Freud, um judeu de língua alemã

Essas reflexões foram escritas dentro de um ensaio Corpo judeu, corpo mulher: Freud, o antissemitismo e o nazismo publicado no livro do Departamento de Psicanálise Corpos, sexualidades, diversidade, em 2016. Elas ressoam com o momento atual de ressurgimento mundial do antissemitismo.

FREUD, UM JUDEU DE LÍNGUA ALEMÃ

Renata Udler Cromberg

A emancipação judaica e o antissemitismo constituíram o ambiente socioeconômico-cultural que marcou o êxodo da família em que Freud nasceu, da Galícia para Viena, onde se instalaram em Leopoldstat, espécie de gueto espontâneo. Os judeus tornaram-se cidadãos em meados do século XIX, um pouco antes do que as mulheres. Esta simultaneidade se expressa nas literaturas francesa e alemã do final do século XIX onde a marca antissemita vinha sempre acompanhada da misoginia, o que faz suspeitar que é o horror à castração o que está em causa, diante do corpo circunciso do judeu e do corpo da mulher.[1]

A Haskalá ou Iluminação, que reformou os costumes judaicos no século XIX e o antissemitismo moderno, que surge ao mesmo tempo, trouxeram o novo ideal de que os novos cidadãos deveriam abandonar qualquer traço de identidade judaica para tornarem-se “bons judeus”, isto é, germanizados. Encontra-se na ciência biológica, na virada do século XIX para o século XX, um cientificismo marcado por forte componente racial, que atribuía ao judeu o rótulo de inferioridade e de doença. O imaginário europeu de então insistia em apresentar os judeus como “raça” de seres intrinsicamente patológicos, sexualmente degenerados e ligados por vínculos especiais à sífilis, à insanidade e certos tipos de câncer. [2]

Sabemos o quanto a revolta de Freud menino ante a resignação de seu pai, Jakob - no episódio de discriminação antissemita do gorro jogado na lama que seu pai recolheu- foi uma marca impulsionadora, junto com a própria morte do pai, da ambição do desbravador da terra desconhecida do psiquismo que gerou a psicanálise.  Freud construiu para si uma judeidade[3] que tornou possível a invenção da psicanálise e talvez isso ajude a entender as perguntas que endereçou ao pastor protestante Pfister, muito seu amigo: “por que não foi a psicanálise criada por nenhum devoto? Por que teve ela que esperar que surgisse um judeu inteiramente ateu?”[4] Freud tinha, portanto, profundamente marcada em si a formação judaica à qual se acresceu a incorporação da tradição alemã num mergulho profundo em seus autores. Mas a posição de alerta em relação à hostilidade do povo ariano e seu antissemitismo pode ser exemplificada por uma carta a Sabina Spielrein[5], em 1913: “Da minha parte, você sabe, eu estou curado de toda sequela de predileção pelos arianos ... Nós somos e permanecemos judeus; os outros sempre só nos utilizarão, sem jamais nos compreender, nem nos respeitar.” Já em 1920[6], numa avaliação encomendada pelo Ministério da Guerra austríaco sobre se os austríacos haviam utilizado o choque elétrico como instrumento de tortura, ele não encontra provas de tal uso, mas o afirma para os alemães, que o introduziram como forma dolorosa de tratamento. Freud afirma que “alguns dos médicos do exército cederam à inclinação, característica dos alemães, de levar a cabo suas intenções sem considerar o resto – o que jamais devia ter acontecido” ... Jamais foi desmentido o fato de que nos hospitais alemães houve mortes nessa época, durante o tratamento, e suicídios em decorrência deles.

Não há dúvidas de que, apesar de seu afastamento de todas as práticas religiosas, Freud, principalmente quando as investidas antissemitas se propagavam pela Europa, afirmava-se judeu e solidário com o povo judeu. Nada lhe causava mais horror do que ouvir seus adversários reduzirem a psicanálise a um produto do espírito judaico ou a uma mentalidade vienense o que não correspondia à sua concepção da cientificidade da psicanálise. Mas em vez de afirmar claramente sua oposição a esse tipo de argumento, Freud oscilou entre duas atitudes: até 1913, em nome de uma ciência universal, Freud quis fazer de Jung o herói da “desjudaização” do seu movimento. Em contrapartida, após a ruptura com Jung, ele muda bruscamente de opinião e reinvindica a aliança possível da judeidade e da invenção de uma ciência universal. Ao mesmo tempo, em 1913, ele escreve numa carta a Ferenczi[7] que a psicanálise não é nem judia, nem cristã, nem pagã. Ela se rende aos dados da observação, como ciência, que não têm religião. Em 1926[8], tomado por uma terrível decepção com o antissemitismo, declarou: “Minha língua é alemã, minha cultura, meus vínculos são alemães. Desde então, não me considero mais um alemão. Prefiro denominar-me judeu”. O mesmo testemunho nos dá Hannah Arendt de que por muitos anos e diante do fato político da perseguição, a única resposta que a ela parecia possível diante da pergunta “Quem sois?” era – independentemente da sua identidade – “uma judia”.[9]

Uma das consequências da marginalidade social a que os judeus foram submetidos em virtude do antissemitismo moderno foi a de gerar nos intelectuais judeus uma aguda percepção crítica da sociedade civil na qual não tinham sido totalmente aceitos. Heine, Marx, Freud, Kafka, Einstein, Bloch, Benjamim entre outros, nos seus respectivos campos de atuação, refletem um esforço de transcender tanto a tradição judaica quanto os particularismos localistas, buscando pela análise crítica e pela proposta construtiva uma via universal para os problemas da sociedade na qual estavam inseridos. Na esfera da cultura, os judeus formaram uma nova categoria social: a intelectualidade judaica. Esse imenso jardim cultural viria a ser destruído impiedosamente pouco depois pelo nazismo. O antissemitismo moderno que se iniciou no século XIX representou, segundo Arendt, uma antecipação paradigmática do Totalitarismo, na medida em que, enquanto movimento, se apoiou em dois instrumentos do poder: o uso da mentira, já que é necessário o monopólio da expressão da verdade e uma versão oficial dos fatos, mesmo que seja preciso desfigurá-los para adequá-los à ideologia; e o conceito de inimigo objetivo, aquele grupo que, independentemente de sua conduta, pode, a critério da liderança totalitária, eventualmente discordar da verdade oficial e, por isso, deve ser discriminado, isolado, punido, eliminado. O uso destes instrumentos de poder veio a definir no século XX, a estrutura da organização e do funcionamento desta nova forma de governo e de dominação marcada pelo arbítrio e pelo alcance ilimitado da violência, o totalitarismo.[10]

Em entrevista recente, o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek expressou o medo de que o antissemitismo vá se tornar um movimento mundial de um jeito repugnante, na pauta da luta anticolonialista. Como se ser antissemita significasse ser anticolonial. Ele alerta que isso será uma catástrofe. Como eu apontei numa assembleia do Departamento de Psicanálise na época da pandemia durante a necessária e bem-sucedida criação das políticas de reparação contra o racismo estrutural: E o antissemitismo estrutural? Por isso é bem-vinda a realização do evento online Diálogos Urgentes pela Paz- outubro, o mês que a humanidade perdeu a alma. Pensando o conflito no Oriente Médio numa perspectiva de reparação e conciliação, justamente organizado pela comissão de Reparação e políticas afirmativas.

Renata Udler Cromberg é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, articuladora do Grupo Winnicott - estudos e pesquisa, e membro do grupo de estudos Comunidade de destinos – Ferenczi e Freud. É autora dos livros Paranoia, Cena Incestuosa – abuso e violência sexual (Artesã) e Sabina Spielrein, uma pioneira da psicanálise, obras completas, vol. 1 e vol.2 (Blucher).

[1] Nesse sentido, a citação de Gilman: “A analogia do corpo e da mente do judeu e o corpo e a mente da mulher era natural para a virada do século. Na alta cultura alemã, essa imagem da natureza da mulher já estava presente. Todo o vocabulário médico aplicado ao corpo da mulher enfatizava sua inferioridade física e mental em relação ao homem. E os termos utilizados eram precisamente paralelos àqueles usados no discurso sobre os judeus”. (Gilman, Sander L.

NOTAS

 Freud, Raça e Sexos. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p.  57).

2 Fuks, Betty, Freud e a Judeidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,2000, pg. 17-41

3 idem

4 Freud , S. & Pfister, O., Carta de Freud ao Pastor Oskar Pfister de 09.10.1918,Correspondence avec le pasteur Pfister (1909-1936). Paris, Gallimard,

5 Guibal, M., Nobécourt, J. Carta de Freud a Sabina  Spielrein de  20 de abril de 1915, Sabina Spielrein entre Freud e Jung, Paris, Aubier Montagne, 1981, p. 277

6 Freud, S., (1955 [1920]) Memorandum sobre o tratamento elétrico dos neuróticos de guerra, Edição Standard Brasileira, volume  XVII, Rio de Janeiro, Imago, p.269

7 Apud Fuks, ibidem, p.39.

8 Entrevista de Sigmund Freud a Geoge Sylvester Viereck, em 1926. Publicada no Journal of Psychology de Nova York, em 1957.

9 Arendt, H., Origens do totalitarismo: Antissemitismo, instrumento de poder,  Rio de Janeiro, Documentário, 1975, p.8

10 Freud, S., (1955 [1920]) Memorandum sobre o tratamento elétrico dos neuróticos de guerra, Edição Standard Brasileira, volume  XVII, Rio de Janeiro, Imago, p.269

11 Apud Fuks, ibidem, p.39.

12 Entrevista de Sigmund Freud a Geoge Sylvester Viereck, em 1926. Publicada no Journal of Psychology de Nova York, em 1957.

13 Arendt, H., Origens do totalitarismo: Antissemitismo, instrumento de poder,  Rio de Janeiro, Documentário, 1975, p.8



 

 

 

 

    

 

        

 

 

 

 

[10] Arendt, H., Origens do totalitarismo: antissemitismo, instrumento de poder, Rio de   

       Janeiro, Documentário, 1975, p.1-19

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gaza como Metáfora

Destraumatizar: pela paz, contra o terror

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon