Onde pode realmente inscrever-se, em cada um de nós, a origem de um processo cujo produto final corre o risco de ser o Racismo?
Maria Laurinda Sousa,
colunista do Blog, se inspira em diferentes fontes - uma entrevista, um
documentário, um poema, um pensador - para discutir sobre o racismo.
Onde
pode realmente inscrever-se, em cada um de nós, a origem
de
um processo cujo produto final corre o risco de ser o Racismo?
J.-B.
Pontalis
Em
entrevista com Albert Jacquard, geneticista e ensaísta francês, intitulada “Um
cara que não me agrada”, Pontalis desenvolve com ele uma conversa sobre o
Racismo e a Xenofobia.
Jacquard
começa a conversa defendendo o valor da ciência e sua crença inicial de que
tendo a biologia colocado por terra a impossibilidade de uma definição das
raças humanas, o racismo deveria desaparecer. No entanto, isso não ocorreu; o
Racismo continuou existindo e se tornando cada vez mais significativo como
estratégia de exclusão e tentativa de aniquilamento. Pontalis, em sua resposta,
resgata os mecanismos sociais – as condições políticas e econômicas que
marcaram sua emergência, e coloca em relevo os fatores psíquicos que sustentam
essa violência e sua dificuldade de erradicação: o medo ao estranho familiar, a
projeção do ódio de si, a paranoia. E faz uma afirmação contundente que parece
tão apropriada ao fanatismo de nossos tempos: “Uma paixão nunca cede a uma
argumentação, por mais irrefutável que possa ser, nunca cede diante dos fatos,
por mais comprobatórios que sejam, os saberes nunca têm razão frente a uma
convicção”.
Será?
Ele
próprio parece se contradizer quando lembra os ensaios de Gobineau e a
impossibilidade de que encontrem reconhecimento hoje em dia. Gobineau nasceu na
França em 1816 e faleceu em 1882, tendo servido como diplomata no Rio de
Janeiro, durante um ano em 1869-1870. Escritor,
filósofo e diplomata foi um feroz defensor da desigualdade das raças. Para ele,
o Brasil não tinha futuro pois estava povoado por raças que julgava inferiores;
sua única saída seria o incentivo à imigração de “raças europeias”,
consideradas superiores. Se essas obras, como as de Gobineau, cujo livro mais
famoso foi Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), em que
trata da eugenia e do racismo, perderam seu valor de verdade, isso se deve à
construção de outros discursos desenvolvidos pela ciência e pelas artes e
também aos movimentos em defesa dos direitos humanos e da justiça. E às
denúncias constantes dessas violências.
Eu
Não sou seu negro, documentário filmado em 2016, é também
uma obra de denúncia ao discurso da inferioridade racial, do reconhecimento dos
mecanismos projetivos da branquitude e da violência da sujeição que se tenta
impingir a essa parcela da população, tentando evitar sua mobilidade. Baseado
no livro não terminado de James Baldwin, Remember this house, em que são
relatados os assassinatos e a vida de três líderes negros da história política
americana, o manuscrito foi adaptado por Raul Peck, diretor do filme, ele
também uma pessoa negra, haitiano, que juntou a esses relatos imagens de outras
lutas históricas por justiça e igualdade feita por movimentos negros atuais. Em
entrevista à National Public Radio, Raul Peck disse que uma de suas
responsabilidades era salvar parte das memórias de seu povo e garantir que não
ficassem invisibilizados.
Se
escrevo sobre a entrevista que me impulsionou a este relato é porque, fiel às
afirmações de Freud que via na literatura um saber maior que aquele que a
Psicanálise demorava para apreender, tive, logo no início do texto de Pontalis,
a lembrança do poema de António Gedeão (1906-1997), poeta português:
Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que
estava a chorar,
pedi-lhe
uma lágrima
para
a analisar.
Recolhi
a lágrima
com
todo o cuidado
num
tubo de ensaio
bem
esterilizado
Olhei-a
de um lado,
do
outro e de frente:
tinha
um ar de gota
muito
transparente.
Mandei
vir os ácidos,
as
bases e os sais,
as
drogas usadas
em
casos que tais.
Ensaiei
a frio,
experimentei
ao lume,
de
todas as vezes
deu-me
o que é costume:
nem
sinais de negro,
nem
vestígios de ódio.
Água
(quase tudo)
e
cloreto de sódio.
Termino
festejando o centenário do nascimento de Paulo Freire, celebrado neste mês de
setembro, e resgato uma de suas afirmações: “não é possível viver sem sonhos,
sem curiosidade, sem práticas sociais que possam legitimar a existência de cada
um”.
E
cabe acrescentar o que diz Pontalis na entrevista que citei no início deste
texto: “o Racismo só desaparecerá com o reconhecimento da existência de identidades
múltiplas, heterogêneas e móveis e não com o triunfo do Um, necessariamente
destrutivo”.
M. Laurinda R. Sousa é psicanalista e escritora. É membro do Departamento de Psicanálise, e colunista do Blog do Departamento.
Excelente texto como sempre, querida Laurinda!
ResponderExcluir👏👏👏belo texto!!! E obrigada pelo resgate dessa poesia incrível!
ResponderExcluirBelo e inspirador texto que nos leva por vários caminhos a reafirmar nossa esperança e luta pelos direitos a vida digna de todos os humanos. Grata Laurinda
ResponderExcluirMuito bom Laurinda! Resgates importantes da poesia do diálogo e da memória.
ResponderExcluirLindo texto Laurinda!!
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