ENTRE OS FIOS DA HISTÓRIA E DA ESCRITA: o Índice Temático da Revista Percurso

Nossa colega Flávia Ripoli Martins nos conta sobre a organização do Índice Temático da Revista Percurso e sua contribuição junto à nova edição do Índice, que contempla os números 51 a 65 da revista do Departamento.

 

ENTRE OS FIOS DA HISTÓRIA E DA ESCRITA: o Índice Temático da Revista Percurso

                                      Flávia Ripoli Martins

 Publicada pela primeira vez no ano de 1988, Percurso foi criada, conforme registrado em seu primeiro Editorial (1988, p. 6), “como suporte de uma tessitura, feita de fios de diferentes escritas”, onde “os conceitos clínicos e teóricos são relançados, postos a trabalhar, num movimento de contínua recriação”. Após sessenta e cinco edições, ao longo dos últimos 33 anos, a Revista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae publicou uma quantidade substanciosa de trabalhos, cujo acesso requer uma ferramenta de busca ágil, passível de tornar a riqueza desse material acessível ao leitor ou pesquisador.

Com esse objetivo, em 1992, Renato Mezan organizou e publicou a primeira edição do Índice Temático1 e, desde então, este vêm sendo sucessivamente ampliado. O trabalho de indexação é feito manualmente e cada artigo, resenha, debate, debate clínico ou entrevista publicado em Percurso é incluído em algumas rubricas – entre 3 e 8 – de acordo com os temas abordados. Após a recente finalização do último bloco de revistas indexadas, que cobre os números 51 até 65, o Índice Temático encontra-se agora atualizado e integralmente disponível online, no site da Revista Percurso2. Desde a última versão3, a lista de verbetes foi ampliada para se adequar aos temas que recentemente ganharam relevância nas publicações e soma agora 128 rubricas, distribuídas entre nove eixos temáticos4.

Apesar da nova edição do Índice contemplar os números 51 a 65, curiosamente, o volume 52 – edição temática dedicada a refletir sobre as repercussões da ditadura civil-militar de 1964 nas subjetividades brasileiras –, foi o primeiro indexado. Composto por 27 trabalhos, a leitura desse número nos possibilita destacar três pontos centrais que, como o novelo que Ariadne entregou a Teseu, nos permitem seguir um caminho no labirinto de temas abordados pelas quinze edições catalogadas – cabe enfatizar, a indexação somou um total de 1354 entradas e esta análise qualitativa não pretende esgotar os dados extraídos do material. Sumariamente, esses pontos objetivam: discutir contribuições da prática psicanalítica diante das experiências de terror, violência, trauma, crueldade e barbárie; refletir sobre estes temas do ponto de vista teórico; e pensar as intersecções entre psicanálise e política, particularmente no que se refere à prática de uma psicanálise brasileira.

         A respeito do primeiro ponto mencionado acima, faz-se necessário enfatizar que os trabalhos publicados em Percurso possuem uma ênfase predominantemente clínica, priorizando explorar os mecanismos próprios do trabalho analítico, nos diversos espaços onde os psicanalistas estão inseridos. Este dado é evidenciado pelo fato de que o eixo “Questões clínicas e processo analítico” é o mais volumoso do Índice e neste figuram também as duas com maior número de entradas. A primeira, “Relatos Clínicos” revela que 65 artigos, ou 1 em cada 5 (20%), contêm materiais provenientes da prática da psicanálise. Em consonância com esse dado, o verbete “Funcionamento do psicanalista” é o segundo com maior número de entradas (59 – 19%) e a rubrica “Processo psicanalítico” também possui um número significativo de menções (39 – 12%). Além disso, cabe reiterar que o eixo “Metapsicologia e funcionamento mental” – que contempla o maior número de rubricas (43) – é o segundo com maior número de entradas (311) e entre estas, as maiores rubricas são as que privilegiam os aspectos dinâmico/econômico, mais próximas do trabalho psicanalítico.

         A partir do Índice, constata-se que grande parte das publicações citadas nos eixos clínico e metapsicológicos, se dedicam também a questões sociais e suas repercussões nas subjetividades e na prática psicanalítica. As 11 rubricas que compõem o eixo “Psicanálise e sociedade” foram mencionadas 194 vezes, ou seja, 1 em cada 2 artigos faz referência aos verbetes que objetivam pensar as relações entre Psicanálise, cultura contemporânea, política e violência. Este é também o eixo com maior número de novos verbetes incluídos (5), sendo estes: “Psicanálise e gênero”, “Psicanálise e relações raciais”, “Psicanálise e migração”, “Deficiência, pessoas com” e “Psicanálise e pandemia de COVID-19”.

A crescente relevância conferida a esses temas nas publicações de Percurso pode ser atribuída ao resultado de décadas de luta dos movimentos negro, decolonial, feminista e LGBTQIA+, que nas ruas e nos divãs se fazem ouvir pelos analistas e os convocam a fazer a teoria trabalhar. Mas, para além disso, a relevância do eixo “Psicanálise e sociedade”, somada à constatação de que 13% dos trabalhos publicados estão incluídos no verbete “Psicanálise no Brasil” (40 entradas), destaca a ênfase dada pelas publicações de Percurso à uma psicanálise que, como discute Miriam Chnaiderman (1998, p. 28), “é sempre atravessada pela história, pelo contexto em que ela acontece” e “é também uma prática social”.

E os fios da história do Brasil se entrelaçam nas publicações de Percurso ao longo dos últimos nove anos. História marcada por três séculos de escravização, pela desigualdade social e a violência contra a população preta e periférica, o golpe-civil militar de 1964, as políticas reacionárias decorrentes do golpe de 2016, o temor causado pelas eleições de 2018, os retrocessos provocados pelo atual governo e os efeitos traumáticos da pandemia de COVID-19.

Em Percurso, escrever sobre esses eventos não é equivalente a relatá-los. Como podemos observar nos trabalhos dedicados, por exemplo, à Clínica do Testemunho e a apresentação das rodas de conversa do Coletivo Escuta Sedes, assim como na entrevista realizada com o Instituto AMMA Psique e Negritude5 e em grande parte das publicações figuram no número 64 – o primeiro publicado após o início da pandemia de COVID-19 –, a prática e a escrita psicanalítica não são a-históricas e apolíticas e, na sua dimensão ética, devem estar vinculada à luta pelos direitos humanos e pela democracia. Escrever sobre os eventos históricos e seus efeitos subjetivos é, portanto, uma forma de registrá-los, não permitindo que a violência, o trauma e a barbárie sejam esquecidos ou silenciados e possibilitando a criação de formas coletivas de intervenção.

No artigo A inquietação das palavras6, Pontalis (1991, p. 129-130) se pergunta o que faz o psicanalista trocar o divã pela escrivaninha e ao comparar o trabalho do sonho, do luto e da escrita, afirma que “escrever é também sonhar, é também estar de luto, sonhar-se (e sonhar o mundo, para os maiores), ser animado de um desejo louco de posse das coisas pela linguagem e ter a cada página, a cada palavra, a prova de que nunca se obtém exatamente o resultado que se quer”. Penso que, talvez, a matéria-prima da tessitura de fios das diferentes escritas que compõem os artigos de Percurso seja a aposta de que escrever é uma forma de transformar a teoria e o mundo que habitamos. Escrever possibilita o estabelecimento e manutenção de laços que nos mantêm em movimento, em tempos em que tudo parece nos convidar a paralisar. Escrever é sustentar a aposta na palavra e a busca incessante por formas de resistência. Escrever é também sonhar e precisamos continuar escrevendo para, assim, também podermos continuar sonhando a transformação. 

Flávia Ripoli Martins é organizadora do Índice Temático da Revista Percurso, aluna do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, psicóloga e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.

Notas:

1A primeira edição do Índice Temático está disponível no Boletim do Departamento publicado em dezembro de 1992.

2O Índice Temático atualizado encontra-se disponível em:  http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=ind_tematico

3 A última versão do Índice Temático, que contempla até o número 49/50, foi organizada por Berta Hoffmann Azevedo.

4 Uma explicação detalhada sobre a composição dos eixos temáticos pode ser encontrada na segunda edição do Índice Temático, disponível no Boletim do Departamento publicado em dezembro de 1994. Com relação a essa versão, foi feita apenas uma modificação. Em razão da ênfase dada às questões sociais nas últimas quinze edições, o eixo “Psicanálise e sociedade” foi criado, o que implicou em uma redistribuição das rubricas que compunham o eixo “Psicanálise aplicada”.  

5 Os artigos mencionados nesse ponto encontram-se incluídos nas referências bibliográficas.

6 Agradeço à professora Paula Francisquetti pela gentileza de encaminhar o texto de Pontalis, apresentado por ela no Seminário “O inconsciente freudiano. Paradigma metapsicológicos do sonho”, do primeiro ano do Curso de Psicanálise.

Referências bibliográficas:

Chaui-Berlinck, L.; Mannrich, L. G.; Vicente, M. F.; Ganhito, N. C. P.; Menezes, S. L. Rodas de conversa do coletivo Escuta Sedes: um espaço entre as ruas e o divã. Percurso, 65 (2), 2020.

Chnaiderman, M. Existe uma psicanálise brasileira?. Percurso, 20 (2), 1998.

Editorial. Percurso, 1, 1988.

Ocariz, M. C.; Rudge, A. M.; Sciulli, M. C. G.; Pereira, M. L. I. E.; Navarro, N. C. O trauma, a palavra e a memória na Clínica do Testemunho Instituto Sedes Sapientiae. Percurso, 52 (1), 2014.

Pontalis, J. B. A força da atração. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

Silva, M. L.; Martins, M. S.; Faustino, D. M. Racismo: por uma psicanálise atenta. Percurso, 63 (2), 2019.

Vannuchi, M. B. C. C. Afinal, o que faz um psicanalista na Clínica do Testemunho?. Percurso, 52 (1), 2014.

Comentários

  1. Flavia
    Parabens pelo trabalho intenso e minucioso .
    Iniciado por Berta Hoffman , voce continua a tradição percursiana de paixão pelas palavras ,seus,sentidos e sua polifonia
    na composição dos textos , nos quais deve ter mergulhado !!
    ABraço grato : seu trabalho vai facilitar nossas consultas e torná-las mais acessiveis .
    MANIA DEWEIK

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