O Blog do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes é um dos veículos de comunicação em que circulam informações, produção de conhecimento, experiências clínicas e de pesquisa de seus diferentes membros. A interlocução com o público, dentro e fora do Departamento, é uma maneira de disseminar a troca no campo da Psicanálise e possibilitar a ampliação do alcance das reflexões em pauta. Equipe do Blog: Fernanda Borges, Gisela Haddad, Gisele Senne de Moraes, Lucas R. Arruda e Paula Lima Freire.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Onde pode realmente inscrever-se, em cada um de nós, a origem de um processo cujo produto final corre o risco de ser o Racismo?

Maria Laurinda Sousa, colunista do Blog, se inspira em diferentes fontes - uma entrevista, um documentário, um poema, um pensador - para discutir sobre o racismo.


Onde pode realmente inscrever-se, em cada um de nós, a origem

de um processo cujo produto final corre o risco de ser o Racismo?

J.-B. Pontalis


Em entrevista com Albert Jacquard, geneticista e ensaísta francês, intitulada “Um cara que não me agrada”, Pontalis desenvolve com ele uma conversa sobre o Racismo e a Xenofobia.

Jacquard começa a conversa defendendo o valor da ciência e sua crença inicial de que tendo a biologia colocado por terra a impossibilidade de uma definição das raças humanas, o racismo deveria desaparecer. No entanto, isso não ocorreu; o Racismo continuou existindo e se tornando cada vez mais significativo como estratégia de exclusão e tentativa de aniquilamento. Pontalis, em sua resposta, resgata os mecanismos sociais – as condições políticas e econômicas que marcaram sua emergência, e coloca em relevo os fatores psíquicos que sustentam essa violência e sua dificuldade de erradicação: o medo ao estranho familiar, a projeção do ódio de si, a paranoia. E faz uma afirmação contundente que parece tão apropriada ao fanatismo de nossos tempos: “Uma paixão nunca cede a uma argumentação, por mais irrefutável que possa ser, nunca cede diante dos fatos, por mais comprobatórios que sejam, os saberes nunca têm razão frente a uma convicção”.

Será?

Ele próprio parece se contradizer quando lembra os ensaios de Gobineau e a impossibilidade de que encontrem reconhecimento hoje em dia. Gobineau nasceu na França em 1816 e faleceu em 1882, tendo servido como diplomata no Rio de Janeiro, durante um ano em 1869-1870.  Escritor, filósofo e diplomata foi um feroz defensor da desigualdade das raças. Para ele, o Brasil não tinha futuro pois estava povoado por raças que julgava inferiores; sua única saída seria o incentivo à imigração de “raças europeias”, consideradas superiores. Se essas obras, como as de Gobineau, cujo livro mais famoso foi Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), em que trata da eugenia e do racismo, perderam seu valor de verdade, isso se deve à construção de outros discursos desenvolvidos pela ciência e pelas artes e também aos movimentos em defesa dos direitos humanos e da justiça. E às denúncias constantes dessas violências.

Eu Não sou seu negro, documentário filmado em 2016, é também uma obra de denúncia ao discurso da inferioridade racial, do reconhecimento dos mecanismos projetivos da branquitude e da violência da sujeição que se tenta impingir a essa parcela da população, tentando evitar sua mobilidade. Baseado no livro não terminado de James Baldwin, Remember this house, em que são relatados os assassinatos e a vida de três líderes negros da história política americana, o manuscrito foi adaptado por Raul Peck, diretor do filme, ele também uma pessoa negra, haitiano, que juntou a esses relatos imagens de outras lutas históricas por justiça e igualdade feita por movimentos negros atuais. Em entrevista à National Public Radio, Raul Peck disse que uma de suas responsabilidades era salvar parte das memórias de seu povo e garantir que não ficassem invisibilizados.

Se escrevo sobre a entrevista que me impulsionou a este relato é porque, fiel às afirmações de Freud que via na literatura um saber maior que aquele que a Psicanálise demorava para apreender, tive, logo no início do texto de Pontalis, a lembrança do poema de António Gedeão (1906-1997), poeta português:

 

Lágrima de preta

Encontrei uma preta

que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar.

 

Recolhi a lágrima

com todo o cuidado

num tubo de ensaio

bem esterilizado

 

Olhei-a de um lado,

do outro e de frente:

tinha um ar de gota

muito transparente.

 

Mandei vir os ácidos,

as bases e os sais,

as drogas usadas

em casos que tais.

 

Ensaiei a frio,

experimentei ao lume,

de todas as vezes

deu-me o que é costume:

 

nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.         

        

Termino festejando o centenário do nascimento de Paulo Freire, celebrado neste mês de setembro, e resgato uma de suas afirmações: “não é possível viver sem sonhos, sem curiosidade, sem práticas sociais que possam legitimar a existência de cada um”.

E cabe acrescentar o que diz Pontalis na entrevista que citei no início deste texto: “o Racismo só desaparecerá com o reconhecimento da existência de identidades múltiplas, heterogêneas e móveis e não com o triunfo do Um, necessariamente destrutivo”.

M. Laurinda R. Sousa é psicanalista e escritora. É membro do Departamento de Psicanálise, e colunista do Blog do Departamento.