O Blog do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes é um dos veículos de comunicação em que circulam informações, produção de conhecimento, experiências clínicas e de pesquisa de seus diferentes membros. A interlocução com o público, dentro e fora do Departamento, é uma maneira de disseminar a troca no campo da Psicanálise e possibilitar a ampliação do alcance das reflexões em pauta. Equipe do Blog: Fernanda Borges, Gisela Haddad, Gisele Senne de Moraes, Lucas R. Arruda e Paula Lima Freire.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Fala, homem! (Reflexões clínicas sobre os atendimentos de um grupo de escuta de homens)

O Blog publica um texto das psicanalistas Cristiane Gomes e Sabrina Arini, do grupo "Fala, homem!", contando suas impressões sobre a construção da masculinidade e sobre a escuta do sofrimento envolvida em um ideal de homem presente em nossa sociedade.

FALA, HOMEM!

(REFLEXÕES CLÍNICAS SOBRE OS ATENDIMENTOS DE UM GRUPO DE ESCUTA DE HOMENS)

Por Cristiane Gomes e Sabrina Arini

E o que falam os homens?

Ou, melhor colocado, o que escutamos, enquanto psicanalistas, nesta fala?

Como ruído de fundo, perpassando todo o discurso, uma surpreendente e flagrante fragilidade da posição masculina. O suposto sexo forte, escorado por seus inquestionáveis privilégios históricos, se revela permanentemente por um fio.

Um integrante do grupo chega para o encontro visivelmente alterado, e relata o assédio que acaba de sofrer, de um outro homem, no metrô. Se diz afrontado: - Ele achou que eu não era homem?

A masculinidade parece estar sempre em risco, precisando ser provada a todo momento, uma exigência constante e opressiva, impossível de ser satisfeita.

O achado clínico subverte a hipótese psicanalítica clássica, de que é a feminilidade que precisa ser construída pela menina, pois, para o menino, já de partida dotado de aparato sexual evidentemente superior, e heterossexual desde o seu primeiro objeto amoroso, a masculinidade seria naturalmente dada.

Neste sentido, a proposta de Stoller* sobre a construção da masculinidade fornece um argumento interessante: se é óbvio que o primeiro objeto de amor do menino é uma mulher, é também inegável que, nos primeiros estágios da vida, o menino experimenta um período de fusão e absoluta intimidade física e psíquica com a mãe, marca esta que introduz o perigo de um sentimento de unidade com uma mulher. Ainda segundo o autor, para atingir a masculinidade, o menino precisa enfrentar a separação da mãe, abrindo mão dessa intimidade idílica e se livrando dos vestígios de feminilidade que possa haver desenvolvido nesta simbiose.

Assim, entendemos que, para o homem, há algo do feminino que precisa ser radicalmente evitado. Seja na tentativa de separação da simbiose materna, como de qualquer resquício de fragilidade que remeta à identificação feminina. O masculino se ancora na ideia da total potência. E, para nossa surpresa, os homens realmente acreditam que esse homem absoluto, poderoso, inteiro, exista. Passam a vida tentando preencher os itens dessa ‘tabela’, buscando chegar o mais próximo possível desse ideal.

Mais do que isso, sentem uma angústia imensa por não ser esse homem idealizado, porque não o ser é praticamente deixar de ser homem. Por isso é tão comum que, entre eles, os xingamentos girem em torno dos termos 'maricas', 'gay', 'boiola', para citar alguns. E que poderiam ser substituídos pelos rótulos 'frágil', 'passivo', ou 'menos homem'.

Mas o que parece apenas uma brincadeira 'de meninos' traz em si um efeito muito nocivo, pois nesta construção do masculino, ser visto como 'menos homem' impacta profundamente a subjetividade deles, e faz com que passem a nortear as suas decisões em grande medida a partir deste referencial.

Ouvimos também, com muita clareza, o quanto os homens não aprenderam, de fato, a falar sobre os seus afetos. Porque esse é um dos ensinamentos de 'como ser um homem de verdade'. Não chorar, não valorizar os próprios sentimentos e, na maioria das vezes, não saber o que fazer com eles, integram a lista de regras a serem seguidas para se tornar um homem com H maiúsculo.

Então, quando são invadidos por afetos, emoções que não reconhecem e com as quais não sabem lidar, o único caminho possível e autorizado é o da violência. Não dispõem de nenhuma outra legenda para nomear o que sentem a não ser a raiva.

Ao relatar a perda recente da sua gata de estimação, um participante do grupo descreve a importância da gata para ele comparando-a ao aspirador de pó que, segundo disse, também dava um 'up' em sua vida. Completamente tomado por um sentimento que não podia nomear ou entender, ele grita com o grupo todo e sai, em um movimento bastante disruptivo.

Nesta busca constante por alcançar um modelo masculino inatingível, se desdobrando para tornar-se este homem 'sem buracos', acabam se transformando em sujeitos depressivos ou agressivos – consigo mesmos e com os outros.

Os homens morrem mais cedo, vão presos em maior número (são 96% da população carcerária), matam mais e suicidam‐se quatro vezes mais do que as mulheres. Se convertem em bombas relógio, prontos para explodir.

É essencial e urgente podermos sustentar a referência de outro modelo masculino possível. E, ao oferecer uma escuta sensível, criar a possibilidade desta fala em primeira pessoa que possibilita o reconhecimento e a nomeação dos afetos.

Porque ser homem, hoje, é matar ou morrer.

Ou estão totalmente inebriados neste lugar de absoluta potência, e capazes de aniquilar o outro para se sustentar ali, ou estão aniquilando a si mesmos exatamente por não conseguirem alcançar este ideal. É absolutamente sem saída.

Escutar os homens é uma tarefa inadiável.

(*) Stoller, R., Perversão: A forma erótica do ódio. São Paulo, Hedra, 2018, pp. 76-82.

Cristiane Gonzalez Gomes é psicanalista e engenheira, mestre em Sistemas de Informação. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e integrante do “Fala, homem!” desde 2019.

Sabrina Arini é psicanalista, faz o curso de Psicanálise: Teoria e Clínica do Departamento e coordena o projeto Roda de conversa: “Fala, homem!”. Coordenou grupos no projeto Nuraaj (Clínica do Instituto Sedes Sapientiae). É formada em comunicação social pela ESPM e mestre em comunicação pelo IED (Instituto Europeu de Design) de Barcelona.  

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

ENTRE OS FIOS DA HISTÓRIA E DA ESCRITA: o Índice Temático da Revista Percurso

Nossa colega Flávia Ripoli Martins nos conta sobre a organização do Índice Temático da Revista Percurso e sua contribuição junto à nova edição do Índice, que contempla os números 51 a 65 da revista do Departamento.

 

ENTRE OS FIOS DA HISTÓRIA E DA ESCRITA: o Índice Temático da Revista Percurso

                                      Flávia Ripoli Martins

 Publicada pela primeira vez no ano de 1988, Percurso foi criada, conforme registrado em seu primeiro Editorial (1988, p. 6), “como suporte de uma tessitura, feita de fios de diferentes escritas”, onde “os conceitos clínicos e teóricos são relançados, postos a trabalhar, num movimento de contínua recriação”. Após sessenta e cinco edições, ao longo dos últimos 33 anos, a Revista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae publicou uma quantidade substanciosa de trabalhos, cujo acesso requer uma ferramenta de busca ágil, passível de tornar a riqueza desse material acessível ao leitor ou pesquisador.

Com esse objetivo, em 1992, Renato Mezan organizou e publicou a primeira edição do Índice Temático1 e, desde então, este vêm sendo sucessivamente ampliado. O trabalho de indexação é feito manualmente e cada artigo, resenha, debate, debate clínico ou entrevista publicado em Percurso é incluído em algumas rubricas – entre 3 e 8 – de acordo com os temas abordados. Após a recente finalização do último bloco de revistas indexadas, que cobre os números 51 até 65, o Índice Temático encontra-se agora atualizado e integralmente disponível online, no site da Revista Percurso2. Desde a última versão3, a lista de verbetes foi ampliada para se adequar aos temas que recentemente ganharam relevância nas publicações e soma agora 128 rubricas, distribuídas entre nove eixos temáticos4.

Apesar da nova edição do Índice contemplar os números 51 a 65, curiosamente, o volume 52 – edição temática dedicada a refletir sobre as repercussões da ditadura civil-militar de 1964 nas subjetividades brasileiras –, foi o primeiro indexado. Composto por 27 trabalhos, a leitura desse número nos possibilita destacar três pontos centrais que, como o novelo que Ariadne entregou a Teseu, nos permitem seguir um caminho no labirinto de temas abordados pelas quinze edições catalogadas – cabe enfatizar, a indexação somou um total de 1354 entradas e esta análise qualitativa não pretende esgotar os dados extraídos do material. Sumariamente, esses pontos objetivam: discutir contribuições da prática psicanalítica diante das experiências de terror, violência, trauma, crueldade e barbárie; refletir sobre estes temas do ponto de vista teórico; e pensar as intersecções entre psicanálise e política, particularmente no que se refere à prática de uma psicanálise brasileira.

         A respeito do primeiro ponto mencionado acima, faz-se necessário enfatizar que os trabalhos publicados em Percurso possuem uma ênfase predominantemente clínica, priorizando explorar os mecanismos próprios do trabalho analítico, nos diversos espaços onde os psicanalistas estão inseridos. Este dado é evidenciado pelo fato de que o eixo “Questões clínicas e processo analítico” é o mais volumoso do Índice e neste figuram também as duas com maior número de entradas. A primeira, “Relatos Clínicos” revela que 65 artigos, ou 1 em cada 5 (20%), contêm materiais provenientes da prática da psicanálise. Em consonância com esse dado, o verbete “Funcionamento do psicanalista” é o segundo com maior número de entradas (59 – 19%) e a rubrica “Processo psicanalítico” também possui um número significativo de menções (39 – 12%). Além disso, cabe reiterar que o eixo “Metapsicologia e funcionamento mental” – que contempla o maior número de rubricas (43) – é o segundo com maior número de entradas (311) e entre estas, as maiores rubricas são as que privilegiam os aspectos dinâmico/econômico, mais próximas do trabalho psicanalítico.

         A partir do Índice, constata-se que grande parte das publicações citadas nos eixos clínico e metapsicológicos, se dedicam também a questões sociais e suas repercussões nas subjetividades e na prática psicanalítica. As 11 rubricas que compõem o eixo “Psicanálise e sociedade” foram mencionadas 194 vezes, ou seja, 1 em cada 2 artigos faz referência aos verbetes que objetivam pensar as relações entre Psicanálise, cultura contemporânea, política e violência. Este é também o eixo com maior número de novos verbetes incluídos (5), sendo estes: “Psicanálise e gênero”, “Psicanálise e relações raciais”, “Psicanálise e migração”, “Deficiência, pessoas com” e “Psicanálise e pandemia de COVID-19”.

A crescente relevância conferida a esses temas nas publicações de Percurso pode ser atribuída ao resultado de décadas de luta dos movimentos negro, decolonial, feminista e LGBTQIA+, que nas ruas e nos divãs se fazem ouvir pelos analistas e os convocam a fazer a teoria trabalhar. Mas, para além disso, a relevância do eixo “Psicanálise e sociedade”, somada à constatação de que 13% dos trabalhos publicados estão incluídos no verbete “Psicanálise no Brasil” (40 entradas), destaca a ênfase dada pelas publicações de Percurso à uma psicanálise que, como discute Miriam Chnaiderman (1998, p. 28), “é sempre atravessada pela história, pelo contexto em que ela acontece” e “é também uma prática social”.

E os fios da história do Brasil se entrelaçam nas publicações de Percurso ao longo dos últimos nove anos. História marcada por três séculos de escravização, pela desigualdade social e a violência contra a população preta e periférica, o golpe-civil militar de 1964, as políticas reacionárias decorrentes do golpe de 2016, o temor causado pelas eleições de 2018, os retrocessos provocados pelo atual governo e os efeitos traumáticos da pandemia de COVID-19.

Em Percurso, escrever sobre esses eventos não é equivalente a relatá-los. Como podemos observar nos trabalhos dedicados, por exemplo, à Clínica do Testemunho e a apresentação das rodas de conversa do Coletivo Escuta Sedes, assim como na entrevista realizada com o Instituto AMMA Psique e Negritude5 e em grande parte das publicações figuram no número 64 – o primeiro publicado após o início da pandemia de COVID-19 –, a prática e a escrita psicanalítica não são a-históricas e apolíticas e, na sua dimensão ética, devem estar vinculada à luta pelos direitos humanos e pela democracia. Escrever sobre os eventos históricos e seus efeitos subjetivos é, portanto, uma forma de registrá-los, não permitindo que a violência, o trauma e a barbárie sejam esquecidos ou silenciados e possibilitando a criação de formas coletivas de intervenção.

No artigo A inquietação das palavras6, Pontalis (1991, p. 129-130) se pergunta o que faz o psicanalista trocar o divã pela escrivaninha e ao comparar o trabalho do sonho, do luto e da escrita, afirma que “escrever é também sonhar, é também estar de luto, sonhar-se (e sonhar o mundo, para os maiores), ser animado de um desejo louco de posse das coisas pela linguagem e ter a cada página, a cada palavra, a prova de que nunca se obtém exatamente o resultado que se quer”. Penso que, talvez, a matéria-prima da tessitura de fios das diferentes escritas que compõem os artigos de Percurso seja a aposta de que escrever é uma forma de transformar a teoria e o mundo que habitamos. Escrever possibilita o estabelecimento e manutenção de laços que nos mantêm em movimento, em tempos em que tudo parece nos convidar a paralisar. Escrever é sustentar a aposta na palavra e a busca incessante por formas de resistência. Escrever é também sonhar e precisamos continuar escrevendo para, assim, também podermos continuar sonhando a transformação. 

Flávia Ripoli Martins é organizadora do Índice Temático da Revista Percurso, aluna do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, psicóloga e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.

Notas:

1A primeira edição do Índice Temático está disponível no Boletim do Departamento publicado em dezembro de 1992.

2O Índice Temático atualizado encontra-se disponível em:  http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=ind_tematico

3 A última versão do Índice Temático, que contempla até o número 49/50, foi organizada por Berta Hoffmann Azevedo.

4 Uma explicação detalhada sobre a composição dos eixos temáticos pode ser encontrada na segunda edição do Índice Temático, disponível no Boletim do Departamento publicado em dezembro de 1994. Com relação a essa versão, foi feita apenas uma modificação. Em razão da ênfase dada às questões sociais nas últimas quinze edições, o eixo “Psicanálise e sociedade” foi criado, o que implicou em uma redistribuição das rubricas que compunham o eixo “Psicanálise aplicada”.  

5 Os artigos mencionados nesse ponto encontram-se incluídos nas referências bibliográficas.

6 Agradeço à professora Paula Francisquetti pela gentileza de encaminhar o texto de Pontalis, apresentado por ela no Seminário “O inconsciente freudiano. Paradigma metapsicológicos do sonho”, do primeiro ano do Curso de Psicanálise.

Referências bibliográficas:

Chaui-Berlinck, L.; Mannrich, L. G.; Vicente, M. F.; Ganhito, N. C. P.; Menezes, S. L. Rodas de conversa do coletivo Escuta Sedes: um espaço entre as ruas e o divã. Percurso, 65 (2), 2020.

Chnaiderman, M. Existe uma psicanálise brasileira?. Percurso, 20 (2), 1998.

Editorial. Percurso, 1, 1988.

Ocariz, M. C.; Rudge, A. M.; Sciulli, M. C. G.; Pereira, M. L. I. E.; Navarro, N. C. O trauma, a palavra e a memória na Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae. Percurso, 52 (1), 2014.

Pontalis, J. B. A força da atração. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

Silva, M. L.; Martins, M. S.; Faustino, D. M. Racismo: por uma psicanálise atenta. Percurso, 63 (2), 2019.

Vannuchi, M. B. C. C. Afinal, o que faz um psicanalista na Clínica do Testemunho?. Percurso, 52 (1), 2014.