“Cá entre nós”: o desafio do perverso

Hoje o Blog traz a resenha de Thais Siqueira, do livro “Tempo e ato na perversão: ensaios psicanalíticos I”, de Flávio Ferraz.  Um livro que aborda o complexo tema da Perversão, através de uma escrita "envolvente, acessível e instigante".


 “CÁ ENTRE NÓS”: O DESAFIO DO PERVERSO [1]

 

Resenha de Tempo e ato na perversão: ensaios psicanalíticos I (3ª edição revista e ampliada). Flávio Ferraz. São Paulo: Editora Blucher, 2023, 146 p. - Thais Siqueira 


A publicação da terceira edição do livro “Tempo e ato na perversão – Ensaios psicanalíticos I” de Flávio Ferraz, realizada pela editora Blucher em 2023, chegou a mim em boa hora. Poder me dedicar novamente à leitura atenta dessa obra, além de ser uma experiência muito prazerosa, ajudou a recuperar o fio de uma discussão profunda acerca do conceito de perversão na literatura psicanalítica, que vem a ser de suma importância nos nossos tempos. Isso porque, para além da discussão nosográfica e diagnóstica que é, por si só, fundamental e exige constante avaliação em nosso campo de estudo, os mais variados fenômenos decorrentes da recusa como defesa psíquica, que por sua vez caracteriza o funcionamento perverso, não têm economizado em presença tanto na esfera pública dos acontecimentos, quanto na privada. Negacionismos, fanatismos e tentativas reiteradas de fazer acontecer o que se quer, a despeito dos acordos coletivos, estão com frequência na ordem do dia, há muitos e muitos dias.

         Em continuidade a sua vasta pesquisa sobre a perversão, publicada em seu outro livro “Perversão” (2000), neste, Flávio Ferraz apresenta, para além de um aprofundado debate entre as concepções de perversão das diferentes escolas psicanalíticas, discussões mais específicas sobre a recusa do tempo e seus efeitos, as peculiaridades do ato na perversão e na neurose obsessiva e a ideia da perversão como uma defesa contra a psicose. Por fim, o livro conta também com um capítulo inédito no qual o autor discute a obra “Vênus das peles”, de Leopold von Sacher-Masoch, em sua relação com o autor, sua vida pessoal e as diversas influências desse ícone literário na nosografia psiquiátrica e psicanalítica. O livro é composto de ensaios independentes, que têm a perversão como núcleo em torno do qual orbitam as discussões, mas podem ser lidos de maneira independente, de acordo com os interesses do leitor. Além disso, a exímia habilidade de Ferraz em transmitir conhecimento se faz notar na narrativa, que retorna aos pontos mais complexos da argumentação inúmeras vezes, conduzindo o leitor de forma cuidadosa e permitindo que a compreensão das ideias se faça em um ritmo agradável e consistente.

         Antes de apresentar mais detidamente cada um dos capítulos gostaria de comentar três aspectos gerais do livro que me parecem dignos de nota. O primeiro deles se refere à escrita de Flávio Ferraz. Por ser pesquisador e clínico de longa carreira e intensa dedicação, Ferraz consegue abordar temas altamente complexos com uma escrita leve e acessível a leitores em diferentes níveis de formação. Sua capacidade de transmitir discussões profundas como quem bate um bom e prazeroso papo é uma das maiores virtudes desse livro, o que torna sua leitura agradável e prazerosa, ainda que o tema seja dos mais espinhosos e controversos. O segundo, um tanto mais específicos, refere-se à discussão retomada diversas vezes ao longo do livro e apresentada por ele mais detidamente no primeiro capítulo, entre as compreensões de perversão presentes na literatura dos autores da escola inglesa e da vertente lacaniana. Ainda que a discussão da “era pós-escolas” seja cada vez mais frequente no meio psicanalítico, trabalhos que se proponham a colocar em debate, de forma séria e responsável, abordagens divergentes de um fenômeno sem que um dos “times” saia derrotado e sem crédito, ainda são raros. Raros e, a meu ver, cada vez mais fundamentais se quisermos colaborar para o avanço do saber psicanalítico. Poder situar de forma séria cada uma das leituras em seus campos epistemológicos, comunicar de onde elas partem e para onde apontam, é o que torna possível sustentar os paradoxos inescapáveis à compreensão de algo tão complexo quanto o psiquismo humano e seus adoecimentos. Ferraz realiza tal tarefa com maestria. O terceiro aspecto que gostaria de destacar diz respeito à atenção que o autor dá à dimensão ética da clínica psicanalítica em relação à perversão. Em diversos pontos da narrativa, ele acentua a importância de o analista estar atento aos riscos de cair em uma terapêutica moralizante ou, no extremo oposto dessa conduta, de ceder à sedução do discurso do paciente adotando uma posição de voyeur, desimplicada e desatenta ao sofrimento psíquico presente nos sintomas. De modo mais amplo, Ferraz também assinala uma certa “positivação” da perversão quando nos fala sobre suas dimensões criativa e revolucionária. Um modo de ver original e bastante interessante quando aliado aos outros já expostos, que novamente permite manter a perversão em um lugar complexo e contraditório, posição acessível apenas a um observador/pesquisador não ingênuo e que já conviveu intimamente com ela na clínica, como demonstrado em suas inúmeras publicações sobre o tema. Esses três aspectos fazem do livro uma obra de amplo acesso e interesse, o que se comprova com o lançamento de sua terceira edição.

         Após esse sobrevoo, vamos aos capítulos.

No primeiro capítulo, a discussão centra-se no debate entre duas compreensões da perversão, uma prioritariamente presente na vertente inglesa da psicanálise nomeada pelo autor como eixo sintomatológico e outra prevalente nos autores de inspiração lacaniana que recebeu o nome de eixo transferencial. O surgimento do eixo sintomatológico é remetido ao início da obra de Freud, quando ele ainda no início do século XX, mais precisamente em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), apresenta longos capítulos nos quais reúne uma porção de descrições sintomatológicas reunidas em grupos que representariam os então chamados “desvios sexuais”. Neste eixo, criam-se categorias psicopatológicas a partir do aspecto fenomenológico, à luz e semelhança que se fez com a neurose e com a psicose nos textos de Freud. Já o eixo transferencial prioriza uma compreensão que toma a transferência como instrumento diagnóstico. Dito desse modo, talvez as diferenças entre os eixos não fiquem muito claras.  Pode ajudar lembrarmos, como sugere Ferraz, que a transferência é compreendida de diferentes maneiras nas escolas kleiniana e lacaniana, o que, por sua vez, tem como consequência abordagens clínicas diversas. Na primeira, a transferência serve como centro do trabalho clínico, objeto mesmo da interpretação psicanalítica. Na segunda, funciona como operador do chamado diagnóstico estrutural que analisa qual o posicionamento do sujeito diante da castração. Por isso, o eixo transferencial, quando, na escola inglesa, pode aproximar-se muito e mesmo fundir-se ao eixo sintomatológico, enquanto, na vertente lacaniana, pode afastar-se a ponto de a transferência servir “apenas” para realização do diagnóstico.

Nas palavras de Ferraz, “a pergunta que motiva essa investigação é: até que ponto esses eixos podem coexistir em uma dada definição de perversão?” (p. 25). Essa pergunta será perseguida fazendo autores dos dois eixos conversarem, contraporem-se e concordarem para concluir com a apresentação de um esquema esboçado através de paradoxos. No entanto, o que me parece mais significativo é a constatação apresentada pelo autor ao fazer convergir os autores das duas escolas quanto aos impasses apresentados na análise com pacientes perversos. Ainda que as terminologias e estilos sejam diferentes, o que podemos chamar mais amplamente de posição de desafio apresentada pelo perverso é percebida do mesmo modo pelos diversos autores, “fato que ajuda a legitimar as conclusões de ambas e permite a dedução de uma teoria consolidada da transferência na perversão” (p. 29). O perverso desafia o analista em seu saber e em sua posição, seu discurso parece contaminado de um certo “ar de rebelião” (p. 21). Ele tenta retirar o analista de seu papel, contaminando a relação analítica de modo a impregná-la de sua própria estrutura pervertida e imobilizante.

Acrescenta-se ainda uma discussão da maior importância sobre a tentativa do perverso de eliminar toda e qualquer terceiridade, e os ataques aos terceiros do analista decorrentes de tais intenções. Intenta-se o estabelecimento de uma relação dual, característica da recusa, defesa diante da castração que define o funcionamento perverso. Este último aspecto, assim como outros discutidos ao longo do capítulo, são ilustrados por Ferraz por meio da apresentação de um caso clínico, o caso Júlio. Neste relato, assistimos de perto ao trabalho clínico de Ferraz, no qual a sustentação do setting analítico autoriza uma recusa contundente do convite perverso do paciente comunicado através da frase: “Cá entre nós... Vai, diz só pra mim...”

O segundo capítulo dará sequência à discussão sobre os desafios da clínica, aprofundando-se justamente no mecanismo defensivo característico do perverso, a recusa. Recusa da castração como já dito, mas também, recusa da realidade, daquilo que se opõe ao desejo, recusa da percepção traumatizante, e mais especificamente a recusa do tempo. Para falar dela, Ferraz retorna novamente a Freud, que, em seu texto de 1916, “Sobre a transitoriedade”, discorre a respeito da recusa do tempo como sendo, no limite, a recusa da morte. O efeito de tal defesa radical seria uma cisão no ego que daria ensejo a dois impulsos opostos: um penoso desalento e uma rebelião quanto ao fato consumado. A cisão visaria responder a exigência de manter a ideia de imortalidade ativa no mundo psíquico.

A aversão ao envelhecimento e, consequentemente, uma disputa constante contra a passagem do tempo são marcas registradas dos tempos atuais. A infinidade de procedimentos estéticos e tecnológicos, amplamente difundidos nos quatro cantos do mundo contemporâneo, deflagra a grandeza do desafio que a aceitação da passagem do tempo nos impõe. Assim, novamente não é exclusividade do chamado perverso a briga contra o relógio.

Após convidar autores para o debate, Ferraz conclui que o acesso do sujeito à “categoria tempo” (p. 63) realiza-se por meio da aquisição de um sentido de processualidade. Sentido este que é, desde Freud, condição para a passagem do processo primário ao secundário, que envolve espera, adiamento e uma tolerância adquirida por meio de experiências sucessivas de satisfação e frustração. A recusa do tempo compromete, portanto, todo o funcionamento psíquico, alterando, dentre outras coisas, a estrutura formal dos pensamentos.

No terceiro capítulo, o autor inspira-se na máxima freudiana que postula a perversão como o negativo da neurose para apresentar um estudo comparativo entre a perversão e a neurose obsessiva. Para isso, elege o ato como objeto privilegiado de estudo e dedica-se a acompanhar a relação do perverso e do neurótico obsessivo com o fazer e com o saber. Ferraz apresenta seus achados comparando a perversão ao gnosticismo e a neurose obsessiva à religião.

Mas é no quarto capítulo que, a meu ver, se refugia a pérola desse livro. Digo isso porque, neste ensaio, o autor apresenta e fundamenta sua tese de que as montagens perversas serviriam como defesa contra a psicose, particularmente contra a angústia, a depressão e a fragmentação psicóticas. Tal ideia é deduzida a partir dos trabalhos de Freud que comparam a neurose e a psicose, no intuito de delimitar cada um dos quadros, mas também daqueles onde o mestre vienense trabalha a formação do fetiche como resultado do mecanismo defensivo da recusa, e sua articulação com a divisão e fragmentação egoica.

A tese sustenta-se no argumento de que, na perversão, o acting out opera como a força que recoloca o sujeito em sua crença a cada ameaça que o contato com a realidade da castração lhe impõe. O aspecto “feiticeiro” do fetiche permite sustentar uma crença que protege o sujeito da desorganização do pensamento e do esfacelamento identitário produzidos pelas experiências alucinatórias na psicose. Deixemos falar o autor:

“O perverso, acreditando no que sabe não ser verdade (eis a fórmula acabada de um jogo do impossível), desenvolve um sintoma calcado em montagens que, sendo imaginárias, não podem dispensar o acting out, sob a pena de caírem por terra por falta de uma sustentação que venha do plano do real” (p. 104).

Compreender a perversão como defesa contra a psicose implica admiti-la como contando com maior grau de organização egoica, ou seja, como um estado em que o sujeito retorna a um grau menos regredido, quando comparado ao sujeito psicótico, tanto no que se refere ao acesso à objetividade, quanto à objetalidade. Consequentemente, ao aceitar essa hipótese original e muito bem fundamentada por Ferraz, admitiríamos que a clínica com perversos contaria com estados que se alternam em um mesmo sujeito, a depender de seu nível de organização psíquica em cada momento de uma análise. Assim, o trabalho clínico não se poderá furtar a alcançar as angústias psicóticas existentes atrás das montagens perversas, caso almeje produzir alguma transformação.

O último capítulo contém o ensaio sobre o livro “A Vênus das Peles”, de Leopold von Sacher-Masoch, reunido aos outros pela primeira vez nessa edição do livro. Por meio da apresentação dessa obra literária, Ferraz nos relata como o sobrenome do autor passou a nomear o fenômeno que seu livro descreve, o masoquismo. Conta novamente com diversos autores da literatura psicanalítica para construir uma apresentação do conceito de masoquismo acessível ao leitor leigo à psicanálise e, ao mesmo tempo, interessante aos iniciados no tema. Essa é uma capacidade admirável de Ferraz presente em todo o livro: a condução de um texto envolvente, acessível e instigante que pode ser digerido por iniciantes, mas guarda em suas linhas a complexidade inescapável à nossa teoria, um genuíno trabalho de transmissão da psicanálise.

A obra de Flávio Ferraz comprova como é possível abordar temas complexos da teoria e da clínica psicanalíticas sem incorrer no risco de reduzi-los a compreensões achatadas por um excesso de didática e, ao mesmo tempo, não caindo no extremo oposto que seria a condução de um texto prolixo e inacessível a quem quer aproximar-se da psicanálise. Um livro muito bem-vindo àqueles que têm coragem de aventurar-se na clínica desafiadora e exigente da perversão.

 

Thais Siqueira - Psicanalista com graduação em Psicologia pela PUC-SP. Mestre e doutoranda em Psicologia Clínica pela mesma universidade. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e membro do grupo de trabalho Comunidade de Destino, do mesmo departamento.

ORCID: 0009-0001-7908-8644. Email: thais.siqueira.9@gmail.com



[1] Esse trabalho foi publicado recentemente na Revista Trivium: Estudos Interdisciplinares, Ano XVI, no 1., p. 121-124, maio de 2024. Disponível em https://ojs.uva.br/index.php/trivium/issue/current

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