A mente do analista

Ivan Martins resenha "A mente do analista", de Luis Claudio Figueiredo, livro em que ele se empenha em apresentar aspectos do que considera a boa escuta psicanalítica – aquela que, alimentada pela ética da reserva, procura o susto e o inesperado, em vez da segurança da repetição. 

 

A MENTE DO ANALISTA

Ivan Martins

A passagem que dá nome ao romance “O apanhador no campo de centeio”, de Salinger, é o relato de um sonho. O sonhador adolescente descreve um campo de centeio e, nele, crianças que correm felizes, inadvertidas para o penhasco que margeia o lugar. Ele sente que gostaria de estar ali para sempre, protegendo as crianças, apanhando-as antes que caíssem do penhasco.

O professor Luís Claudio Figueiredo usa essa imagem poderosa para definir, em seu novo livro, a ambição onipotente (tanto perigosa quanto, em alguma medida, essencial) que inspira o trabalho dos analistas - a de salvar seus pacientes, e talvez, como no sonho reparatório de Salinger, salvar algo de si mesmos por meio de uma atividade meio doida.

“A mente do analista” (Editora Escuta) é uma pequena e densa coletânea de artigos que reafirma Figueiredo como um dos teóricos mais profícuos e influentes da psicanálise brasileira, alguém que contribui com regularidade e consistência para a ampliação dos horizontes da disciplina e para a formação dos seus colegas.

Neste livro de título engenhosamente enganoso, escrito em tom quase jovial de palestra, Figueiredo reflete essencialmente sobre o “setting virtual”, aquele espaço intangível localizado entre as orelhas do analista que permite que a sessão de psicanálise se instale e aconteça. Na mente do analista residem a disposição, a disciplina e o conhecimento que tornam a prática possível.

O título do livro é enganoso porque Figueiredo passa a maior parte dos seus sete ensaios discutindo aspectos interativos da relação psicanalítica. Uma sessão, afinal, é um tango que se dança a dois. A mente do analista é um dos polos da dualidade, inseparável do outro. Da poltrona, do divã ou da tela do celular nos contempla um inconsciente distinto (e infinito, como nos lembra Figueiredo) que precisa aflorar para ser interpretado ou amparado ou, de alguma forma, simbolizado.

Como alguém se prepara para exercer dia após dia essa tarefa que o próprio Freud definiu como impossível? Eis a pergunta que Figueiredo tenta, laboriosamente, responder. Não se trata, ao contrário do que poderia parecer, um livro de dicas práticas ou exemplos clínicos. O autor se mantém firme na praia que o distingue, a da teoria. Vai buscar os fundamentos da relação analítica em Freud, Ferenczi, Klein, Winnicott, Bion e Green, entre outros.

Mas ele se empenha ao longo dos diferentes ensaios (com ênfase no terceiro, intitulado As vicissitudes do encontro psicanalítico, e do sexto, atualíssimo, que trata dos atendimentos online), em apresentar aspectos daquilo que considera a boa escuta psicanalítica – essencialmente, aquela que, alimentada pela ética da reserva, procura o susto e o inesperado, em vez da segurança da repetição. Estar pronto para reconhecer e aproveitar esses instantes candentes do encontro analítico, contudo, é outros quinhentos.

“Esse coitado” do analista, como bem definiu Freud, é atrapalhado por dificuldades que vão muito além das resistências neuróticas do analisando e (hoje sabemos) das suas próprias. Há personalidades e patologias avessas ao enquadre analítico, detectadas depois de Freud e abundantes nos consultórios de 2021. Há o drama das transferências, que inundam a sessão de sentimentos recíprocos e perturbadores: deixar-se levar por eles é perigoso, mas ignorá-los, assepticamente, conduz a análise a lugar nenhum.

Em todas as relações analíticas, e em cada sessão em particular, existe uma justa medida que precisa ser encontrada, num esforço permanente (e frustrante) de entrar e sair, de empatizar e distanciar, de sentir e refletir. Uma das belezas do livro de Figueiredo é que, mesmo ao expor as exigências e complexidades inconciliáveis dessa tarefa, ele nos transmite a sensação de que é possível, e de que vale a pena tentar.

A escuta, para ele, parece ser algo como uma arte, na qual se misturam talento natural, análise pessoal e alguma experiência existencial. Em aparente contradição consigo mesmo, Figueiredo esnoba a teoria, embora afirme que ela é “essencial”:

“A formação do analista deveria ter como meta a constituição de uma mente capaz de trabalhar com esse work-ego, e, portanto, com uma relação entre o eu e supereu capaz de garantir ao analista a liberdade para sentir, experimentar e pensar – ‘como se fosse um sonho’, ‘como se fosse uma brincadeira’’’, ele escreve, na página 106. “As instituições formadoras poderiam operar com essa meta, deixando em segundo plano os requisitos formais de nossa prática e mesmo a transmissão das teorias”.

Work-ego é um conceito fundamental na compreensão de Figueiredo da mente do analista, uma ideia que se destaca em seu livro pela originalidade e capacidade explicativa. O conceito foi formulado por Robert Fliess no início da década de 40, quando este psicanalista pouco conhecido tentava, pioneiramente, explicar, em termos da metapsicologia, o que acontece com o psicanalista durante uma sessão.

A principal ideia de Fliess, amparada no texto sobre o humor de Freud (1926), é que o superego profissional do psicanalista está estruturado de tal forma que, durante a sessão, ele “autoriza, libera e protege o eu” (nas palavras de Figueiredo), permitindo que este se identifique com o paciente e se aventure com ele até onde for necessário, fora das margens de segurança psíquica corriqueiras, vigentes antes e depois das sessões.

Embora desdenhe da teoria como parte da formação, o próprio Figueiredo sugere que esse supereu psicanalítico necessita dela – não apenas como amparo da técnica e do saber profissional, mas como balizador ético e objeto metatransferencial. Ninguém se torna analista sem um grau elevado de identificação com as ideias que a psicanálise preconiza e com os homens e mulheres que as produzem e transmitem. Essa parece uma parte importante (e bonita) da mente do analista – parte que o próprio Figueiredo, com a sua intensa produção intelectual, tem ajudado a ampliar e consolidar.

Ivan Haro Martins é psicanalista, aluno do curso de Psicopatologias Contemporâneas do Departamento de Psicanálise do Sedes e autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”. 

Comentários

  1. bonita apresentação, Ivan. Um bom convite à leitura

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    1. Que bom que o texto funciona como convite à leitura, Laurinda. O livro merece. Obrigado pelo comentário.

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