Morte como Vida - pequenas reflexões a partir de Antônio Cícero

Texto lindo e sensível de Miriam Chnaiderman em que, sob o impacto da morte programada de Antonio Cicero, e com muita delicadeza, discorre sobre aqueles (poucos) que escolhem a poesia para viver e morrer. Confiram: 

MORTE COMO VIDA - PEQUENAS REFLEXÕES A PARTIR DE ANTÔNIO CÍCERO

não sei bem onde foi que me perdi;
talvez nem tenha me perdido mesmo, 
mas como é estranho pensar que isto 
aqui fosse o meu destino desde o começo.

 

“Desbarrar” e Guardar – antônimos complementares

Quando soube que Antônio Cícero tinha morrido, ou melhor, escolhera morrer, estava lendo o lindo texto de Karin Cruz Torres, “Mas allá de Tosquelles”, na Percurso 71.

Esse dado marca a construção dessa pequena crônica em que busco homenagear a coragem de ser coerente com a escolha pela vida.

Nesse meio tempo, fui assistir ao filme de Almodóvar, “O quarto ao lado”.

Então há três tempos nesse ensaio:

    1. Tosquelles

    2. Antônio Cícero

    3. Almodóvar: “O quarto ao lado”


    1. Tosquelles

Fiquei encantada com o ensaio de Karin, Cruz Torres,” Más Allá de Tosquelles”.  Encantada de saber da exposição que Karin organizou com nossa querida Alê (Alessandra Sapoznik) e que tem como nome. “Curar la instituición. La clinica que se mueve”.

Como afirma Karina, trabalhar com os arquivos relativos a Tosquelles redesenha uma história coletiva... Trata-se de uma prática clínica transformadora que respondeu a necessidades não só terapêuticas, mas também culturais e políticas. Há a proposta da heterogeneidade como prática coletiva. Tosquelles humanizou a loucura e a vida.

Um dos pontos que me tocou em especial no artigo de Karina foi o conceito de “desbarrar”, usado por Tosquelles em uma entrevista de 1987.

Cito o ensaio de Karina: “El desbarrar es um dejarse hablar quando construímos um relato sobre nosotros mismos, hablamos com nuestra singularidade, com nuestro contexto e história. Hablamos tonteando.”

Como traduzir “desbarrar”? Se olhamos no Google, achamos “destrancar”. Então, é preciso soltar... Escrevo para Alessandra perguntando sobre como traduzir “desbarrar” e ela me diz que Desbarrar é dizer coisas disparatadas, desvairar...

O fato é que estava com a questão de como traduzir desbarrar quando recebo a notícia de morte escolhida de Antônio Cícero.


2. Antônio Cícero

Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por

admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por

ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,

isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro

Do que um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,

por isso se declara e declama um poema:

Para guardá-lo:

Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:

Guarde o que quer que guarda um poema:

Por isso o lance do poema:

Por guardar-se o que se quer guardar.

Antonio Cicero

Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996. 

O poema Guardar, de Antonio Cícero, obteve o Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira em 1996, ano em que também foi publicado no livro homônimo. Em 2001, o poema foi incluído na antologia Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, organizada por Ítalo Moriconi.  

Guardar para desbaratinar e/ou desbaratinar para guardar

Seria o “guardar” de Antônio Cícero o “desbarrar” de Tosquelles?

Desbarrar para melhor guardar?

O diagnóstico de Alzheimer levou Cícero a escolher a morte antes de que deixasse de ser dono de si mesmo, Ou, antes que não pudesse “guardar” nada. Torna-se então fullgás na assunção da fugacidade. Homenageia assim sua irmã que cantou lindamente Fullgás...

Talvez, só o desbarrar permita escolher o que guardar. É preciso que saibamos o que queremos guardar. E não é colocar no cofre que garante qualquer guardar...nos ensina o poema.

Antônio Cícero é premiado com o poema “Guardar” e agora, é diagnosticado com Alzheimer.

Na carta que escreveu aos amigos afirma:

“Minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem” (...). “Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios em filosofia. Não consigo mais me concentrar  

Nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo. Apesar de tudo, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação”. Termina reafirmando o carinho pelos amigos e a frase final impacta: “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.”

 

3.   3. Almodóvar: “O quarto ao lado”

Em meio a esse redemoinho de ideias e sensações fui ver o polêmico filme de Almodóvar. Polêmico porque a crítica não tem se entusiasmado: há quem adore e há quem deteste. O filme acompanha um caso de eutanásia: uma mulher com um câncer atroz, que não responde aos tratamentos os mais avançados, consegue a pílula da eutanásia. Pede a uma amiga dos velhos tempos que a acompanhe nessa viagem. Aluga uma linda casa e combina que um dia a porta do quarto estará fechada e ela terá tomado a pílula.  Pílula que conseguiu ilegalmente e que é absolutamente proibida. Acompanhamos então essas duas amigas nessa jornada. Uma respeitosa jornada, onde a dignidade da vida é plenamente conservada.

Tenho dito que, além de colocar agudamente a questão da escolha de morte como vida em circunstâncias-limite, o filme é sobre a ternura. Ternura entre duas mulheres, onde o respeito pelas escolhas de cada uma prevalece. Os personagens só poderiam ser femininos. Em nosso mundo, nenhum homem suportaria esse respeito mútuo. Mais uma vez, o sábio Almodóvar mergulha no mundo feminino. O filme, aparentemente sóbrio – são ambientes clean – é um poema de cores. No suceder das sequências, há uma verdadeira coreografia de cores e flores.

 

Conheci - num relance - Antônio Cícero (relance/ fullgas?)

Começo dos anos 80, Rio de Janeiro. Tinha ido ao Rio assistir ao concerto de Stockhausen na sua vinda ao Brasil. Esse mesmo Stockhausen que achou esteticamente grandiosa a explosão das duas torres em setembro de 2011. Eu era admiradora da sua música absolutamente de vanguarda. Foi Haroldo de Campos que nos conseguiu ingressos para que pudéssemos ir ao Municipal do Rio. Ao final, saímos com Haroldo e Caetano Veloso. E fomos a um bar onde Antônio Cícero aguardava. Lembro de sua figura esguia, de seu sorriso. Ele e Caetano ficavam felizes de se encontrarem!

Mas, Antônio Cícero me chamou a atenção.

Não consigo lembrar do que falamos. Mas, foi uma noite marcante.... Afinal.... estar com Caetano, Antônio Cícero e ainda, Júlio Bressane...

 

Água Perrier 

(em parceria com Adriana Calcanhoto)


Não quero mudar você

nem mostrar novos mundos

pois eu, meu amor, acho graça até mesmo em clichês

 

Adoro esse olhar blasé

que não só já viu quase tudo

mas acha tudo tão déjà-vu mesmo antes de ver.

 

Só proponho alimentar meu tédio.

Para tanto, exponho

a minha admiração.

Você em troca cede o

seu olhar sem sonhos

à minha contemplação

 

Um poeta-filósofo que faz músicas

Evandro Nascimento, em belo texto ao qual tive acesso pelo famigerado Facebook, afirma que Cícero era uma bela e paradoxal combinação  de Racionalidade Filosófica e Sensibilidade Poética. Antônio Cícero foi importante filósofo, professor e autor de inúmeros textos extremamente ricos. Basta debruçar-se, ainda que “fugazmente”- para brincar com Cícero, sobre o livro O mundo desde o fim, ( Ed. Francisco Alves, 1995) para nos darmos conta de seu importante compromisso com a filosofia e o pensamento. Publicou também “Finalidades sem fim” (Cia. Das Letras, 205) e “Porventura”( Record, 2012).

Reproduzo a “Introdução” do livro O mundo desde o fim:

“Lamentavelmente devo advertir o leitor de que, ao contrário do que o título desse livro pode sugerir, ele não consiste num daqueles bons ensaios de omnibus rebus ou quibudsman aliis, isto é, sobre todas as coisas e mais algumas, cuja leitura, desde que não logo após o jantar, Poe calorosamente recomendava. Se a esta obra porventura fosse imposto um subtítulo latino, o mais adequando seria a descrição (que, no entanto, talvez ainda mais a recomendasse aos leitores de Poe) do tratado escrito no sec. IX por Fridgisus (ou segundo alguns, Fredegisus; ou Fridugis , segundo terceiros, ou ainda Fredegis, de acordo com outros) de Tours:  De substantia nuhili et tenebrarum, isto é, Sobre a substância de nada e das trevas.

No entanto, imiscuí-me em assunto tão tenebroso e (por que não o dizer?) metafísico a partir de reflexões razoavelmente iluministas e não de todo incomuns hoje em dia. Perguntava-me se há algo como uma concepção moderna do mundo.”

Então Cícero debruça-se sobre o que seria ser moderno. Penso então: moderno é introduzir o gás neon e o Full Gaz para falar do fugaz. Pois afinal “só é possível filosofar em alemão”, nos ensinou Caetano Veloso. Ou falar alemão em português.

Há um riquíssimo ensaio de Antônio Cícero inserido na linda coletânea Poetas que pensam o mundo, organizada por Adauto Novais – que vem nos presenteando ao longo desses anos todos com temas contundentes sobre os quais figuras que admiramos imensamente escrevem.  Pensadores como José Miguel Wisnik, João Adolfo Hansen, Olgaria Mattos entre tantos outros, apresentam poetas que refletiram sobre o mundo. Dentre eles, o único que é poeta e filósofo é Antônio Cícero. Antônio Cícero nos apresenta Hölderlin, que conviveu com os filósofos idealistas alemães; tinha relações pessoais com Schiller, com quem se correspondia. Hegel e Schelling foram seus colegas e amigos, e conheceu pessoalmente Fichte, na universidade de Jena. (p. 228, Poetas que pensam)

Antônio Cícero, no primeiro item, reflete sobre o título da coletânea que quer saber sobre “poetas que pensaram o mundo” e não “que pensaram sobre o mundo”. Há uma diferença entre pensar e filosofar.  “Pensar nem sempre é filosofar” (p. 229).

Pensar o mundo e não sobre o mundo é abolir a mediação entre o pensamento e o objeto de pensamento.

Aí o pensamento se faz poesia. A poesia que é sempre imagética e, muitas vezes ícone – no sentido peirceano – daquilo que apresenta.  O ícone é o que se apresenta como sendo a coisa. E não como representação.

As canções e poemas de Antônio Cícero operam o pensar o mundo como sendo mundo. 

“Meu mundo você é quem faz

Música, letra e dança

Tudo em você é fullgás

Tudo você é quem lança

Lança mais e mais”

O mundo é esse infinito em suas possibilidades de dança e lança.

 

Vida/Morte- Morte/Vida

Antônio Cícero abre o texto com um poema de Holderlin por ele traduzido:

Andais lá em cima na luz

   Em chão macio, gênios felizes!

       Cintilantes brisas divinas

          Tocam-vos de leve

             Como os dedos da artista   

                Cordas sagradas.

 

(...)

 

Mas a nós não é dado

     Em lugar algum repousa:

         Fenecem, caem

            Os homens sofredores

                    Cegamente de uma

                        Hora para outra

                             Como água de penhasco

                                   Em penhasco lançada

                                      Incessantemente no incerto.

 

Evandro Nascimento, no Face Book, a partir de polêmicas em torno de ter tornado pública a carta que Antônio Cícero escreveu se despedindo dos amigos, reproduz um artigo de 2008, sobre quando Cícero ainda era colunista da Folha de São Paulo. Afirma que muitas vezes o suicídio, ou a morte em situação de desespero, acontece porque a eutanásia é proibida.

Evandro refere-se então a Deleuze e a Sara Kofman. Sara Kofman carregava memórias da segundo guerra em que o pai morrera num campo de concentração. Conta que sua ansiedade era palpável.  Afirma que Deleuze se beneficiaria de uma eutanásia autorizada, mas Sara Kofman não.

Evandro nos conta de quanto Cícero sabia aproveitar a vida.

No texto afirma: “Nosso poeta cunhou uma das imagens mais impactantes do instante final: “Já que a morte cai do azul” ( “O último romântico” de Lulu Santos e Sérgio Almeida)

Um azul ao qual Almodóvar contrapôs lindos tons de vermelho/vinho em combinações que percorrem a descrição de um caminhar escolhido em direção ã morte.

Finalizando

Ruy Castro, na semana em que Antônio Cícero morreu, nos brindou em sua coluna na Folha de São Paulo, com um comovente texto onde lembra da última vez que o viu na Academia Brasileira de Letras. Vai descrevendo o passo a passo de Cícero: seu embarque para Paris, o taxi, o jantar no La Copole, rever museus e ruas que amava.

Indaga-se: “Em casa, qual será o último livro que leu? E o último poema? Ao contemplar seus objetos, suas estantes, seu gato Homero...

Tomara que Ruy Castro tenha assistido “O quarto ao lado” de Almodóvar. É o que podemos desejar. Morrer pode ser uma homenagem com a beleza à vida.

Nota final: o Jornal Nexo fez uma linda matéria onde colocou as músicas mais significativas cantadas por Caetano, Adriana Calcanhoto e, claro, a linda irmã Marina Lima. Vale a pena procurar.

Lembrem-se sempre, Antônio Cícero nos advertiu:

Com que direito considerar o poema "Os Lusíadas", digamos, melhor ou mais memorável que a canção "A Eguinha Pocotó", quando muita gente prefere esta?

Miriam Chnaiderman é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e professora do Curso de Psicanálise deste Departamento. Dirigiu vários curtas, dois médias-metragens e o filme “De gravata e unha vermelha”. É doutora em Artes pela ECA -USP.

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