Domingo de Eleição

Maria Silvia Borghese escreve um texto baseado na palestra realizada por Jurandir Freire Costa no encerramento do Congresso de Psicopatologia realizado em setembro deste ano em Recife, em que ele faz uma reflexão sobre as anomias atuais e destaca como o trauma cultural não afeta apenas os grupos sociais vulneráveis, mas também aqueles que perpetuam a opressão. Confiram. 


DOMINGO DE ELEIÇÃO i

O dia está cinzento lá fora, ameaça chover. Maria se vira preguiçosamente na cama e cogita nem sair para votar. Mas, o que dirá ao pastor, aos pais, a irmãs e irmãos da igreja? Nome e número do candidato estão tatuados em sua mente, ouviu incessantes exortações sobre aquela pessoa escolhida e ungida pelo Senhor. Ele, sim! Essa pessoa vai garantir que a cidade volte aos trilhos, uma cidade para famílias conservadoras, homens de bem, mulheres recatadas e obedientes, as coisas precisam voltar a ser o que eram antes. Maria espia novamente o dia meio tristonho lá fora e se pergunta: ‘essa tristeza não será a minha?’ Pensa na menina que foi um dia e lembra que tinha muitos sonhos, desejava alçar voos, percorrer grandes distâncias e conhecer lugares longínquos. O que teria acontecido àquela menina?

Medo. Muitos medos. A vida, segundo ela, desandou. Parece que as pessoas enlouqueceram, explodiram todos os scripts que ela havia aprendido ainda tão pequena. O mundo se tornou muito perigoso, assustador. O pai, o pastor, a mãe, todos alertavam para os riscos do viver, a família é o mais importante de todas as coisas, as tradições devem ser respeitadas: ‘creia em Deus sobre todas as coisas, seja temente a Ele, seja patriota, forme sua própria família e se dedique a seu lar’. Crescera ouvindo variações dessas frases, que soavam como cantilenas, ladainhas.

No entanto, havia ali uma menina curiosa. O mundão de meu Deus é tão grande, tantos lugares, tantas gentes. Maria queria conhecer. No tempo em que sua curiosidade era maior que seu medo, passava os dias sonhando, seus devaneios eram intermináveis. Lembrou-se, ainda, do cursinho pré-vestibular que passou a frequentar. Ali, as coisas começaram a desandar de vez. Maconheiros, gays, anarquistas. Quem são essas pessoas? Naqueles tempos, começou a sentir-se ameaçada. Desconhecia aquele mundo, era muito diferente, não entendia a língua que falavam. Tanto no cursinho quanto na faculdade em que entrou, sentia o mundo universitário como profundamente ameaçador. Ela sabia que não tinha repertório para aderir aos apelos que aquele mundo tão ‘mundano’ lhe fazia.

As lembranças não cessavam. Seu pai era uma figura controversa, tentava representar seu papel de homem durão e autoritário, mas muitas vezes bebia excessivamente, perdia a nitidez de seus contornos. Nessa gangorra, transmutava de um homem sério, de terno e sapatos lustrosos, indo para a igreja com sua bíblia embaixo do braço, a um beberrão desgrenhado e degradado pelas noites de farra com outras mulheres, que chegava em casa invariavelmente violento. Maria sabia que a violência era o mais eficiente escudo que o pai tinha para não flagrar ou ser flagrado em suas fragilidades.

Ah! O mundo e seus apelos! Eram tantos os desejos. Mas isso pode destruir uma pessoa, pensava Maria. Sua família tinha feito tanto esforço para ter uma vida certinha, uma casinha, uma garantia. Na faculdade de Serviço Social que fazia em uma grande universidade, tudo isso lhe parecia questionado, ameaçado. Um pesadelo a tirou da faculdade no penúltimo ano: estava em uma guerrilha urbana, em um lugar que poderia ser a Nicarágua e as pessoas a seu redor diziam: ‘sua vida não existe mais, tudo desapareceu’. Acordou horrorizada, lembrando do pastor e dos pais. Largou a faculdade, casou e passou a frequentar fervorosamente a igreja.

Sentia-se assim amparada, garantida. Deus, pátria e família eram sua garantia. No entanto, naquele domingo de eleição, naquele dia em que se percebeu tão triste, uma dúvida fugaz lhe atravessou a alma. Fechou-se em casa e resolveu não sair para votar. Terminou o dia pensando na mentira que iria contar para as pessoas. Uma última imagem lhe assaltou o espírito: o marido saindo pela porta para nunca mais voltar. Perguntou-se se ainda conseguiria fazer algo assim.

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i Este pequeno conto foi inspirado pela conferencia que Jurandir Freire Costa proferiu no XI Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XVII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, ocorrido no Recife em setembro de 2024. A conferência está disponível no Youtube:

https://m.youtube.com/watch?v=_0xJYltNLUU

 

Maria Silvia Borghese é psicanalista, membro e professora do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapintiae e colunista do Blog do Departamento


Comentários

  1. Muito bom, seu texto Maria Silvia.
    Encontrou um jeito leve, de falar das nossas mazelas!
    Parabéns 👏

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  2. Lindo texto, de forma sensivel disse tudo sobre nosso momento social. Abraço.

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  3. Muito bom Maria Silvia! Seu texto flui nas imagens e contradições! Parabéns!

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