O pardo, a questão racial brasileira e a psicanálise
Antonio de Almeida Neves Neto traz suas inquietações a respeito da cor de
sua pele o que nos instiga a ler seu recente artigo publicado na revista Cult,
Pardo: lugar e não lugar. Boa leitura!
PARDO, A QUESTÃO RACIAL BRASILEIRA E A PSICANÁLISE
Recentemente,
publiquei um texto chamado “Pardo: lugar e não-lugar” na Revista Cult. Recebi
então a gentil convite da colega Paula Freire para escrever algo sobre ele nesse
espaço. “Uma resenha, um convite para leitura, o que você achar mais adequado,
Antonio!”. O clima amistoso e descontraído me suscitou escrever algo no mesmo
tom. Espero que o texto não fique tão desatinado ao perfil do blog e que Paula
não se arrependa do tom cordial com que veio falar comigo.
Recém-formado
em psicologia, uma colega negra da faculdade me manda mensagem: “Antonio,
queria te indicar para uma pessoa que está procurando por análise. É importante
que seja um psicólogo não-branco. Você topa?”. Era começo de profissão e eu
estava ansioso para atender mais casos, o que fez com que eu topasse meio de
imediato. Porém, a interrogação ficou ecoando na minha cabeça. “Não-branco,
você topa?” É difícil dizer o que houve de inaugural nessa pergunta. Creio que
foi seu caráter convocatório que me inquietou. Ela me compelia a responder
desse lugar, ainda que não soubesse que lugar exatamente era aquele. Eu
começava a ser tragado por uma maré forte.
Deu-se
início a um processo duplo. Por um lado, estudos sobre a questão racial,
buscando em especial por conteúdos que pudessem iluminar o lugar que o pardo
ocupava nela. Por outro, passei minha história a contrapelo diante dessa nova
imagem no espelho, revisitando em retrospecto momentos da minha vida que
ganhavam novo significado. É difícil descrever o espanto dessa descoberta. Não
é que as memórias haviam sido esquecidas. Também, não é como se eu não soubesse
que minha cor era determinante em vários episódios da minha vida. Ainda assim,
algo de novo havia se instaurado.
Dos
estudos e memórias, passei às conversas e confidências com amigos, familiares
e... colegas e professores da formação em psicanálise do Departamento. Esse
passo de falar ao outro da nova maneira com que me via foi especialmente
difícil, pois implicava em saber como eu era visto por esses. Creio que era
isso mesmo que procurava nessas conversas: confirmações, reconhecimentos,
alguém que dissesse que eu não estava assim tão tresloucado. Entre confirmações
e descréditos, as reações que mais me instigavam eram aquelas que testemunhavam
o que eu verdadeiramente sentia a respeito da questão: dúvida.
Aos
poucos, surgiu uma aposta. Talvez, o sentimento de dúvida não fosse um estágio
de imaturidade a ser resolvido por uma melhor compreensão de mim mesmo e da
questão racial brasileira, ou então pelo reconhecimento da minha negritude ou
branquitude vindo de alguém que eu elegesse como autoridade no assunto. Talvez,
a dúvida fosse ela mesma a verdade. Essa ideia permitiu que eu reabilitasse em
mim a crítica à identidade, tão cara a psicanálise e que corria o risco de
ficar empoeirada com as “críticas ao identitarismo” que a usavam para
deslegitimar as pautas identitárias.
Apareciam
em evidência os pratos que deveria equilibrar: legitimar a dúvida experienciada
pelo pardo, apontar o caráter não todo da identidade e ressaltar a necessidade
de, apesar do caráter não sintético da identidade, operar com reconhecimentos
identitários que permitissem o testemunho das violências raciais, no que o
conceito de desmentido de Ferenczi foi fundamental. Para que esse último passo
fosse possível, era necessário entender a identidade não como uma essência
cristalizada, mas como um arranjo contingente ou, para dizer bem
brasileiramente, uma gambiarra. Foi isso que tentei fazer no meu texto.
Na
incursão pelo tema, meu percurso na formação do Departamento foi fundamental.
Começando em discussões sobre a questão em seminários e conversas de corredor
com colegas, passando pela redação de uma monografia sobre o assunto e a
apresentação de trabalhos a ele relacionados no simpósio de monografias e no
congresso da FLAPPSIP, o Departamento tem sido um espaço de reconhecimento,
companheirismo e estudos fundamental. Sou grato a várias pessoas que foram
importantes nesse processo. Dentre elas, agradeço especialmente a Maria
Aparecida Pinto, Fernanda Almeida e Rodrigo Silva, pela parceria e confidência,
e a Maria Helena Fernandes, pelo entusiasmo e incentivo ao trabalho. No intuito
de continuar essa troca e construção, convido vocês, colegas, a lerem e
eventualmente compartilharem suas impressões comigo.
Antonio
de Almeida Neves Neto é psicólogo (PUC-SP), filósofo (USP),
mestrando em psicologia social (USP) e psicanalista em formação pelo
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É membro do
Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip -USP).
Leiam
o texto publicado pela Cult:
https://revistacult.uol.com.br/home/pardo-lugar-e-nao-lugar/
Antonio: muito obrigada.
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