Sobre viver com o fascismo

Ivan Martins discute as consequências preocupantes da eleição de Donald Trump e como sobreviveremos à consolidação do poder neofacista que afeta a todos nós.


SOBRE VIVER COM O FASCISMO

A eleição americana liquidou a esperança de que pudéssemos voltar aos tempos normais neste planeta conturbado. O fascismo, a misoginia e a religiosidade reacionária triunfaram pelo voto popular no país mais rico do mundo - que é também o mais poderoso militarmente e o mais influente em termos de ideologia. Isso terá consequências sobre o resto de nós.

É doloroso perceber que Donald Trump se elegeu com um discurso descaradamente misógino num país onde as eleitoras são maioria e costumam votar em maior número. Imaginava-se que seus delírios masculinistas – e a ofensas chulas que ele e seus cúmplices dirigiram a Kamala Harris – pudessem afastar em massa o eleitorado feminino, mas isso não aconteceu. O macho arrogante e mentiroso que criou as condições para a eliminação jurídica do direito ao aborto - e que foi judicialmente condenado por atacar sexualmente uma mulher – ganhou parte importante dos votos femininos que foram negados à candidata do partido Democrata: os votos das mulheres brancas. É a segunda vez que elas ajudam a eleger Trump. A primeira vez foi na disputa com Hillary Clinton, em 2016. Há uma matéria recente do jornal The New York Times que discute esse fenômeno: https://www.nytimes.com/2024/11/02/magazine/harris-white-women-black-voters.html?smid=nytcore-android-share

Com menor surpresa, é triste constatar, também, que a conversa de gângster de Trump achou eco entre os homens americanos, sobretudo os jovens. A masculinidade em crise descobriu no discurso fascista e sexista uma forma de conforto identitário que lhe é negado pelas ideologias progressistas. Isso é algo que precisa ser estudado de forma urgente. Os homens das classes trabalhadoras precarizados pelo capitalismo neoliberal – inclusive homens negros e latinos – compraram a ideia de que um milionário racista e picareta vai lhes devolver a dignidade perdida, (quer dizer, um bom emprego e um salário descente), e a possibilidade de chefiar uma família e ter um lugar de respeito na sociedade. Vão ficar esperando, claro.

Enquanto isso, malandros como o bilionário Ellon Musk nadarão de braçada em Washington. Pagarão menos impostos, sofrerão menos controle governamental e poderão nomear seus amigos para os cargos oficiais que realmente importam. Os sindicatos podem esperar o equivalente político a um massacre.

Ainda não se sabe se o neofascismo americano usará contra seus oponentes ideológicos (a esquerda,) e suas vítimas preferenciais (os imigrantes, as feministas e a população trans), a violência física que seus antecessores usaram na Alemanha e na Itália, mas a violência institucional – que dizer, o transbordamento do poder presidencial, a redução de direitos jurídicos e a eliminação dos controles sociais sobre governo e mercado - é esperada para depois de amanhã.

Para quem ainda duvida da exatidão do termo fascismo para descrever o que acontece nos EUA, recomendo a leitura de “Anatomia do fascismo”, do historiador Robert Paxton, considerado o maior especialista mundial no tema. Ele explica com clareza e eloquência a formação desse tipo de movimento, como nele a ideologia é secundária e subordinada à tomada do poder por quaisquer meios, (como as mentiras de Trump), com a finalidade, sempre, de obter domínio absoluto e pôr de joelhos dois grandes grupos sociais: aqueles considerados como intrusos e inferiores e os que são percebidos pela extrema direita como prejudiciais ao seu projeto hegemônico.

Paxton, já nonagenário, resistiu a chamar Trump de fascista até o ataque ao Capitólio, em 06 de janeiro de 2021. Ali, a semelhança com a violência das milícias de Mussolini e Hitler tornou-se incontornável. Uma longa reportagem com Paxton, feita pelo jornal The New York Times recentemente, ajuda a entender as nuances (e a urgência!) do debate sobre fascismo: https://www.nytimes.com/2024/10/23/magazine/robert-paxton-facism.html?smid=nytcore-android-share

No país de Jair Bolsonaro, no qual a aliança espontânea entre fascistas e religiosos quase levou Pablo Marçal à prefeitura de São Paulo, não é possível ignorar o que se passa nos Estados Unidos.  Vivemos aqui a mesma tensão ideológica e podemos perfeitamente ser os americanos de amanhã. “A onda fascista”, como descrita por um paciente meu que mora nos EUA, vai se espalhando célere desde a Argentina até o Canadá, passando com garbo pelo Brasil. Contra ela, estamos momentaneamente impotentes. Assim como os Democratas americanos, a esquerda brasileira desaprendeu a falar a linguagem dos pobres, e, como diz o filósofo Vladimir Safatle, talvez não tenha mesmo nada a lhes dizer.

Tudo isso, porém, ocorre no plano da grande política, que desde 2013, ao menos no Brasil, parece regida pelas iniciativas, ideais e mentiras da extrema-direita. Resistência tem sido o nome do jogo para a esquerda há mais de uma década.

Mas há também o plano pessoal, no qual temos de lidar intimamente – e na privacidade do consultório - com os efeitos subjetivos do fascismo triunfante. Vivemos essa situação penosa durante o infindável governo Bolsonaro e nos pareceu, ao menos por algum tempo, depois das eleições de 2022, que as trevas haviam ficado para trás. Não ficaram, como A Segunda Vinda de Trump deixa claro. Estamos condenados a viver por alguns anos (talvez por décadas) num planeta em que a democracia, a solidariedade, a justiça social e o respeito às diferenças serão ostensivamente desprezados. O que importa agora é exibir poder, prosperidade e uma ideia de fé que nada tem de piedosa, pelo contrário.

Cada um de nós terá de encontrar formas privadas ou coletivas de resistir à essa avalanche de perversão com que nos cabe conviver. Da minha parte, escolhi, ao menos por um tempo, me desligar da informação jornalística. Assistir ao avanço do fascismo em tempo real, dia após dia, sem possibilidade de intervenção ou resistência, pode ser adoecedor. Melhor poupar-se do massacre, portanto, desconectar-se (a pulsão de morte e desligamento funcionando em seu aspecto positivo, diria Green), e voltar-se com afinco ao que produz resultado e prazer. Ao menos por enquanto.

Ontem, voltando de um encontro na USP, vi caído na pista de acesso à ponte da Cidade Universitária um jovem motoqueiro. Ele se contorcia de dor no asfalto, assustadoramente pálido, assistido por um motorista e um policial de trânsito. Ao lado dele, a moto espatifada e a caixa vermelha do iFood, intacta. Me ocorreu, de imediato, que aquele rapaz representava, de alguma forma, a tragédia que nos acomete. Estavam ali representadas a dor, a vulnerabilidade, o engodo do empreendedorismo e o desamparo social essencial, absoluto – desamparo que leva, no mundo todo, por caminhos que são políticos, mas também pulsionais, ao triunfo de gente como Trump, Bolsonaro, Milei, Le Pen...

Enquanto não tivermos, como sociedade, algo tangível a oferecer aos que trabalham e morrem de moto nas ruas das grandes cidades, o fascismo seguirá se espalhando como a praga planetária do século XXI.

Ivan Martins é psicanalista e participante externo do grupo de Psicanálise e Contemporaneidade do Departamento de Psicanálise do Sedes. 

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