‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon
Nossa
colega Camila Junqueira conta ao Departamento de Psicanálise suas impressões
sobre a palestra do psicanalista René Roussillon, intitulada Análise das
Necessidades do Ego, organizada pelo Centro de Estudos Psicanalíticos em
18/09/21. Confiram no Blog.
‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da
clínica contemporânea por René Roussillon
Camila Junqueira
Na
ensolarada manhã do dia 18 de setembro de 2021, René Roussillon nos brindou com
sua instigante palestra sobre a ‘análise das necessidades do ego’, organizada
pelo Centro de Estudos Psicanalíticos em São Paulo. Isto sem sair do
conforto de sua casa, em Lyon, certamente um ganho, entre tantas mazelas, que a
pandemia de covid-19 nos trouxe.
Ao
falar sobre as necessidades do ego, Roussillon nos lembrou que a dedicação ao
estudo do Eu não se dá sem certa polêmica, ao menos na França, desde que Lacan
propôs, através de seu retorno a Freud, a importância da ‘lógica do desejo’ e
do afastamento dos engodos do campo imaginário proporcionados pelo Eu. É digno
de nota que Lacan empreendeu nesse caminho após interromper sua análise com
Rudolf Lowenstein, que veio a ser posteriormente um autor importante da
Psicologia do Ego norte-americana. Roussillon também lamentou a babelização da
psicanálise como um fator de enfraquecimento do campo analítico, pois certos
avanços teórico-clínicos ficam restritos a certos redutos, quando deveríamos
ser capazes de fazer as psicanálises conversarem.
No
entanto, para Roussillon, o estudo das necessidades do Eu é fundamental para
uma compreensão dos sofrimentos ligados ao déficit na capacidade de
simbolização. Também descritas como borderline e casos-limite, as
patologias narcísico-identitárias advêm de traumas primários no processo de
constituição do psiquismo, devido à decepção do bebê com a pouca maleabilidade
do ambiente, que falha num momento em que ele ainda não possui as estruturas
psíquicas capazes de simbolizar e suportar a ausência do objeto. Esses traumas
se inscrevem no psiquismo e comprometem a passagem do narcisismo primário ao
secundário, ou seja, a formação suficientemente concisa da identidade que
pertence ao núcleo em torno do qual o Eu se organiza.
Roussillon
toma o conceito de necessidades do Eu de Winnicott, autor que não nega a
existência, nem despreza a importância das pulsões para o desenvolvimento
emocional, embora proponha a existência das necessidades do Eu como uma fase
anterior, e em seguida de um nível concomitante, à importância da pulsão na
constituição do psiquismo. O bom desenvolvimento das necessidades do Eu é
garantido pela provisão ambiental proporcionada pela mãe identificada com o seu
bebê, que assegura a ilusão de onipotência, o ritmo adequado de desilusão que
caracteriza o estabelecimento da diferença ente eu e não-eu. Roussillon
complementa o pensamento winnicottiano, afirmando que desejos podem e devem ser
frustrados, inscrevendo o sujeito na castração simbólica, ainda que isso
produza sofrimentos neuróticos. As necessidades do Eu, entretanto, não podem
ser frustradas sem o risco do desenvolvimento de patologias graves.
Antes
de seguir com o relato, considero fundamental revisitar as ideias de Roussillon
sobre as necessidades do Eu, tema que vem desenvolvendo há vários anos, e cuja
fala neste ensolarado sábado não retomou a definição. No livro Manual da
Prática Clínica em Psicologia e Psicopatologia (traduzido para o português
em 2019 pela Blucher, mas publicado na França em 2012), ele considera as
necessidades do Eu “o conjunto das condições do trabalho de simbolização e da
apropriação subjetiva, tanto primária quanto secundária (…), como o conjunto
daquilo que o Eu-sujeito tem necessidade para realizar o trabalho de atribuição
de forma, de colocação em cena e de atribuição de sentido da experiência
subjetiva vivida; o que lhe é necessário, num dado momento, para a simbolização
e apropriação subjetiva desta” (p. 201).
Roussillon
chega então ao cerne de seu argumento: o aparelho psíquico, o qual tem o
funcionamento do Eu como central, é um aparelho de transformações daquilo que
chega pela via sensorial, e que, transformado, pode ser pensado e dá sentido à
experiência vivida. Esse aparelho é formado por envelopes psíquicos. O primeiro
deles segue o modelo do Eu-pele, desenvolvido por Didier Anzieu (analista de
Roussillon), e o outro, um envelope visual, segue o modelo do estádio do
espelho, desenvolvido por Lacan, que aponta para o desenvolvimento da imagem
antecipada e unificada de um Eu, acrescido pelas contribuições de Winnicott
sobre o rosto da mãe como espelho, funcionando como um duplo que devolve à
criança uma imagem processada de si mesmo. Os limites do aparelho psíquico só
se constituem quando as necessidades do Eu são garantidas por um ambiente
suficientemente bom.
Foi
nesse momento que Roussillon mostrou através de sua câmera uma imagem impressa
da representação gráfica do aparelho psíquico que Freud construiu em 1923,
acrescido dessas duas fronteiras, a corporal e a visual, entre o Isso e o Eu.
Essas fronteiras, os tais envelopes psíquicos do Eu, são a condição de
possibilidade de transformação do Isso em Eu: “Onde estava o Isso, o Eu deve
advir”, retoma Roussillon, citando Freud (1933).
Ao
ver a representação gráfica do psíquico articulada por Roussillon confesso
certa emoção, pois faz eco com a ideia de uma metapsicologia dos limites
necessária à compreensão dos sofrimentos que são expressão direta da
precariedade dos limites psíquicos (Junqueira, C, 2019, Metapsicologia dos
Limites, Blucher).
Roussillon
já havia feito no início de sua fala uma longa digressão sobre seu interesse
atual em estudar o apoio das necessidades e funções do Eu no funcionamento
cerebral revelado pela neurologia mais recente. Ele recomentou vivamente a
leitura de um livro de Francisco Varela (Cols.) que trata da ‘inscrição
corporal do espírito’ (Inscription corporelle de
l'esprit: Sciences cognitives et expérience humaine, 1993, Points). A isso ele acrescentou a ideia de
que não é à toa que Freud propôs a associação livre, pois o funcionamento
cerebral é associativo, e sustenta o funcionamento mental. Roussillon sugeriu
então que os analistas prestem mais atenção ao texto de Freud (1924), Notas
sobre o bloco mágico, no qual Freud retoma sua explicação sobre o
funcionamento da percepção e da memória ilustrado pelo funcionamento do bloco
mágico. A ênfase no momento me pareceu ser a de que há marcas (perceptivas) que
se desfazem, abrindo espaço para novas experiências, mas há também marcas (de
memória inconsciente) que ficam gravadas, mesmo que fora do alcance do aparelho
perceptivo. Essas marcas de memória inconsciente dão materialidade aos
envelopes psíquicos e inscrevem os limites do psiquismo que contêm as etapas da
transformação da percepção sensorial em representação simbólica.
Ao
trazer essas questões metapsicológicas para a clínica, Roussillon foi bastante
claro em propor que não devemos nos limitar a buscar levantar o recalque do
paciente. Precisamos trabalhar com a transformação da pulsão, pois é através da
relação com o outro, com um duplo que é semelhante e diferente, que os
envelopes, transformadores, poderão se instalar. O analista pode criar com suas
falas um envelope narrativo, não tanto pelo conteúdo delas, mas pelo prazer
compartilhado na busca de sentido para experiências que, a princípio, se dão
apenas em um nível sensorial. Comentou ainda que a construção do analista, que
forma esse envelope narrativo, não deixa de ser uma sugestão. No entanto, a
sugestão lhe parece essencial para o funcionamento em duplo, e complementou,
indicando que já desenvolveu junto de Jean-Luc Donnet a ideia de que ‘é preciso
a sugestão para sair da sugestão’.
Vale
dizer: Roussillon está tão interessado no tema das necessidades do Eu que já
falou sobre isso em abril deste ano na Associação de Psicanálise Argentina
(https://www.youtube.com/watch?v=GZPOp63CCcA) e retomará esse tema em novembro
próximo em encontro organizado pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
Camila Junqueira é psicanalista, doutora e pós-doutora pela USP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituo Sedes e coordenadora de curso de extensão sobre problemáticas alimentares nesse mesmo instituto.
Querida Camila
ResponderExcluirGratidão por este compartihamento. Nossa colega Marcia Bozon vem trabalhando nessa direção também junto a você e Roussillon. Os textos de 1923 e 1931 de Sabina Spielrein antecipan a necessidade de colocat a imagem cinestésico visual como anterior ao visual e englobado por ele na origem do pensamento e é muito rica esta colocação dela na passagem isso e Eu na borda mesmo da constituição dessa separação.
Camila: obrigada pela sintese. Eva
ResponderExcluircamila, grata pela generosidade de compartilhar conosco o pensamento de um autor tão interessante quanto o Roussillon.
ResponderExcluirLendo seu texto observo como estamos próximos, os diversos pensadores da Psicanálise, apesar das diferenças de abordagem e terminologias.
ResponderExcluirObrigada, Camila, por partilhar essa escuta da fala e do texto de Roussillon. Caminhos muito importantes para a clínica
ResponderExcluirExcelente, obrigada, Camila! Eu tbm estava presente nesse sábado ensolarado, na palestra, e seu resumo foi bastante fidedigno, pontual e profundo. As dificuldades que o bebê ou criança pequena se depara quando em um ambiente pouco maleável são implacáveis no desenvolvimento, na fase anterior à aquisição da linguagem, como coloca Roussillon. Penso que dificuldades alimentares importantes podem ter origem tbm nessa fase, quando ainda não há recursos egoicos, e, portanto, os sinais internos ligados à fome e à saciedade estão longe de poderem ser simbolizados. Gostaria de saber o que vc pensa sobre isso e agradeço novamente por sua valiosa contribuição. Patricia Spada
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