Homenagem à Danilo Miranda

Entre músicas e vivências pessoais, entre a cultura e a arte, Eloisa T. de Lacerda tece uma homenagem de cunho pessoal a Danilo Miranda, ex-diretor do SESC de São Paulo, que faleceu em 29 de outubro deste ano.

 

HOMENAGEM À DANILO MIRANDA

Elô Lacerda


                                                                      Vai passar, nessa avenida um samba popular

                                                                         Cada paralelepípedo da velha cidade

Essa noite vai se arrepiar.

Ao lembrar

Que aqui passaram sambas imortais

Que aqui sangraram sob nossos pés

Que aqui sambaram nossos ancestrais

Num tempo, página infeliz da nossa história

Passagem desbotada da memória

Das nossas novas gerações.

Dormia, a nossa pátria mãe tão distraída,

sem perceber que era subtraída,

em tenebrosas transações.

Seus filhos, erravam cegos pelo continente

Levavam pedras feito penitentes

Erguendo estranhas catedrais.

E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz,

Uma ofegante epidemia, que se chamava carnaval

O carnaval, o carnaval (vai passar...)

Palmas pra ala dos barões famintos

O bloco dos napoleões retintos

E os pigmeus do bulevar, meu Deus, vem olhar

Vem ver de perto uma cidade a cantar

A evolução da liberdade, até o dia clarear

Ai, que vida boa, olerê! Ai, que vida boa, olará!

O estandarte do sanatório geral, vai passar 

(Vai Passar, Chico Buarque, 1984)

        

É quase impossível pensar em nosso querido Danilo Miranda sem nos lembrar do direito de todos a todas as artes, de nossa “alegria fugaz” ou da “evolução da liberdade” que cantávamos convocados por ele, acompanhando artistas como Chico Buarque ou Francis Hime.

Nós, seus amigos, sua mulher Cléo (Assistente Social de excelência, que conheci na Derdic/Puc-SP), suas filhas Camila e Talita, seus netos e os profissionais à sua volta sabemos porque Danilo tanto amava essa canção e a cantava no “Bloco de Samba” com os amigos, sempre que nos reuníamos nas festas de aniversários (dele também, é claro!), para dançar e jogar conversa fora... Jogar conversa dentro, vamos combinar! Falávamos de tudo que importava – e importa – das artes à política. E depois do samba lá vinha The Boxer, de Simon & Garfunkel, e também “Bloco de Folk Music”, em que entoávamos o “lá lá-iá”, imitando-o em sua cantoria. Entre os paralelepípedos da cidade dos sambas e os bairros pobres onde os ragged people go looking for the places only they would know... lugares que só eles poderiam conhecer, lá estava a resistência do lutador.

E agora? Como cantar Danilo? Lembrando-o, falando dele, de seu incrível percurso tanto nacional quanto internacional, das muitas honrarias recebidas de países como Alemanha, Bélgica, França, Polônia, Japão e Portugal. De todos que o amavam, como seu amigo de toda a vida Fernando Almeida,  Zé Celso, Isabelle Huppert, Edgar Morin, Tom Zé... Do quanto era querido por minha família, que reconhecia sua grandeza. Foi no dia 30 de outubro passado, que recebemos um whatsapp de meu filho com a matéria da Folha de São Paulo sobre seu falecimento. Tanto meu filho quanto minha sobrinha eram frequentadores do Sesc Pompéia, local em que curtiam as exposições, a biblioteca, a cantina. E eu, que podia ir aos shows e eventos do Sesc SP.

A manchete da Folha de São Paulo dizia: “Morre aos 80 anos, Danilo Santos de Miranda, alicerce da cultura paulista com o Sesc. Sociólogo, filósofo e ex-seminarista, ele estava internado desde o começo de outubro no Hospital Albert Einstein e veio a falecer no dia 29 de outubro.” Uma grande perda, não só para os paulistas, mas para todos os brasileiros. Diretor do SESC de São Paulo, Danilo foi sempre sua figura central, tendo aberto diversas unidades em todo o estado. Muitas unidades do Sesc pelo Brasil puderam se beneficiar e se espelhar em sua gestão de quase 40 anos das unidades paulistas, de seu rigor ético e de sua figura intelectual, culta e humanista. Para mim, que o conheci pessoalmente, Danilo tinha um tecido humano que não era de pouco porte!

Matheus Berriel postou no Folha Blog: Morre o campista Danilo Santos de Miranda, sociólogo, filósofo e gestor cultural. Diretor regional do Serviço Social do Comércio (Sesc) no estado de São Paulo desde 1984, foi o responsável por ampliar o caráter cultural do Sesc e de expandi-lo, inaugurando várias unidades em São Paulo.

Sobre seu caixão, foi colocada uma bandeira do Fluminense, clube do coração de Danilo (e de um monte de cariocas).

Na edição de dezembro/23 da Revista E, uma reportagem/homenagem: “Quando ainda era um jovem seminarista, o filósofo e sociólogo Danilo Santos de Miranda (1943-2023) viveu uma experiência reveladora, que trouxe solidez aos seus passos e maior clareza frente ao propósito de compreender o seu entorno. No período das chamadas “provações” do noviciado na Companhia de Jesus, entre estudos, práticas espirituais e serviços à comunidade, ele realizou uma peregrinação, momento obrigatório para os candidatos ao sacerdócio. A jornada foi solitária: após longas horas a pé, atravessando cidades, no interior de São Paulo, fazia intervalos para pedir água, comida ou um abrigo para o descanso noturno. Estas eram formas de experimentar, na prática, o conceito cristão de “confiança na Providência”. Andando do nascer ao pôr do sol, ele pôde refletir sobre sua real vocação. No final do percurso, já não era o mesmo, e a renúncia ao seminário veio pouco tempo depois, assim que concluiu sua formação em filosofia. É possível ter sido nesse período de sua vida que a canção The Boxer - cuja versão completa está abaixo – tivesse ganhado um lugar especial em sua vida.

Danilo ficou órfão de mãe com pouco menos de 7 anos, tendo ido morar, junto com seus irmãos, na casa de seus avós maternos. Embora seu pai não morasse com eles, visitava-os todas as noites, mantendo sua proximidade com os filhos. Entre outras habilidades, seu pai cantava e tocava violão, herança que Danilo incorporou com prazer. Foi bom ter podido dividir esse prazer com ele. Hehehe! Nas festas de Guilherme e Rosalice, nos incitava a entrar nos Blocos de Samba ou de Folk Music.

...

Eu sou só um rapaz pobre

Embora raramente minha história seja contada

Eu tenho desperdiçado meu esforço

Em troca de um bolso cheio de resmungos

Como são as promessas

Tudo mentiras e deboche

Ainda assim, um homem ouve o que quer ouvir

E ignora o resto

Quando eu deixei o meu lar e a minha família

Eu não era mais do que um menino

Na companhia de estranhos

Na quietude de uma estação de trem

Fugindo amedrontado

Mantendo-se escondido

Buscando os alojamentos mais baratos

Onde o povo esfarrapado vai

Procurando os lugares que apenas eles conheceriam

Pedindo apenas o Salário Mínimo

Eu vim procurando por um emprego

Mas não recebo ofertas

Apenas um convite das prostitutas da Sétima Avenida

Eu admito

Houve momentos em que eu estava tão solitário

Que eu tive algum aconchego lá

Lá lá lá... lá lá lá

Então eu estou tirando a minha roupa de inverno

E desejando estar longe, indo para casa

Onde o inverno da cidade de Nova York

Não me sangra

Me leve

Pra casa

No ringue está um boxeador

E um lutador por ofício

E ele carrega as lembranças

De cada luva que o derrubou

Ou o cortou até ele gritar

Em sua raiva e vergonha

Estou indo embora, estou indo embora

As do lutador ainda permanece

Lá lá lá... lá lá lá

(The Boxer de Paul Simon, 1970)

 

Finalizando essa homenagem de cunho pessoal, sabemos o quanto nossos corações mergulharam em uma tristeza profunda ao tomarmos contato – cada um a seu tempo e hora - com a perda de nosso querido Danilo Santos de Miranda. Para todos que o conheceram pessoal e/ou profissionalmente, fica o exemplo que ele nos deixa, banhado pela qualidade de seu tecido humano, muito humano! Faço minhas as palavras de nosso poeta maior,  Carlos Drummond: “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.” (Carlos Drummond de Andrade, tirado do livro “A menina quebrada” – Eliane Brum)

 

Eloisa T. de Lacerda é fonoaudióloga e psicanalista. É membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Sedes onde coordena o Grupo de Estudos "Clínica Psicossomática dos Primórdios". É professora aposentada da PUC-SP.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sobre Silvios e Anieles

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon

O planeta dos macacos brancos