modernidade, que apontam o que gostaríamos de ser. A ministra
Anielle é uma lutadora, muito mais do que uma vítima passiva, e o intelectual
Silvio não é apenas um predador.
Talvez pudéssemos, em benefício de
nós mesmos, mulheres e homens, buscar outras formas de combate à violência
sexual masculina, algo que oferecesse a possibilidade de mudança e
transformação, e não a mera confirmação de papéis sociais que todos execramos.
Me ocorre de imediato o conceito de justiça reparativa, que o Chat GTP define
da seguinte forma:
“Uma abordagem ao sistema de justiça
que se concentra na reparação dos danos causados pelo crime, em vez de
simplesmente punir o infrator. Essa abordagem busca envolver todas as partes
afetadas pelo crime — vítimas, infratores e a comunidade — para promover a
responsabilização, a cura e a reconciliação. O objetivo principal é restaurar
as relações e reparar os danos causados, ao invés de focar apenas na aplicação
de uma pena”.
Embora a cultura masculina brasileira
seja um desastre - e a maior evidência disso são os feminicídios e os abusos
sexuais contra mulheres e crianças, assim como o abandono dos filhos ao cuidado
das mulheres - não é possível generalizar a presunção de violência nas
interações cotidianas entre homens e mulheres. Há muitos encontros de corpos
felizes, como a clínica nos revela o tempo todo. Existe mutualidade, respeito e
apaixonamento entre homens e mulheres. Cultiva-se o amor e a convivência, a
despeito dos conflitos. Os casais fazem planos, fazem filhos e perseveram na
busca ilusiva da felicidade. A hierarquia de gênero – parte daninha da
estrutura social – convive com formas avançadas de igualdade, construídas no
interior dos casais. A predação sexual e a violência contra a mulher são comuns
no país, mas constituem exceção no nosso meio. Causam alarme e são notícia.
Denúncias como as que atingem Sílvio de Almeida afetam uma fração minúscula dos
intelectuais de esquerda. Aquilo que se costuma chamar sarcasticamente de
esquerdomacho parece uma caricatura em extinção. A maioria dos homens do nosso
meio “virou a chave”, embora vivam assombrados, muitos deles, pela
possibilidade de que uma mulher reapareça do passado com um dedo apontado em
sua direção. A identificação consciente ou inconsciente com os cancelados,
ajuda a explicar a reação masculina aos cancelamentos, frequentemente ambígua.
Se a situação presente parece
sombria, olhemos para o futuro que se esboça. A cultura masculina dá sinais de
estar mudando, e com isso vai se criando um ambiente mais seguro para meninas e
futuras mulheres. Os adolescentes e jovens de 2024 são mais cuidadosos no trato
com as garotas do que eram na minha geração. O modelo do macho sexualmente
agressivo, que opunha ao “não” das mulheres o seu “sim”, revelando a elas o seu
próprio desejo, vai sendo posto de lado, por falso e intolerável. As abordagens
eróticas aceitáveis não passam pela invasão indesejada dos corpos ou dos
ouvidos femininos. O ato masculino vai se suavizando, na mesma medida em que as
garotas se fazem mais ativas em defesa de seu próprio desejo.
Acredito que isso representa uma
mudança na cultura e que ela corresponde a uma interiorização de novos valores,
a uma nova ética masculina na relação com as mulheres – um corpo de ideias
novas, recentes, que disputa espaço com a tradição patriarcal e machista,
defendida e praticada por setores inteiros da nossa sociedade. Ainda não está
claro quem vencerá essa disputa ideológica.
Um paciente me relatava, outro dia, a
conversa que teve com o segurança de uma boate. Este contava que os dias de
puxar os cabelos e segurar o braço das meninas na pista tinham acabado. Agora,
ao menor toque indesejado, as garotas chamam o segurança, que está instruído a
colocar o agressor para fora. Não sei o quanto disso é verdade, mas há algo de
novo na cena: a sociedade agindo coletivamente para reprimir abusadores.
Há um espírito de proteção às
mulheres que se manifesta nas escolas, nas empresas e nas instituições, onde
operam ou começam a ser criados protocolos para lidar com o assédio sexual. Os
cancelamentos, à sua maneira caótica, são parte desse processo, que parece
avançar numa direção clara: a tolerância social para com os predadores sexuais
está encolhendo. É possível que eles desapareçam nos próximos anos, se tivermos
sorte. Se tivermos azar, o reacionarismo da bala, do boi e da bíblia vai
prevalecer no embate político-ideológico, e com eles a subordinação “natural”
da mulher, cujo corpo voltaria a ser objeto inquestionável de controle e
desfrute masculino. Pela vontade de Deus, claro.
Frente a tantas coisas ruins que já
acontecem, e a tudo que ainda pode acontecer, talvez o meu otimismo em relação
ao encontro dos corpos seja descabido. Alguém me contava, hoje mesmo, sobre um
caso de abuso sexual contra uma menina que a polícia fora incapaz de coibir, na
periferia de São Paulo. É devastador saber que isso acontece. Cada história
dessa nos inunda de ceticismo. Mas, como pai de uma menina, e como
psicanalista, quero acreditar que mudanças na cultura são mais fortes que
supostos determinismos evolutivos e biológicos. Os homens não são naturalmente
machistas, a cultura em que eles crescem é. Os homens não são predadores
sexuais espontâneos, algo na nossa sociedade os torna assim. Os homens não são
violentos por natureza, eles são ensinados a agir com violência. A verdade é
que ainda existe espaço na cultura brasileira para que os homens façam o que
fazem, na frequência com que fazem – e talvez isso possa ser mudado, para
melhor.
Mas a cultura que temos hoje, é
inevitável apontar, não pertence aos homens somente. Ela não se transmite
exclusivamente pela linhagem masculina, embora esta seja sua principal guardiã.
A cultura do abuso se reproduz no interior das famílias, das escolas e das
instituições, partilhada por homens e também por mulheres. Ela tem por
consequência a formação de predadores e vítimas, há séculos. Desvendar os
mecanismos que levam a isso e ajudar a rompê-los é parte do desafio
psicanalítico brasileiro. Ou podemos nos sentar, comodamente, à espera de que o
próximo encontro de dois corpos produza violência, escândalo e catarse, em mais
um cancelamento midiático. Alguma forma de justiça será feita, afinal.
Ivan Martins é psicanalista e participante externo do Grupo de Psicanálise e Contemporaneidade do Departamento de Psicanálise do Sedes.
Parabéns Ivan!
ResponderExcluirCompartilho da visão otimista!
Abraço
Ana Maria Leal
Obrigado, Ana. Beijo
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