O Pai da Horda Pós-Moderna
Em
O Pai da Horda Pós-Moderna, Daniel Modós faz uma
retrospectiva histórica da modernidade para tentar compreender como chegamos no
momento atual em que postos de liderança são ocupados por Mileis, Trumps e
Bolsonaros. Qual função o líder pós-moderno exerce? Qual ideologia ele
encarna? Há esperança de mudança?
O PAI DA HORDA PÓS-MODERNA
O
que aconteceu com os líderes modernos? Onde andarão os Churchills, os
Roosevelts, até os Stalins... aquelas figuras sólidas, verdadeiros bastiões,
práticos, operacionais, hiperracionais até as raias do absurdo, em uma palavra:
autoridades seguras que encarnavam os ideais de ordem, razão e
praticidade da Modernidade. De algum tempo para cá temos nos surpreendido com a
proliferação de líderes mundiais bufões, ridículos e espalhafatosos, que se
colocam como “outsiders”, figuras disruptivas que lutam contra o que chamam de
“O Sistema”. Essas figuras obscenas que parecem zombar da política que praticam
já vem desde há muito (pense num Jânio Quadros), mas sua onipresença na cena
pública dos últimos anos indica algo de novo, algo que é mais do que uma
simples performance "antissistema" feita sob medida para ganhar os
votos dos insatisfeitos. Os Mileis, Trumps e Bolsonaros são, em muitos sentidos,
figuras antimodernas, ou talvez seja melhor dizer pós-modernas, pois indicam
uma mudança profunda no papel das grandes narrativas ideológicas da Modernidade
que organizavam as sociedades, assim como personificam uma mudança na função da
autoridade no cenário político atual.
Como
chegamos aqui?
Numa
retrospectiva histórica percebemos que a Modernidade derrubou muitos mitos,
questionou tradições e avariou autoridades, mas sempre soube colocar outros em
seu lugar. Sim, com o Iluminismo a religião perdeu sua centralidade, cabeças de
reis rolaram, ainda assim os modernos tinham fé em sua razão, em sua ciência e
até mesmo nos líderes políticos que vieram tapar o buraco deixado pelas
autoridades tradicionais. Sempre havia a esperança de que a verve questionadora
moderna não demoliria apenas o chão estreito em que andávamos, mas que, ao fim
e ao cabo, seria também a bússola para uma nova ordem reestabelecida,
pavimentando caminhos mais amplos para uma humanidade libertada. Para ficar só num
exemplo bem conhecido, Hegel via em Napoleão o quintessencial "espírito do
mundo" da Modernidade, a encarnação heroica do Iluminismo em rumo à Razão
absoluta. É um exemplo paradigmático pois,
como representante da revolução, Napoleão simbolizava algo de uma nova ordem,
mesmo sendo ele também o responsável por gerar o caos nas estruturas sociais monárquicas
que reinavam antes na Europa. Num surpreendente tom messiânico de amor ao progresso
acreditava-se que a Modernidade desmontaria os poderes existentes para gerar uma
política nova e melhor, que demoliria os mitos conhecidos para que a Razão
pudesse reinar.
É
um belo mito moderno! E há de se admitir que é realmente difícil, talvez
impossível, viver sem mitos. Em 1921 Freud já avisou em seu clássico Psicologia
das Massas que tanto a neurose moderna quanto a moderna produção de líderes
de movimento de massa eram respostas a derrocada dos mitos tradicionais,
os quais a própria Modernidade se encarregara de avariar. Para Freud, sem a
função da autoridade que antes era realizada pela religião ou, sem o totem
tribal que representava simbolicamente o pai morto da horda primitiva, o
sujeito ficaria sem norte, lançado a um desamparo existencial que só a figura
idealizada do líder autoritário moderno poderia suprir na vida social, ou só o
sintoma neurótico poderia recobrir na vida individual (para Freud o sintoma é “o
mito individual do neurótico”). Assim, sintoma social e sintoma neurótico
seriam irmãos, dois filhos da Modernidade: tentativas de organizar uma vida desorganizada
pelo declínio de autoridades tradicionais. Realmente, o líder de massa é
geralmente bem caricaturalmente uma figura paterna substituta e, sem dúvida,
essa face paternal não desapareceu da política atual. Ainda há um “pai da horda”
(essa figura também mítica freudiana) em cada ato violento, comentário de
tiozão ou em cada paternalismo que o ídolo da vez venha oferecer. O líder
moderno é uma espécie de mistura de Ideal de Eu com Supereu: uma figura que ao
mesmo tempo funciona como modelo ideal a ser seguido e representa a autoridade
que porta a lei e a ordem (como antes teria feito o pai da horda primitiva). Freud
fala mesmo do líder de massa como um ideal comum que organiza o mundo,
na religião medieval europeia esse era Cristo, mas na Modernidade essa figura passa
a ser paradigmaticamente o líder de um exército (a la Napoleão). Ao
menos era assim que ele podia perceber a situação em 1921, antes que os líderes
modernos tomassem a terrível máscara do fascismo.
Não
sem razão desde então Adorno e Horkheimer viram em Hitler e no fascismo o ápice
do Iluminismo em sua faceta técnico-científica, a qual organiza, categoriza e
domina a humanidade. Afinal, para os dois grandes mestres da escola de
Frankfurt não há dúvidas: “o Iluminismo é totalitário”. Hitler não é
somente, como pode parecer à primeira vista, a pura irrupção de todas as
pulsões irracionais que a Modernidade reprimira. Ele com certeza é isso em
parte, mas também representa a concretização da racionalidade moderna em sua
faceta mais prática, quando levada ao paroxismo. Como sugere Hanna Arendt,
muitas vezes o Mal tem a cara da eficiência mais fria e racional. É verdade
que, por um lado, Hitler representa um perigoso alívio das repressões modernas
ao incentivar a raiva, o sadismo e a violência desenfreada dos pogroms,
e ao permitir que as massas se satisfaçam projetivamente com ele, como diz
novamente Adorno: “sua representação realiza substitutivamente e em imagem o
que é vedado a todos os demais na realidade”. Entretanto também há em sua
figura um aspecto disciplinado e disciplinador, um Ideal de Eu “ariano” que se
sacrifica por seu povo e “põe ordem na casa”, por assim dizer. Nesse sentido
Hitler personifica o Supereu/Ideal de Eu moderno, embora tenha lá seu caráter
de bufão, é antes de tudo um portador da ordem reestabelecida, condensa a
imagem tradicional do Reich com a imagem moderna da eficiência mais fria e
brutal da fábrica, da guerra, é a razão técnica encarnada para fins
reacionários. Faz de pai da horda moderna, porque leva as últimas consequências
o que entende como a ordenação racional (e racial) do mundo, que se propõe
organizar, separar, objetificar, hierarquizar – aparece como Supereu Moderno
que instaura a Lei da Razão, com toda sua eficiência e violência.
Mas
aí também, quando a Modernidade se “concretiza” da forma mais absurda, ela
também parece derrubar a si mesma ou, ao menos, subverter os próprios
pressupostos no momento de sua realização. Depois da câmara de gás, da bomba
atômica e racismo científico, a Razão moderna se confronta com as consequências
de seu projeto e entra numa crise da qual parece ainda não ter encontrado
saída. Após tantas tragédias produzidas pela mesma Razão que prometia um futuro
melhor, ficou difícil acreditar nos belos ideais iluministas que haviam
sustentado o projeto moderno no início. Mesmo a última grande batalha
ideológica propriamente moderna, o duelo entre socialismo e capitalismo,
terminou com o fim da União Soviética. Trata-se da famosa queda das grandes metanarrativas
que organizavam o mundo descrita por Jean Lyotard (1986): a utopia socialista desmorona,
e o projeto capitalista vence, mas cada vez mais despido dos ideais liberais
iluministas que o fundaram originalmente. E o que sobreveio então? Um
capitalismo neoliberal pós-moderno, em que os ideais de igualdade e
fraternidade perdem o brilho, e a ideia de liberdade se torna a regra do jogo,
embora seja uma liberdade bem diferente da que o século das luzes poderia ter
imaginado.
A
Pós-Modernidade aparece então como a vitória vazia do capitalismo, pois sem a
fé cega na Razão moderna, sem a grande preocupação com a busca de igualdade
humana, o liberalismo falido deu lugar ao neoliberalismo reinante em que a
liberdade se torna um perigoso imperativo. O capitalismo se torna a
grande ideologia, podemos dizer até a grande ontologia, pois na nova lógica
neoliberal os ideais individualistas modernos são elevados a máxima potência
até se tornarem uma espécie de mandamento superegóico do ser pós-moderno: “seja
livre, seja potente, seja espetacular, consuma, se mostre! Goze!”. É o que
parecem nos dizer a todo tempo as mídias tradicionais tanto quanto as novas
mídias digitais. Há mesmo atualmente uma afirmação da liberdade de prazer e
gozo que se diferencia notavelmente das repressões do Supereu moderno onde
reinava a frieza racional, a qual deveria domar as paixões. Mas, cuidado, isto
não significa que não existam mais regras ou leis a regerem a Pós-Modernidade!
Pelo contrário, o mandamento de prazer e gozo é regido por dispositivos de
poder que regulam como o excesso de prazer e gozo pode se apresentar, a
saber, dentro das exigências de trabalho e consumo do neoliberalismo
hegemônico. Byung Chul-Han descreveu
isso como sociedade do desempenho, Guy Debord famosamente preferiu
sociedade do espetáculo, mas, falando especificamente de neoliberalismo,
Laval e Dardot sintetizaram bem a nova situação ao indicar que se trata hoje de
uma nova forma de poder que é o dispositivo desempenho-gozo. Se o
Supereu moderno exigia ascetismo, moderação, ordem e racionalidade, o Supereu
pós-moderno ordena desempenho e gozo como um imperativo. Isso se coaduna bem ao
Ideal de Eu pós-moderno, que, como podíamos esperar, se tornou uma figura de
sucesso econômico, liberdade sexual, consumo espetacular, em suma, do excesso
de um gozo imaginário que mostra a todo o tempo para todos: “Eu sou
imparável!”, como diz o coach, o influencer, o milionário meritocrata...
Ora,
não teria isso algo que ver com a proliferação de figuras disruptivas que se
creem imparáveis no âmbito da política contemporânea? Se o líder moderno era uma
figura superegóica de ordem e estabilidade, somada com alguns poucos momentos
de escape das pulsões reprimidas que logo eram recolocadas no lugar pela sua função
de pai da horda substituto (reorganizador da Razão do mundo); por oposição
podemos entender o líder pós-moderno como uma figura superegóica do gozo
imaginário, do desempenho espetacular e da liberdade em sua faceta neoliberal.
Bolsonaro acrescentar o termo “Liberdade” ao lema fascista “Deus, Pátria e
Família” é, na verdade, bem mais do que um simples floreio retórico para poder
continuar a dizer absurdos racistas e antidemocráticos, ao contrário, é uma
marca indelével de qual função tem o líder pós-moderno na ideologia dominante.
Isto é, a função de Supereu que ordena a liberdade como desempenho gozante
espetacular. Enquanto encarnação do Supereu neoliberal o líder pós-moderno
ordena o gozo num excesso disruptivo e “antissistema”; ao mesmo tempo, como
avatar do Ideal de Eu, o líder performa o excesso espetacular – anda de lancha
enquanto faz flexões e luta com um tubarão – sua imagem é o desempenho gozante
neoliberal numa versão espetacularizada.
É
verdade que o pai da horda pós-moderna certamente também carrega em parte um
caráter superegóico, ainda moderno, de retorno aos “velhos tempos” e
reestabelecimento de uma ordem mítica perdida. Entretanto, cada vez mais se
coloca como representante do Supereu pós-moderno, o qual ordena um desempenho
gozante espetacular que exceda as normas estabelecidas (paradoxalmente, é
claro, cumprindo-as na medida que é exatamente isto que a ideologia neoliberal
quer de nós). O Ideal de Eu disruptivo, gozante e espetacular que acompanha o Supereu pós-moderno parece encarnado nas
figuras mais histriônicas da extrema direita, Marçal, Trump, Milei são
verdadeiros arquétipos de um desempenho gozante espetacular que sempre rompe os
limites do esperado, enquanto ao mesmo tempo confirma continuamente o que é
esperado desses machos hiper potentes que devem o tempo todo parecer ser sem
limites (este é realmente seu próprio limite, do qual não conseguem escapar).
O pai da horda pós-moderna se parece
nisso em muito com o pai da horda primitiva em Freud, uma figura obscena do
gozo não castrado, não barrado por nenhuma lei a não ser sua própria. Contudo,
um olhar mais acurado revela que a lei da ideologia neoliberal, do dispositivo
desempenho-gozo opera aí de maneira tirânica. Enquanto figuras superegóicas do
excesso de desempenho gozante espetacular, enquanto ideais que encarnam esta expectativa,
eles estão completamente presos ao sistema que pretendem desmontar. São um
produto desse sistema, uma culminação da lógica neoliberal que se quer
disruptiva, mas só o são na medida em que a disrupção é uma garantia que a
ideologia hegemônica pode continuar a operar. Nesse sentido
a disrupção “antissistema” dessas personagens é, no fundo, a afirmação mais
franca do sistema atual. Quando atacam o sistema democrático é para reafirmar o
sistema neoliberal do qual são produto. Seu aparente excesso gozante
incoercível que rompe todos os limites está na realidade bem delimitado, é o
esperado.
Para
aqueles que sonham, quem sabe em outro momento este tipo de excesso volte ao
lugar de tabu e um novo totem possa nos salvar. Mas, qual seria sua forma e o
que ele viria a simbolizar é algo que só o futuro dirá.
Daniel
Modós é psicólogo formado pela PUC-SP e psicanalista. Foi
aluno do curso de Psicopatologia Contemporânea do Departamento de Psicanálise
do Sedes Sapientiae
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