Blog do Departamento de Psicanálise

O Blog do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes é um dos veículos de comunicação em que circulam informações, produção de conhecimento, experiências clínicas e de pesquisa de seus diferentes membros. A interlocução com o público, dentro e fora do Departamento, é uma maneira de disseminar a troca no campo da Psicanálise e possibilitar a ampliação do alcance das reflexões em pauta. Equipe do Blog: Ana Carolina V. de Paula Santos, Fernanda Borges, Gisela Haddad e Gisele Senne de Moraes.

terça-feira, 14 de março de 2023

O que cabe à Psicanálise neste momento do Brasil?

"Quem acompanha a cena política se pergunta para onde vai o país, governado oficialmente pela esquerda, mas rachado e adernado à direita, num mundo em que cresce a força do fascismo, com seu corolário de racismo, violência de classe e opressão – opressão das mulheres, das minorias sexuais e dos opositores políticos"

Ivan Haro Martins tenta pensar como a psicanálise pode contribuir para a leitura deste nosso tempo. Não deixem de conferir!!!


O QUE CABE À PSICANÁLISE NESTE MOMENTO DO BRASIL?

Ivan Haro Martins


A ilusão durou uma semana. Entre a posse comovente de Lula, no primeiro dia de 2023, e a explosão de violência golpista no oito de janeiro, o Brasil acreditou que, de alguma forma, deixará para trás o envenenamento ideológico e a sedição que o fascismo bolsonarista fomentara incessantemente nos últimos quatro anos.

Mas não.

Quando o vandalismo organizado tomou a praça dos Três Poderes naquele domingo, sob os olhares cúmplices dos militares e dos policiais militares encarregados de manter a ordem, ficou claro para todos algo que a psicanálise suspeita desde a sua origem: a perversão não renuncia voluntariamente. Ela não se redime, e é inútil interpretá-la. Sujeitos perversos e perversões institucionais são barradas somente pela Lei.

Não por outra razão, o protagonista da vida pública brasileira desde o oito de janeiro tem sido Alexandre de Moraes, o corajoso juiz do Supremo que encarna, neste momento áspero da vida brasileira, o papel de fiador da Lei e da Democracia.

Os golpistas estão presos ou andam por aí de tornozeleira eletrônica, a mando de Moraes. Seus financiadores estão sendo investigados. O líder dos criminosos, refugiado em Miami, tenta adivinhar se o aguarda a prisão ou o palanque numa volta eventual ao Brasil. Seus seguidores contam-se aos milhões, porém. Pela primeira vez na história da democracia brasileira, há no Congresso uma bancada de extrema direita tão numerosa quanto popular.

Quem acompanha a cena política se pergunta para onde vai o país, governado oficialmente pela esquerda, mas rachado e adernado à direita, num mundo em que cresce a força do fascismo, com seu corolário de racismo, violência de classe e opressão – opressão das mulheres, das minorias sexuais e dos opositores políticos.

A psicanálise teria algo a dizer sobre isso tudo que ninguém tenha dito? Talvez, porque muitos que pensam o Brasil têm usado a psicanálise – ou pelo menos a linguagem psicanalítica - para tentar entender o que se passa ao nosso redor.

Rodrigo Nunes, autor dos textos luminosos que compõem o volume “Do transe à vertigem – Ensaios sobre o bolsonarismo em um mundo em transição”, começa por apontar “um trauma”: os eventos inesperados e violentos de 2013 assustaram de tal forma a esquerda que ela ainda não foi capaz de processá-los, como se faz necessário para seguir adiante.

Entre as causas profundas daquela insurreição, diz Nunes, encontra-se a “hegemonia neoliberal no campo dos afetos”, quer dizer, a despeito do fracasso econômico dessa forma extrema de capitalismo, que produziu em 2008 a maior crise econômica em quase 100 anos, (cujos resultados persistem até hoje, globalmente, na forma de imensa pobreza e concentração de riqueza), os valores neoliberais ainda prevalecem na população brasileira, que desconhece outra forma de viver ou de pensar.

“O nosso é um tempo em que convivem, lado a lado, um sentimento difuso de que, por motivos diversos, as coisas não podem continuar como estão (...) e a sensação de que as coisas não poderiam ser de outro jeito”, diz Nunes.

Essa paralisia do pensamento em torno de um paradoxo abre espaço para quimeras lógicas como o bolsonarismo, que usa a linguagem da ruptura e da destruição (da revolução, se poderia dizer) para promover o mais rasteiro reacionarismo.

Para entender o que se passa do lado direito do abismo ideológico que nos separa, diz Nunes, é necessário fazer bom uso do perspectivismo, isto é, colocar-se na pele do desvalido (econômico e psíquico) que adere a Bolsonaro afetivamente. Num mundo de enorme desamparo, em que a solidariedade sumiu de vista e todos competem contra todos, aliar-se a quem se diz mais forte faz todo sentido emocional, ainda que o seu programa seja assassinar o outro e destruir o mundo para recolher os espólios.

Para reabrir o diálogo com esse sujeito mesmerizado pelo bolsonarismo, Nunes acredita ser preciso atuar de forma distinta do que tem sido feito. Significa radicalizar como faz a extrema-direita global, mas na direção da mudança efetiva, aquela que impeça a destruição do planeta e da vida social. Enquanto a esquerda e o centro persistirem em “respostas normais” e “gradativas” (business as usual), para uma crise humana e material sem precedentes, que ultrapassou todos os limites toleráveis, continuará aberto para o fascismo o campo retórico e ideológico da mudança (ainda que falsa) que ele agora ocupa.

Francisco Bosco, o cientista político que escreveu “O diálogo possível – Por uma reconstrução do debate público brasileiro”, manifesta a mesma preocupação, a de superar a polarização e “desalienar o debate”. Ele sustenta que o problema dos meios digitais - elementos essenciais da polarização em curso - não é de natureza cognitiva, mas sim afetiva. “Nos termos lacanianos, é um problema imaginário, narcísico”, diz ele. Bosco sustente que “a grande ilusão” do debate público brasileiro, no sentido freudiano da palavra, o grande desejo que o atravessa, é o de pertencimento a uma identidade política. “Em tempos de capitalismo ultracompetitivo e individualismo exacerbado”, escreve, “fazer a experiência de uma comunidade, qualquer que seja, não significa pouco”. A tarefa pela frente, portanto, sustenta Bosco, seria “identificar a lógica de grupo, descrever seus mecanismos de recompensas narcísicas e denunciar o risco permanente de esses circuitos de prazer autorreferenciais sacrificarem a busca pela verdade seus benefícios mais amplos em nome da manutenção do prazer imaginário da confirmação de si mesmo”.

De certa forma, os dois diagnósticos se encontram, o de Nunes e o de Bosco, à medida que sugerem que há por traz da polarização uma alienação ao discurso do outro, causada pelo desamparo econômico e psíquico do nosso tempo. Bosco aponta a necessidade fundamental de pertencer como engenho da polarização. Nunes sugere que a ilusão de radicalismo oferecida pelo fascismo é o motor do engajamento no embate. Ambos os autores apontam para o campo – de enorme importância, mas pouco explorado pela psicanálise - da ideologia. Como ela se constrói? Em que se apoia no psiquismo dos sujeitos? Como se enlaça com a pressão permanente das pulsões?

A mim parece que responder a essas perguntas sobre a construção psíquica da ideologia é a tarefa mais urgente que a psicanálise social tem no Brasil e no mundo.

Estamos divididos e perplexos em 2023, mas sabemos agora, como Freud não sabia na década de 30 do século XX, a que extremos o fascismo pode chegar, e que a sua capacidade de destruição e morte é ilimitada. Se por trás do fascismo existe perversão, como eu acredito, ou se trata de ilusão e alienação, como creem Nunes e Bosco, não importa. É preciso mergulhar urgentemente no fenômeno, com os instrumentos clínicos e teóricos que a psicanálise oferece, em busca de compreensão e saídas.

Ao final da apresentação de seu livro, falando sobre a irracionalidade humana e sua luta desigual conta o pensamento, Bosco cita Freud de uma forma tão bonita, e tão inspiradora, que talvez seja útil reproduzi-la: “’O intelecto humano é impotente contra a vida pulsional”, reconhece Freud. Que, entretanto, ressalva: “A voz do intelecto é baixa, mas ela não descansa enquanto não receber atenção”’. Bem, sejamos parte dessa voz que sussurra, mas não cala.

Ivan Haro Martins é psicanalista, autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro” e integrante do grupo de Psicanálise e Contemporaneidade do Departamento de Psicanálise do Sedes.

segunda-feira, 6 de março de 2023

Texto - Thiago Majolo

Para nossas próximas publicações, pedimos a nossos colunistas que pudessem escrever a partir deste futuro, pós-bolsonaro e pós-pandemia. Thiago Majolo preferiu examinar com lentes mais acuradas, a possibilidade desta empreitada, consultando sua própria escuta, atravessada pelo consultório e pelas ruas. Seu texto nos toca, a todos. Confiram:

 

O convite que me chegou deste blog para escrever sobre o Brasil pós-Bolsonaro me fez pensar mais sobre a natureza do convite em si do que sobre o tema. Perguntei-me, e dirigi a pergunta a quem me convidou: “O que exatamente sobre esse tema?”. A resposta foi: “O tema está amplo de propósito”. De chofre, uma voz interior me questionou: “mas será mesmo um convite aberto da forma que está colocado?” E foi isso que me convocou a aceitar o convite.

Essa pergunta direcionou meus pensamentos e me parece fundamental, pois ainda que eu acredite que o convite tenha realmente vindo com uma genuína intenção de abertura, propondo-me que refletisse sobre nossos tempos atuais, ao colocar a referência “pós-Bolsonaro”, deixa sugerido que o texto precisaria versar sobre as permanências e ecos da gestão anterior. O que me incomoda nisso é imaginar que esse infeliz personagem definiu uma linha, um marco, uma referência histórica da qual não conseguimos mais nos furtar. E é justo que assim façamos, para que não esqueçamos.

Em paralelo, porém, tenho uma vaga sensação de que há um grande perigo de que o atual governo e seus apoiadores – eu, incluso -, tenham se acostumado a atuar como oposição e não mais como situação, sempre referenciados a um outro, um inimigo comum. Atuando assim, em combate a um bloco maciço no qual incluímos tudo e todos que eventualmente possam ter tido contato com o “inimigo”, vamos gastando tempo de ações propositivas e reforçando um dualismo formado por identificações primárias, de impossível articulação entre o que definimos por “nós” e o que repelimos dentro do “eles”.

É claro que as gigantes calamidades sociais que vêm nos atingido, em grande parte ecos da tal gestão anterior, possuem uma voz de eloquência impossível de ignorar, que pedem lamento, revolta, justiça, reparação. Mas penso no meu lugar de psicanalista que escreve a um blog de um departamento de psicanálise e me pergunto se seria produtivo apenas repetir o que o noticiário ou especialistas mais gabaritados que eu em política e sociedades estão refletindo. Posso então apenas assumir um lugar de onde falo, que é por detrás de lentes psicanalíticas.  

E o que me parece fundamental relatar é uma “percepção diagnóstica”, por assim dizer, de patologias do e no social brasileiro. Ou, mais modestamente, nos meios em que círculo. Minha escuta clínica circula por muitos mundos subjetivos dentro do consultório, mas eu tenho também por hábito conversar com quase toda e qualquer pessoa com quem posso nas ruas, cafés, táxis, feiras, padarias etc. E o que tenho ouvido desde antes da eleição é uma crescente paranoia. Nós, pós-modernos, dotados de câmeras e informações, já costumamos estar imersos em uma dimensão paranoica, com frágeis Narcisos espalhados, espelhados, multiplicados por aí, em busca de si mesmos, em combate contra todo o Outro ou, melhor gramaticalmente falando, o Eles. O que o crescente extremismo nacional fez foi colocar uma segunda camada paranoica nesse terreno já bastante paranoide.

Ainda assim, o que tem me chamado atenção foi a amplitude que esse fenômeno tem tomado, seu grau exponencial de crescimento desmedido. E, em algum ponto de virada, isso tomou contornos (ou falta de contornos) novos. Primeiro, eu ouvia de ambos os lados as manifestações de ódio, desprezo, triunfo (defesas que Melaine Klein conheceu bem) de um lado e de outro, com ou sem razão. Mas ainda assim estávamos dentro do campo neurótico, modulados pelo prazer-desprazer, pelo amor, não-amor, ódio, sadismos, masoquismos etc. A partir de um ponto de virada que não posso precisar quando foi, passei a ouvir a seguinte frase “Eu não a(o) reconheço mais”. Essa angústia quase que invariavelmente vinha de alguém do campo progressista relatando a experiência de súbito desamparo que seu afeto fora deixado na relação com algum parente querido, que assumira de vez o discurso bolsonarista.

“O que está acontecendo?”, pensei. Não era uma queixa vazia, uma reclamação hiperbólica que chegava até mim. Era uma constatação: as pessoas estavam me dizendo que não eram mais capazes de alcançar empaticamente o Outro no outro. Se a Biologia define empatia apenas como a capacidade de se colocar no lugar do outro, a psicanálise, desde que Freud escreveu Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), entende de forma mais complexa esse conceito: empatia seria a possibilidade de reconhecer no outro o estranho, saber que o outro me permite entrar em contato e conhecer um estranho que, por força do recalque, não consigo aprender em mim.  O que estava acontecendo, portanto, era que não conseguíamos mais alcançar empaticamente aqueles tomados pelo discurso bolsonarista. Isso é um problema grave de tantas formas que nem conseguiria enumerar todas.

É grave, em primeira instância, porque possivelmente nosso psiquismo está denunciando que esse discurso antes apenas paranoico estava, e está, progredindo para uma demolição dos sujeitos tomados por ele. Aquilo que estamos chamando vulgarmente de delírio coletivo carrega junto uma objetificação dos sujeitos que são, então, assujeitados por uma narrativa ilusória, vazia de conteúdo, completamente alienante. Quando tento acompanhar o raciocínio de alguém tomado por esse discurso e me aproximar de seus afetos, o que antes me causava ódio, asco, revolta, atualmente me gera apenas incompreensão, vazio, confusão, despropósito. E então, quase sem perceber, me afasto o quanto antes.

E esse é um segundo problema: me afastar. Fico me perguntando como erotizar um corpo simbólico que foi objetificado, que perdeu toda sua dimensão de sujeito. Não encontro resposta. A incompreensão gera afastamento, descaso e apatia e desmobiliza qualquer possibilidade de ação. Como, por exemplo, resistir quando parece que não sabemos nem por onde e de que forma somos atacados? A narrativa objetificante desmobiliza não somente aqueles por ela diretamente afetados, mas seu entorno. Quando percebemos, já estamos imersos.

A minha pergunta inicial que nasceu a partir do convite deste blog (será que estamos mesmo abertos a refletir amplamente) encontra então uma resposta contundente: não! Até quando?

Thiago Majolo é psicanalista, mestre em História Social pela USP e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Mundo Indígena: o que vive em nós

Ontem choveu no futuro. A poesia de Manoel de Barros fornece uma bela condensação para retratar o relato de nossa colega Eva Wongtschowski sobre o evento Mundo Indígena: o que vive em nós, ocorrido em junho deste ano. O passado no presente assentando um futuro, um presente que organiza passado e possiblidades de futuro, um futuro que construímos no presente com o que fazemos de nosso passado. No a posteriori da elaboração, o texto de Eva nos impacta com as potentes reflexões que circularam no evento. Boa leitura no Blog!

 

MUNDO INDÍGENA: O QUE VIVE EM NÓS

O evento, realizado em 25 de Junho de 2022, com abertura de Fátima Vicente e Gisela Haddad, contou com a participação de: Lucila Gonçalves, psicóloga e psicanalista mediando a mesa; Juliana Rosalen, antropóloga; Renata Tupinambá, jornalista, produtora, artista visual; e Luiz Bolognesi, cineasta (Ex-Pajé, A Última Floresta, entre outros).

Vale lembrar que o Grupo Debates da Revista Percurso, organizador do encontro, publicou na sua seção Percurso 66, de junho/2021, textos de vários autores examinando o tema. Lucila e Juliana compareceram duplamente – na seção Debates e no evento.

Fátima, na abertura, dada a tragédia instituída contra o universo dos indígenas brasileiros (que se estende a todos nós), reforça a importância em mantermos a sensibilidade. Não está em jogo apenas evitar o apagamento de parte de nossa história como civilização, mas de alertar sobre a violência praticada desde 1500 e que se veste a cada tempo de diferentes métodos, inescrupulosos, diante das características da organização social e política dos primeiros habitantes do Brasil. Não é demais recordar que fomos 20 milhões, vivendo durante quatro mil anos antes da chegada dos europeus; agora 2/3 do bioma foi inviabilizado (pela incapacidade do branco em mantê-los) – um número abissal de mortes para além do consequente sofrimento.

O evento vai indicando o trabalho e esforço envolvidos nas mais diversas práticas, não só de brancos ativistas, mas dos próprios indígenas que, tendo conquistado o manejo dos meios de comunicação, estão respondendo pela preservação da história e manutenção da sua visão de mundo e modo de vida. A ignorância que ainda envolve nossa história é inimaginável. Ouço num programa de rádio, por ocasião das comemorações da Independência de Portugal, a frase dita por um general cinco estrelas: “o Brasil mantém um único idioma em todo território nacional”. Ora, atualmente temos 160 línguas e dialetos além do português. Antes da chegada dos portugueses esse número era próximo de 1000!

A jornalista Renata se refere ao Dicionário da Língua Geral Amazônica, ao afirmar que cultura, saúde e identidade se entrelaçam. A civilização indígena mantém filosofias, determinadas cosmopolíticas, e seu próprio espaço de pensamento: homem e natureza não se dividem. Conforme Renata, não há uma única cultura, mas múltiplas, divididas entre diferentes civilizações. Há mais de 7000 páginas escritas sobre a violência contra os indígenas no período da ditadura, e cabe lembrar que escolas dirigidas por missionários católicos proibiam o uso do idioma próprio, proibição mantida por risco de castigo físico. O que os colonizadores, que vieram do exterior, e os brancos brasileiros, leem como infantil, reflete um modo de ser no mundo, uma ciência do viver. Os indígenas, hoje no Brasil, estão em todos os lugares (geográficos, profissionais) contribuindo para que o “céu se mantenha suspenso”.  Seu currículo é um exemplo disso: jornalista, Renata fundou a produtora indígena Originárias Produções e o Podcast Originárias, poeta, consultora, roteirista, artista visual; é membro do projeto Levanta Zambalê, cofundadora da Rádio Yandê, primeira web rádio indígena brasileira; colabora com a transmídia Visibilidade Indígena; e conclui que a cultura indígena tem seus segredos e que nem tudo pode ser compartilhado.

Ao contrário de Renata, Luiz se expressa com fala rápida, apressada, como que pressionado pela urgência ditada pelas circunstâncias sombrias envolvendo a população indígena. Formado em antropologia, estudioso dos mitos, é cineasta envolvido, com toda sua alma, na preservação da cultura e da vida dos indígenas. Conviveu com os pataxós (entre os quais exerceu a função de professor), guaranis e kaiowás. Invertendo o senso comum, como do nosso general, propõe uma revolução de conhecimento apoiado nos saberes ancestrais entre os quais a organização política. Como bem coloca Luiz, não há entre nossos indígenas formação de Estado, e mais que isso, vigoram diferentes dispositivos, democráticos, que impedem a verticalização ou centralização do poder: “a força circula”, tal qual a liderança. Não há privilégios. Há uma confusão entre “falta” de estado e um suposto primitivismo. O mesmo em relação à escrita: a história, os costumes, são mantidos vivos, todo o tempo, pela oralidade. Do ponto de vista da cultura indígena, a memória morre quando impressa na árvore morta em forma de papel.

 A chegada dos missionários cristãos devassa sua identidade cultural, apesar da resistência dos pajés e xamãs; muitos foram mortos e queimados em nome de um deus que evoca “coisas do demônio” para justificar sua ação.

Luiz vai indicando, sem meias palavras, onde chegamos em nome do “logos europeu, do monopólio da “razão”, em detrimento dos “mitos”: o “Chernobyl” e o “holocausto” brasileiros. O primeiro, indicado pelo derramamento do mercúrio (usado na mineração irregular) que infesta corpos humanos, água dos rios, solo. O segundo, indicado pelo número de indígenas mortos desde a chegada dos europeus em 1500 – número que ultrapassa outros genocídios denominados de holocausto. Tanto um como outro, não devidamente contabilizados e assim invisiibilizados. Retoma os casos de suicídio entre os indígenas na região do Mato Grosso do Sul que alcançam, relativamente, o maior índice do planeta! As causas são múltiplas, e entre estas destacam-se a desterritorialização de seus “tekoha” e a inserção econômica marginal. Afirma, com convicção, que o futuro é indígena. Luiz recorda-se de uma conversa com Kopenawa em que este ia se perguntando como estaria a fertilidade dos peixes, se as onças estariam tendo seus filhotes, se as abelhas teriam espalhando suas colmeias, se os brotos romperam. As previsões climáticas justificam as perguntas: por quanto tempo teremos o que comer?

Juliana, além de antropóloga, se identifica como indianista “implicada”: vive entre os Wajäpi há 24 anos. Uma das suas áreas de estudo e atuação é a “construção das pessoas”, e tomando como referência o título do evento inspira-se nas concepções dos Wajäpi sobre o ser. O corpo humano, bem como todo ser vivo, não está limitado ao seu invólucro, mas mantém movimentos de contração e expansão. A antropóloga Juliana relata a “expansão” do corpo de um caçador que, não tendo visto pegadas, nem sentido o cheiro de caça, “sente” que há caça, mas atrás dele, faz meia volta e depois de caminhar um tanto a encontra. Surpreendi-me com a história: dias antes ouvi de um rabino a observação de que o passado está diante de nós, podemos vê-lo, é conhecido. O futuro está atrás... Os encontros podem se dar antes de acontecerem, e talvez, diz Juliana, movidos pelo desejo. Homens, animais têm formas peculiares de existirem, e é possível experimentá-los de modo controlado ou, ao contrário, ser capturado por eles. Jovens decidem ir para a cidade: pergunta-se o quanto serão seduzidos, ou poderão, no contato com mercadorias, com dinheiro, manter o controle na experimentação. Sabe-se que ingerir em excesso um determinado alimento provoca uma transformação interna, um outro modo de existir. Estas formas de experimentação podem se desdobrar em “capturas” (descontrole), o que Juliana denomina de “estados alterados”. Estes são passíveis de serem revertidos com métodos de cura próprios realizados pelo pajé. Psicotrópicos, remédios “controlados”, só controlam, mas não resolvem. As experimentações – relações, encontros – deixam marcas e vão compondo a existência. A delicadeza do ponto está em: até quanto, até onde, cada experimentação é possível de ser “controlada”. Também é parte da cosmovisão dos indígenas a busca, o protagonismo nas experimentações. Juliana lembra que esse processo de “captura” está presente em todas as civilizações: os indígenas têm muito claro como os brancos são “capturados” e como resultam em mazelas. É preciso concordar, porque não são poucas.

No chat com muitas perguntas e comentários, os temas foram retomados e desenvolvidos.  Encantados, a conexão com a natureza. Preconceito, intolerância religiosa, o temor constante de agressão. Ameaças. A tragédia do celular, ansiedade epidêmica.  Prostituição, tráfico. Relação com o sonho, o diálogo com o visível e o invisível, os rezos, organização de “espaços de saberes” com o propósito de fortalecer o território e a cultura indígena. Contemplação e pensamento, a urgência em escutar os indígenas Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Geny Núñes.

Ia ouvindo a Renata, Luiz e Juliana falando e me encolhendo na cadeira: arrombam a casa do meu vizinho, saqueiam seus bens, e depois o matam. E eu aqui lendo notícias sobre as mulheres do Iran, o desgelo na Antártica.... Confesso que fiquei envergonhada. A queixa das comunidades indígenas de isolamento, da falta de repercussão de seus apelos se justifica. Nossos olhos e ouvidos estão embotados: é alerta da Juliana. Estarei cega e surda como nosso general?

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Marte Um e o Brasil Visto de Dentro

 

Ao resenhar Marte Um, filme de Gabriel Martins que nos representará no Oscar 2023 e que está em cartaz em São Paulo, Ivan Martins descreve lindamente o encantamento e o impacto humanizador que o filme produz ao nos revelar o Brasil colonizado que insistimos em esquecer.

 

MARTE UM E O BRASIL VISTO DE DENTRO

Li, faz alguns anos, uma pesquisa americana que dizia que irmãos, mais do que pai e mãe, são a maior influência sobre a vida de cada um de nós. Como psicanalista, informado do papel essencial dos pais na formação da personalidade, faria hoje uma ressalva à conclusão da pesquisa: os irmãos talvez exerçam grande influência sobre as nossas escolhas conscientes, aquelas de que a gente se lembra e pode agradecer ou lamentar. Os pais estão instalados num lugar mais profundo em nós.

Marte 1, o filme do mineiro Gabriel Martins que vai representar o Brasil no Oscar, ilustra lindamente a relação entre irmãos.

O menino Deivinho compartilha com sua irmã mais velha, a universitária Eunice, os sonhos de garoto estudioso que os pais teriam dificuldade em entender, enquanto ela fala com ele sobre escolhas amorosas que também soariam estranhas aos pais. A cumplicidade entre eles permeia o filme e oferece momentos de grande emoção, daqueles que faz o cinema todo chorar.

Para um sujeito como eu, que cresceu com duas irmãs mais velhas, esse aspecto do filme é muito próximo e caro. Minhas irmãs deram exemplo, abriram caminhos e me ofereceram estímulos de toda espécie, sobretudo intelectual. Pelas mãos delas chegaram os livros e as revistas. Na companhia delas presenciei conversas e atitudes que influenciam até hoje. Por meio delas me vieram a arte, a estética e a ética dos anos 60, referências definitivas.

Mas Marte 1 é muito mais do que um filme sobre irmãos.

Essencialmente, fala sobre a vida de uma família pobre na periferia de Belo Horizonte, mas o jeito como faz isso é novo e, (correndo o risco de ser redundante), tremendamente inovador. Me ocorre o adjetivo “descentrado”, favorito dos psicanalistas, que descreve um sujeito que percebe não estar mais no centro da sua própria existência psíquica. Com Freud revelaram-se as diferentes instâncias que dominam a vida interior. Marte 1 faz isso com o mundo à nossa volta. Ele retira o público do Espaço Itaú do centro egóico da vida brasileira e o põe em contato afetivo com o Brasil da maioria. O outro Brasil. Ou seria o Brasil do outro?

O filme faz isso de várias maneiras.

Para começar, sai do cenário habitual de Rio de Janeiro e São Paulo e nos inunda com o delicioso sotaque mineiro. Ele se desloca da classe média, mas não nos leva à cena oposta (e familiar no cinema) da favela. Transcorre numa periferia tranquila, onde as crianças andam de bicicleta nas ruas de terra. Os adultos trabalham em condições precárias nas casas de pessoas abastadas, mas as crianças e os jovens estudam. Há pobreza e aperto, não miséria. A política está presente de forma documental no filme – com notícias de fundo sobre a vitória e a posse de Bolsonaro – mas perde importância emocional para o futebol. O discurso da esquerda é esmagado pela ironia. A luta de classes e a ameaça da lei estão presentes, mas não tomam a cena. A possibilidade de tudo desabar tensiona a narrativa, (como a vida precarizada), mas as pessoas sobrevivem às provações. Elas têm uns aos outros, têm amor, têm amigos. Têm motivos para festejar. Elas sonham. Sobretudo isso: sonham.

Talvez seja desnecessário dizer, mas é importante sublinhar: os personagens de Marte 1 são todos negros. O único branco de verdade que tem voz no filme é o ex-jogador de futebol Sorim, que interpreta a si mesmo e, ironicamente, é argentino. Os brasileiros brancos aparecem deslocados, no fundo. Mesmo professores e médicos são pretos. O efeito dessa monocromia reversa é tão bonito quanto perturbador. Nos faz perceber como é rara a presença negra nas telas brasileiras – mas não só.

Há no filme um jeito “de dentro” de mostrar a vida na periferia que tem pouco a ver com o olhar sociológico do cinema tradicional, feito por homens e mulheres da elite. Há um lugar de fala que vai se mostrando na construção das atmosferas, naturalmente, do quarto à cozinha, de forma informada e comovida. Eu me lembrei de imediato de “Amarelo”, a linda música do rapper Emicida, na qual ele diz:

“Permita que eu fale

Não as minhas cicatrizes

Se isso é sobre vivência

Me resumir a sobrevivência

É roubar o pouco de bom que vivi”.

Nas entrevistas sobre o filme surge muito a palavra “sonhar”. Ela é onipresente na fala do diretor Gabriel Martins, de 34 anos, cuja família e experiência servem de modelo para Marte 1. Há um sonho poderoso na história dele, o mesmo sonho que Emicida reivindica: “Não as minhas cicatrizes”. Parte do impacto humanizador do filme é nos pôr em contato com as aspirações dos personagens e perceber que elas nos são terrivelmente familiares. São nossos sonhos também, assim como os sonhos dos nossos filhos. Todos queremos amor, autonomia, realização, conforto. Ninguém pode se dar ao luxo de apenas “sobreviver”. Há que viver em todos os sentidos, e os sonhos são parte indestrutível da vida.

Quando terminou o filme, ainda no escuro e chorando, profundamente comovido, gravei uma mensagem para o meu filho mais velho, que havia recomendado que eu assistisse a Marte 1. Uma das coisas que eu disse a ele, e repito a vocês, é que eu mal posso esperar pelo momento em que mais meninas e meninos negros de todo o Brasil segurem a câmara para nos contar suas histórias – com seu próprio jeito e do seu próprio ponto de vista. Primeiro, porque farão outros grandes filmes, como Marte Um, um dos melhores que vi na vida. Segundo, e talvez mais importante, porque essa é uma das maneiras de fazer com que o Brasil finalmente olhe para si mesmo com olhos menos colonizados, menos racistas e menos preconceituosos - e se descubra, quem sabe, um grande país, com um grande povo escuro, revolucionariamente sonhador.

Ivan Martins é psicanalista, jornalista e autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

René Roussillon: novos e velhos paradigmas da Psicanálise

Nossa colega Camila Junqueira tece reflexões sobre o encontro virtual com René Roussillon, organizado pelo Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) em 17/09, lembrando-nos sobre a importância do pensamento deste psicanalista contemporâneo. Camila nos recorda também do evento online "O Lugar do Corpo nas Patologias Narcísicas com René Roussillon", organizado pelo Departamento de Psicanálise, que acontecerá em 08/10/22

 

RENÉ ROUSSILLON: NOVOS E VELHOS PARADIGMAS DA PSICANÁLISE

No dia 17 de setembro, René Roussillon, professor da Universidade Lumière Lyon 2, que se dedica há mais de 40 anos aos estudos dos sofrimentos narcísicos-identitários em diversos contextos clínicos, fez uma palestra intitulada Rumo a novos paradigmas para o pensamento e a prática psicanalítica, a convite do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP). Acompanhar seu pensamento é sempre uma experiência gratificante. Partilhamos de preocupações semelhantes no que tange a teoria e a clínica de pacientes-limite, ou narcísico-identitários como ele prefere, e escutá-lo ecoar e endossar certas ideias me ofereceram imenso conforto naquela manhã fria de fim de inverno.

Ao propor uma reflexão sobre os novos paradigmas da psicanálise, Rene Roussillon pensa que o primeiro passo é a articulação desses novos paradigmas com os antigos, pois manter Freud como eixo central nos permite “dar coerência à psicanálise e diminuir o aspecto babilônico desta teoria enunciada por diversas vozes”. Em minha tese de doutorado, defendida em 2010 e publicada mais recentemente, Metapsicologia dos Limites (Blucher, 2019), desenvolvi a ideia de que a criação uma metapsicologia que sustentasse a clínica de pacientes-limite não passava pela ampliação de modelos, mas pela articulação de modelos já existentes: a teoria pulsional de Freud e a teoria das relações de objeto. Neste trabalho fiz um estudo aprofundado das tensões, dos limites e das possibilidades dessa articulação, tomando André Green como um importante interlocutor. A discussão sobre a possibilidade de construção de uma psicanálise unificada é bastante ampla. No final da década de 90, Green, Kernberg e Wallestein (Bergmann, 1997) promoveram uma discussão acalorada sobre as possibilidades de encontramos um “common ground” para a Psicanálise. Em 2005, Luís Claudio Figueiredo propôs que finalmente teríamos chegado a uma ‘era pós-escolas’, no entanto não é isso que se observa nos grupos de formação em psicanálise, que ainda tratam seus autores preferidos como detentores da verdadeira Psicanálise. Como já bem apontaram Mitchel e Black (1995) “Linguagem nova é às vezes inventada para propagar ideias antigas, pois assim diferenças podem ser exageradas para a reivindicação de originalidade. Linguagem antiga é às vezes esticada para propagar novas ideias, pois assim similaridades podem ser exageradas para a reivindicação de continuidade” (p.xxi), o que ainda parece ser uma realidade hoje. Nesse contexto, entendo que a proposta de Roussillon de amarrar novos paradigmas aos velhos não se traduz em um ‘recurso ao mestre’ para validação de um pensamento, mas se assenta numa compreensão de que precisamos de muitas vozes para construir uma metapsicologia, que dê conta dos múltiplos sofrimentos que encontramos na atualidade. E, nesse sentido, a articulação entre os diversos paradigmas tem uma função central de dar coerência à Psicanálise e não exigir que um só autor seja o único de ‘dar a letra’ na Psicanálise.

Seguindo em sua fala, Roussillon entende que um novo paradigma se colocou para a psicanálise quando os sofrimentos encontram o limite da representação, quando não há palavras para expressar certos tipos de traumatismo e precisamos observar o corpo e o comportamento dos pacientes. Ele enuncia: “Pacientes que vivem colapsos têm muita dificuldade de formular verbalmente seu vivido, mas seus corpos irão expressar o colapso”. Dessa forma, Roussillon sugere que devemos prestar atenção na associatividade não-verbal. Aqui propriamente não há uma mudança de paradigma, pois o que vale é a regra fundamental da análise: a associação livre, e a ideia de que a associação livre permanece como importante via regia para o inconsciente, mas trata-se de captar a associatividade não-verbal. A propósito, para Roussillon isso já estava em Freud em Construções em Análise (1939) quando fala do retorno “quase alucinatório” daquilo que é vivido antes da aquisição da linguagem verbal. A mudança de paradigma está na importância dada ao outro na construção do aparelho simbólico que permitiria a expressão simbólica e verbal do vivido - mas que falha em pacientes com sofrimentos narcísicos e, portanto, tal construção passa a ser o eixo da clínica com esses pacientes.

Roussillon procura examinar em sua fala, detalhadamente, como este novo paradigma se articula com a metapsicologia freudiana. Em geral, dividimos a metapsicologia freudiana em duas tópicas, localizando a virada em 1920 com a introdução da pulsão de morte a partir do texto do Mais Além do Princípio do Prazer, e tendo como auge a formulação da segunda tópica em 1923, com a publicação do Ego e o Id. Roussillon, no entanto, discorda dessa sistematização, seja porque as mudanças não se restringem à tópica, seja porque a virada não se localiza, a seu ver, em 1920. Roussillon aponta então que, desde 1914, com o texto A Introdução ao Narcisismo, em que Freud começa a desenvolver o conceito de Eu, texto em que deixa de falar em pulsões orais ou anais, e passa a falar em formas orais e anais do Eu organizar a pulsão – o que faz muita diferença para Roussillon. Já podemos subentender aí uma mudança de paradigma, pois a passagem do narcisismo primário ao secundário não se faz sem a presença de um outro. Em Luto e Melancolia, de 1917, já estaria claro para Freud de que sua primeira metapsicologia, ligada ao sonho e ao recalque, não dava conta de todos os fenômenos clínicos, e que o luto do objeto primário, que encaminha o sujeito para uma organização neurótica não pode ser dado por certo, pois há patologias, como as melancolias, que se explicam pela dificuldade de enlutar o objeto, e, pela consequente dificuldade da constituição do Eu. Roussillon ressalta que Freud menciona no texto que na melancolia encontramos um objeto decepcionante, não se trata o objeto frustrante, daquele que se ausenta e apresenta a falta, introduzindo o sujeito na castração. Um objeto decepcionante fala da qualidade da presença do objeto, e é isso que está em questão nas patologias narcísico-identitárias.

A questão da qualidade da presença do outro é amplamente desenvolvida por Winnicott, mas segundo Roussillon, encontra seu embrião em Freud desde Introdução ao narcisismo (1914). Roussillon destaca então que “não podemos pensar os impasses e paradoxos do narcisismo com uma teoria narcísica do sujeito... eu me sinto bem e tenho consciência dos limites do meu Eu, se eu fui bem sentido e bem-visto por um outro”. Em consequência disso, para tratar os sofrimentos narcísicos precisamos desconstruir no narcisismo primário, para dar lugar ao narcisismo secundário, ao nascimento do Eu. Desse modo, em termos clínicos, Roussillon centra a mudança de paradigma numa mudança de posição subjetiva na relação analítica, que poderá acontecer na medida em que o analista puder oferecer ao paciente uma experiência de ser ‘bem-visto’.

No entanto, ainda sobre o fazer clínico, Roussillon propõe que não basta devolver ao paciente uma outra imagem de si através da experiência analítica, pois uma imagem não elimina a outra. É igualmente importante apresentar ao paciente os impasses entre essas imagens. É necessário explorar ‘quem’ é esse que fala no paciente, ‘de onde’ fala esse que produziu essa imagem, esse seria o caminho para a desidealização desses objetos primários que produziram identificações perturbadoras. O paciente precisa ampliar sua capacidade de crítica, e nesse percurso Roussillon se arrisca dizendo que o analista pode se colocar e dizer para seu paciente cujo trauma primário não está inscrito em palavras: “no seu lugar eu teria me sentido de tal forma...” E poderíamos pensar: ué, mas isso não é sugestão? Talvez... porém Roussillon já explicitou sua visão sobre esse tema em outra fala dizendo que “é preciso a sugestão para sair da sugestão”. Essa fala de Roussillon foi comentada por mim em outro texto para este Blog: https://deptodepsicanalise.blogspot.com/2021/10/onde-estava-o-isso-o-eu-deve-advir.html?fbclid=IwAR31rUg9kb_yhn1erkqGRGyR6tfu90zQxYL_zuMfr1dlGqfL5iBLCrzCQyo&m=1. Em termos clínicos Roussillon faz eco com a ideia que apresento no meu livro, de que para os pacientes-limite o analista necessita ocupar o lugar de suplência de objeto primário, constituindo uma clínica ‘per via de porre’ (Junqueira, 2019).

As apresentações de Roussillon são sempre muito ricas, e essa transcendeu em muito esse breve comentário. Por essa razão recomendo, fortemente que se assista sua próxima apresentação, organizada por este Departamento, que ocorrerá no dia 8 de outubro. Nela Roussillon irá falar sobre o “Lugar do Corpo nas Patologias Narcísicas”, e na sequência, participará de uma discussão (apenas com os membros do Departamento e aspirantes) sobre seu texto ‘A desconstrução do Narcisismo Primário,” eixo central da clínica desses pacientes diante dos quais é necessário escutar e narrar o corpo. As inscrições podem ser feitas no link: https://sedes.org.br/site/eventos/codigo-9078/

Camila Junqueira é psicanalista, pós-doutora pela USP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes, coordenadora do curso de extensão de Problemáticas Alimentares nesse mesmo instituto, autora de livros, capítulos e artigos publicados em periódicos.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O coração embalsamado e o movimento negro: relato do lançamento do documentário “Afirmando a vida”

De forma poética e sensível, Miriam Chnaiderman, essa cineasta da diferença, descreve o importante debate sobre seu último Documentário – Afirmando a vida - ocorrido no dia 30 de agosto no Sesc Pinheiros, com a presença de Ana Lúcia Silva Souza, Deivison Mendes Faustino e Fabiano Maranhão. Não percam. 

 

O CORAÇÃO EMBALSAMADO E O MOVIMENTO NEGRO: RELATO DO LANÇAMENTO DO DOCUMENTÁRIO “AFIRMANDO A VIDA”

Miriam Chnaiderman

Um coração embalsamado em formol” ... é essa a resposta que Ana Lúcia Silva Souza dá à pergunta que Fabiano Maranhão fizera: “O que os negros têm a comemorar nesse duplo centenário da Independência?” Resposta contundente e amarga. E verdadeira.  Essa pergunta encerrava o debate que aconteceu após a exibição do documentário “Afirmando a vida”, que dirigi. Era o lançamento presencial, que aconteceu no SESC Pinheiros no dia 30 de agosto. Uma terça-feira gelada que não impediu que as pessoas interessadas e militantes comparecessem para assistir e debater. Uma plateia não cheia, mas com pessoas realmente comprometidas.

Ana Lúcia tem participação no documentário. Uma participação lúcida e apaixonada.  E foi esse o tom que adotou em todas as suas falas nesse debate.  Deivison Mendes Faustino, que também participara do documentário com um depoimento tocante lá estava também. Chegara ao Sesc acompanhado de seu filhinho lindo e sua mulher.   Fabiano Maranhão era o representante do Sesc, pois afinal é responsável pelas ações afirmativas nessa instituição tão enorme e reconhecida.  E nessa mesa, entre três negros, lá estava eu como diretora do documentário. Eu, branca, ruiva, de família judia... 

Ao chegarmos ao SESC Pinheiros, subindo ao auditório do terceiro andar, éramos recebidos com um lanche cuidadoso, sanduichinhos, frutas, sucos. Para recepcionar-nos, lá estavam Fabiano Maranhão e Anete Abramowicz, outra judia branca, responsável pelo projeto “Transnacionalismo e proposta curricular”, financiado pelo CNPq e que me chamou para realizar um documentário militante, que mostrasse o que vem sendo as cotas para negros/as, indígenas e quilombolas e como precisam continuar existindo. As cotas deveriam ser prorrogadas pelo congresso nesse ano, quando a lei 12.711/2012 fez dez anos desde sua implementação.

Naquela recepção tão cuidadosa fomos falando de como organizaríamos o debate. Logo chegou Ana Lúcia, coloridíssima com seus dreads e por fim Deivison, figura doce e forte. Ficamos sabendo que o nome de seu filhinho é Zuhri, que quer dizer “bom olhar”. O Bom Olhar se esparrama, quer brincar, não para... é uma criança muito viva e doce. Numa relação de muita ternura com o pai e a mãe. Que os bons olhares possam nos fortalecer!

Fomos para o auditório. Vi, pela primeira vez “Afirmando a vida” em uma tela grande. Isso comove muito. Qualquer diretor, seja de documentário seja de ficção, tem uma grande emoção ao assistir pela primeira vez seu filme em tela grande. Chorei... foi um filme feito na paixão, com pouquíssimos recursos. Usei material filmado desde 2007 e filmei o 20 de novembro de 2021 na Av. Paulista. Os depoimentos comovem e a montagem resgata todo um percurso dessa luta.

Ao final, os aplausos me comovem... é como se eu tivesse realizado um grande passe de mágica... Sempre me surpreende o que um filme pode provocar.

Fabiano toma o microfone e pede que as pessoas falem de como o filme as impactaram. Eu falo de como sempre que um filme que dirigi é exibido, eu emudeço, pois sempre é mais importante o que as pessoas têm a dizer. As falas do público vão pingando... um agradecimento e o resgate de histórias que aconteceram desde os anos 90... no século passado... Essa luta vem de longe...  O reencontro de pares lutadores, vanguardas do que hoje acontece... O “Afirmando a vida” propiciando encontros e cumplicidades...

Depois, encaminhamo-nos para nossos lugares de debatedores/as com microfones e de frente para o público. Ana Lúcia fala primeiro e depois Deivison. Os dois agradecem ao movimento negro, os dois relacionam a militância com o hip-hop. A politização de Deividson aconteceu por meio do hip-hop. Ana Lúcia hoje é professora da Universidade Federal da Bahia, a UFBa. Mas, fala de como ainda são poucos/as os/as professores/os negros/as, de como é solitário tudo que vive. Deivison é professor na UNESP. Está ministrando um seminário em nosso curso durante esse semestre. Vem divulgando Fanon. Levou seu livro recém-lançado “Frantz Fanon e as encruzilhadas” para presentear algumas pessoas. Ganhei um livro autografado! Presente precioso e único.

Quando falei, contei da minha história, desde 2004, fazendo filmes sobre a questão racial quando o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UFSCar me chamou para fazer dois documentários para um curso de formação sobre o racismo em sala de aula que ministrariam para professores da rede pública Paulista. Em 2006 e 2007 filmei pelo Brasil as universidades federais que haviam adotado o sistema de cotas.

Quando relato tudo isso, falo de como, muitas vezes, foi difícil ser uma cineasta branca fazendo filmes sobre o racismo contra o negro. Foi quando Ana Lúcia falou das muitas cineastas negras que filmam lindamente com seus celulares, mas que não conseguem verba para finalizar e exibir em cinemas aquilo que fazem. E me diz que essas cineastas hoje querem a caneta, querem ter acesso a verbas... Mais uma vez era como se a minha branquitude me propiciasse algo a que outrxs não teriam acesso...  e talvez seja assim mesmo... Mas, ao mesmo tempo falou de como a questão da branquitude também é algo que deve ser trabalhado e o quanto ao fazer esses filmes, é a minha branquitude que é trabalhada. Nesse momento Anete Abramowicz fala do judaísmo, que também tem uma história de violência, de racialização. Mas, que lidou de forma radicalmente diferente com a questão racial, mostrando da radicalidade do pensamento negro. E me define como uma cineasta da diferença...  O que me deixa feliz...

Deivison conta que aceitou participar do filme porque ficou interessado em ver como uma branca lidaria com a questão das cotas. Achou importante e rico. E os dois concluíram o quanto o meu filmar era exemplo de uma ação antirracista. Fiquei orgulhosa. Coerente com princípios que sempre me nortearam...

E, no final, a pergunta de Fabiano e o coração de D.Pedro II  embalsamado como o que simbolizaria o que somos e fomos.... Pedaço morto, inerte, de um passado gélido. Mais uma vez, a negação do sangue derramado, da luta, da injustiça.

Aprendi com Petronilha Beatriz Gonçalves Silva que o recalcado do Brasil é seu passado africano. Passado de desumanização do negro em dores atrozes. Petronilha deu o parecer 03 em 2003 que modificou a lei de diretrizes e bases e tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira por meio da Lei 10.639/2003.

Sabemos que o recalcado sempre retorna como violência. Haja vista o que se passou nas eleições passadas: a não punição dos torturadores elegeu Bolsonaro. Como disse Julian Fuks em texto publicado na UOL, é preciso um terrorista que tenha horror a qualquer violência para resgatar o coração pulsante, contra o embalsamamento da vida. Afirma Julian em seu potente texto: “Precisa-se de um terrorista com a máxima aversão ao sangue e à dor alheia, crítico ferrenho da impiedade e da indiferença”. Por causa desse seu ensaio publicado no dia 17 de agosto Julian e seus familiares todos foram ameaçados de morte. Quando o texto é um libelo pela não violência diante do desrespeito e humilhação a que esse governo nos condena.

A partir da pergunta sobre os negros e a comemoração do duplo centenário da Independência do Brasil só nos resta falar do coração embalsamado em formol.  Como disse Ana Lúcia... Triste metáfora de uma violência sem tamanho.

Miriam Chnaiderman é psicanalista e cineasta. É membro e professora do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae. 

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Depois de 11 de agosto

No post de hoje Cida Aidar escreve sobre o ato  de 11 de agosto no Largo São Francisco em prol da democracia. Um momento de esperança e de exaltação de Eros. Cida busca destacar o que representou o ato do dia 11 e nos convida a pensar sobre o futuro, sobre o depois.

  

DEPOIS DE 11 DE AGOSTO

A festa foi bonita, pá!

Tive que começar assim, abrasileirando o verso de Chico Buarque, para descrever em poucas palavras o que foi a manifestação pela Democracia e pelo Estado de Direito Sempre! Expressão comum, suprapartidária, que uniu gregos e troianos e pretos e brancos e indígenas e ricos e pobres numa manifestação que deixou bem claro que não vamos nos curvar aos golpes e autoritarismos do fascismo, dessa extrema-direita canhestra, tosca, desses milicianos que nos governam até o fim deste ano – no máximo, esperamos.

Os movimentos, as associações, as universidades e todas as pessoas que estavam nesse onze de agosto de 2022 dentro e fora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), que ocuparam não só o Largo São Francisco, mas tantos outros espaços pelo país afora onde a Carta foi lida. Os mais de um milhão de assinantes da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros são uma amostra expressiva que demonstra que a sociedade civil não vai aceitar calada os desmandos dos fascistas que tomaram nosso país ao ganharem as últimas eleições.

Como sabemos, esse documento foi inspirado num anterior, de 1977, em plena ditadura civil-militar. A Carta aos Brasileiros, escrita pelo jurista e professor da Faculdade de Direito Goffredo da Silva Telles Junior, também foi lida numa manifestação que conclamava à reconstrução da democracia no país. Seguiram-se, depois, no início dos anos 1980, o movimento pelas Diretas Já e a formação de uma Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição de 1988, vigente em nosso país.

Bom lembrar que nossa democracia é claudicante e jovem e precisa de muita construção para ser de fato uma democracia do povo, para o povo. Há muito a fazer! Como se diz, estamos na luta, a luta continua. Importante retomar a história, porque nesse onze de agosto de 2022 me chamou a atenção que havia poucos jovens, ao menos no Largo São Francisco, onde estive. É possível que se deva à apatia que nos assola diante da falta de ideais, à melancolia que impera. Mas não podemos parar de sonhar. Verdade que os jovens também se manifestam de outra forma – na balada, no pancadão, no baile funk, na street dance e nos skates da vida. Ao mesmo tempo, é fundamental que quem viveu a ditadura civil-militar participe dizendo “Nós não esquecemos”. Lembro muito bem do que foi viver parte da infância, adolescência e início da fase adulta num regime pautado pelo terror de Estado. Viver com medo. Eu me lembro muito bem e farei tudo o que estiver ao meu alcance para que isso não se repita.

Daí o título que escolhi para estes comentários. Sim, foi um belo dia, com alguns discursos excelentes e emocionantes, mas temos que seguir na luta. Temos o sete de setembro e o dois de outubro e a vida inteira pela frente. Como seguimos? Como podemos reimaginar o mundo?

Com a arte, certamente. Nossos queridos mestres-poetas-músicos Caetano, Chico e Gil – só para citar alguns – têm nos embalado, do alto de seus oitenta anos, com vida e samba, mostrando que é preciso e possível andar com força e fé, reinventando-se sempre.

E nós, qual nossa intervenção como psicanalistas? Nosso Departamento está localizado no Sedes, instituição com grande tradição de luta política – e que foi bem representado na manifestação do dia onze. Além das participações em diferentes grupos militantes dentro e fora do Instituto, há que reconhecer nossa atividade clínica – seja onde for – como atividade fundamental para a promoção e construção da civilização contra a barbárie, que insiste.

Inconsciente aberto às inflexões da história, da cultura, dos movimentos imprescindíveis da sociedade em que vivemos. Da luta antirracista, da afirmação de nossos povos originários, de seu direito à terra, que foi e é sua desde sempre, ao direito de ser quem se quer ser, seja L ou B ou G ou T… Cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é. A escuta psicanalítica só pode ser assim chamada se estiver aberta ao outro, à alteridade, à associação livre que flui no encontro analítico – no divã ou na praça. Entretanto, como disse Isildinha Batista num evento em nosso Departamento, a clínica não é lugar de militância, mas de abertura da escuta e por isso é transformadora. Essa é nossa contribuição maior, em nosso métier de analistas, para que a transformação aconteça, para que o sujeito desejante se imponha à compulsão repetidora e para que Eros se enrosque em Tânatos, impedindo a destruição.

Assim, quando um fascista genocida grita “Viva a morte”, nós respondemos com todas as forças: “Viva a vida, a liberdade, a criatividade, a empatia, a solidariedade”. Para que isso aconteça, para que a gente possa reexistir, com diferença e diversidade, com a democracia que de fato nunca tivemos – do povo, para o povo –, gritamos com todas as forças: “SEGUIMOS SONHANDO!”.