O Blog do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes é um dos veículos de comunicação em que circulam informações, produção de conhecimento, experiências clínicas e de pesquisa de seus diferentes membros. A interlocução com o público, dentro e fora do Departamento, é uma maneira de disseminar a troca no campo da Psicanálise e possibilitar a ampliação do alcance das reflexões em pauta. Equipe do Blog: Fernanda Borges, Gisela Haddad, Gisele Senne de Moraes, Lucas R. Arruda e Paula Lima Freire.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Crônica de Maria Laurinda Sousa - Café Brasileiro. Doce português.

Maria Laurinda de Sousa, nossa colunista do Blog do Departamento, esteve em sua terra natal e escreveu um linda crônica : Café Brasileiro. Doce português.

Confiram:


Café brasileiro. Doce português.

É apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade,
nem sua cor, nem os traços de sua cara.
Estou solitário com ele, e espero que ele esteja comigo
Homem no mar.
Crônica de Rubem Braga

Gostaria de estar ao lado de Rubem Braga, na janela de sua sala, absorta como ele, olhando o mar carioca e o homem madrugador que desliza pela espuma das águas, deixando os movimentos dos braços ondularem na retina do poeta-prosador. Rubem admira a nobreza calma desse homem e se sente solidário com a missão que ele parece cumprir. “Ele certamente fazia uma coisa bela, e o fazia de um modo puro e viril”. Assim termina o cronista a elegia a esse correto irmão. Assim, gostaria eu, que fosse a missão (pretenciosa?) desta crônica: pura e correta.

Não posso estar com ele; a distância dos tempos nos separa. Mas, posso sentir-me ali – presença invisível. Olhos fechados para ver melhor a cena. Aproximar levemente meu corpo do dele – um toque apenas para partilhar do encanto sem desfazer seu interesse pelo homem no mar.

De olhos fechados vou, então, para outras janelas. Essas que habito sozinha, mas que também posso partilhar com amigos invisíveis. Delas não avisto o mar; ele está perto, mas longe dos olhos. Percorro, antes, os campos e as terras verdejantes do norte de Portugal. Convido você para me acompanhar nessa viagem. 

Portugal é assim... Um pouco especial - e como qualquer lugar por onde passamos, se tivermos olhos receptivos e delicados, cada paisagem nos contará uma história - mesmo que não saibamos reproduzi-la.

Dizem os que vivem no norte, que esse é o pedaço mais rico, verde e telúrico daquele pequeno continente. Desconfio que os do sul dirão coisas parecidas. Há que ser um viajante para conferir qual deles terá razão. 

A mim, o que me enternece o coração é o verde dos morros do norte, a vida bucólica das velhas aldeias, com os muros de pedras que cercam as quintas onde, outrora, viviam os grandes proprietários. Gosto de adentrar nas pequenas igrejas espalhadas por todos os cantos e cercadas por cemitérios extremamente familiares, onde ainda se vê, todos os dias, ao final da tarde, homens e mulheres carregando flores, vasos, vassouras, porta-velas, para render homenagens diárias àqueles que se foram. Lavam os túmulos enfeitando-os com flores naturais e acendem as velas que supostamente iluminam os caminhos dos que jazem adormecidos para lhes recordar que ainda fazem parte daquele grupo.

Como isso é o que faz repouso no meu olhar, é sobre o norte que posso falar.

E se vou ao Porto, certamente tomarei um café no Majestic e me encantarei, mais uma vez, e sempre, com a decoração do lugar e com os passantes que olham as vitrines das lojas da rua ou comem apressados nos intervalos do trabalho. Outra paragem costumeira é na Lello. Há que entrar, subir ao mezanino, folhear os livros, ver os caminhos do trilho que ainda lá está. E rodear o olhar pela estação ferroviária com seus azulejos pintados. Passear pela margem do rio Douro e pela ruazinha de cima onde há pequenas lojinhas que vendem coisas encantadoras.  E, depois, assistir algum espetáculo na casa da Música e admirar a construção projetada por Siza Vieira. E há também as caves onde se experimenta o velho vinho do Porto. E muitas igrejas, avenidas, museus, subidas e decidas e ruas de pedra e prédios muito antigos, alguns bastante depauperados com roupas penduradas nas janelas... E no miolo do centro há restaurantes antigos onde se experimenta a comida típica e se ouve o fado do norte - com vários fadistas revezando-se nas apresentações.

Perto do Porto está a terra onde nasci: Vila Nova de Famalicão. Você, amigo invisível, pode me acompanhar até lá.  Podemos ir até a Casa-museu de Camilo Castelo Branco e, atravessando o jardim, chegar à Casa das Artes de Camilo (outro belo projeto do artista-arquiteto – Siza Vieira). Em Vila Nova, sinto-me em casa - gosto de andar pelas calçadas do centro, visitar a velha igrejinha, circular pelas ruas, entrar nas confeitarias, comer os famosos pastéis de nata, as queijadinhas, os doces de amêndoas, morder as paciências e me perder nelas...

E nessa região do Minho - tão próxima da ideia de ninho – há pequenos lugares muito convidativos: Barcelos, Viana do Castelo, Braga (maior e um grande centro religioso) e, em especial, Guimarães. Foi lá que  nasceu Portugal - você verá a placa afixada numa velha muralha. Sente-se comigo numa das mesas, no centro das muralhas, e aprecie o movimento... Caminhe pelas ruas e sinta o burburinho das velhas senhoras de preto que vendem frutas apetitosas - compre algumas.... Veja as galerias dos artistas e se encante com os objetos...

E subindo o rio Douro aprecie as fileiras das plantações de uvas, de cerejas, de maçãs que rodeiam os morros. E se quiser se aventurar pelas ruas dessas plantações encontrará grandes vinícolas que oferecem, hospitaleiramente, uma boa dose de vinho da casa.

E há muito mais.  Lugares não descritos nos guias tradicionais que vale a pena conhecer.  Mas, lembre-se, o mais encantador é o verde, o olhar a se perder nos campos, e a poesia. Repare, Portugal dá um valor imenso à poesia - você encontrará varias inscrições poéticas espalhadas pelas cidades.

E, se, saindo do norte, formos a Lisboa, subiremos de bonde até o castelo de S. Jorge. De lá, o olhar, agora, se perde nos telhados coloridos e nas casas de muitos matizes amarelos. Na descida, vamos a pé. É tempo de percorrer, com calma e cuidado, o calçamento de pedras das  vielas  estreitas. Nelas, a luz dos lampiões antigos se perde nas sombras das jardineiras e dos varais que denunciam as intimidades de cada morador.

Vá à Casa de Fernando Pessoa e visite em silêncio respeitoso o quarto onde ele dormia.  Admire o baú onde jogava escritos sem fim. Ele está lá, abarrotado de poemas não publicados. Feche os olhos por um tempo e imagine, como eu me imaginei ao lado de Rubem Braga, que Fernando Pessoa foi só tomar um café e logo volta para uma boa conversa; é isso que diz o simpático senhor que toma conta do lugar. Ou, então, se quiser, vá ao encontro dele na “Brasileira” e tire uma foto ao lado do poeta enquanto saboreia o bom café não tão brasileiro.

Depois, atravesse a cidade e me acompanhe até a ponte Vasco da Gama. Ela até hoje nos assombra com seus fios de aço e sua extensão que busca a eternidade, guardando em si, o espírito aventureiro desse povo viajante, sempre à procura  de novas terras…
 É do Tejo, que eles partiam. Suba à Torre de Belém, ao Monumento das Descobertas e, depois, atravesse a grande avenida e visite o Convento dos Jerônimos…
E, ao sair de lá, seguindo na mesma calçada e atravessando a rua -  o comércio disputado do famoso pastel de Belém - uma delícia para se comer aquecido e com canela...E tudo isso em companhia dos turistas que se misturam com as gentes da terra como se fossem velhos conhecidos…

À noite, sente-se em uma das mesas da Rua Augusta, admire o portal que se abre para a Praça do Comércio, lá onde está a Casa dos Bicos, hoje Fundação Saramago. Coma, comigo, uma sardinha, beba um vinho e pense no mar.
Na chegada ao Brasil, no Rio de Janeiro, faça outra pausa. Vislumbre ao longe um homem madrugador que encanta a retina do poeta-cronista Rubem Braga. Eu estarei lá, ao lado dele, na varanda, aguardando o término da sua e da minha missão. Enquanto ele escreve sua crônica sobre o homem no mar, eu preparo para nós um bom café brasileiro e um docinho português.

Maria Laurinda é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise Teoria e Clínica, autora dos livros “Violência”( 2005) e “Vertentes da Psicanálise”(2017) ambos da Coleção Clínica Psicanalítica, ed. Casa do Psicólogo.