Lutos possíveis e impossíveis
Gustavo Battagliese faz uma rica e interessante discussão
sobre os lutos possíveis e impossíveis a partir do conceito de roubo de
experiência de Bollas e das diferentes formas de morrer trazidas pelos filmes:
Ainda estou aqui e O quarto ao lado.
LUTOS
POSSÍVEIS E IMPOSSÍVEIS
Gustavo L. Battagliese
Não é segredo que a eutanásia foi a
escolha de Freud, na época pactuada em segredo com seu médico pessoal.
Hoje, 85 anos depois, o debate sobre
eutanásia e suicídio assistido tem mais espaço na sociedade e na mídia. Apesar
disso, essa reflexão progressista é alvo de ataques e tentativas de sanções
reacionárias. Recentemente, nos aproximamos de reflexões a respeito em
decorrência da morte de Antônio Cícero e sua comovente e franca carta final.
Mais recentemente ainda, no último
fôlego desse ano marcado por signos de fim e catástrofes iminentes, somos
presenteados com duas pérolas cinematográficas: “O Quarto ao Lado”, de Pedro
Almodóvar, e “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, ambos baseados em livros.
Sendo o primeiro uma ficção que conta a história de Martha, uma mulher de
meia-idade com câncer que se torna intratável e que pede à sua amiga Ingrid que
a acompanhe em um processo de desligamento que culminará em seu suicídio. Já o
segundo conta a história da família Paiva sob o olhar de seu filho jovem,
Marcelo, que observa sua mãe, Eunice, e vive o sumiço de seu pai, o ex-deputado
Rubens Paiva, desaparecido, que só foi considerado morto, assassinado pelo
Estado, em 1998.
As formas longitudinalmente distantes
de morrer apresentadas nos dois filmes parecem ter nas questões de legalidade
um eixo comum. A ausência de legitimação dos estados, em muitos países, em
relação ao suicídio assistido e à eutanásia, assim como a recusa em assumir os
assassinatos cometidos por muitos desses mesmos estados, nos levam a muitas
reflexões.
Ainda ressoando a fala recente de
Jurandir Freire Costa no último Congresso de Psicopatologia Fundamental, dentre
muitos elementos que discute, ele aponta a amplitude da ideia de roubo da
experiência apresentada por Christopher Bollas em seu texto “Introjeção
extrativa”. Penso que esta ideia se aplica a ambas as situações, onde a própria
morte é simbolicamente negada a quem morreu e a quem fica. Diz Bollas, logo no
início de seu texto:
“A reciprocidade geradora das relações
humanas depende, entre outras coisas, do pressuposto de que os elementos da
vida psíquica e suas diferentes funções são realizadas em comum. Se A fala para
B sobre seu pesar pela perda do pai, deve presumir que B sabe o que é dor e que
irá “compartilhar” com A seu problema.”
(Bollas, 2015, p. 189)
O autor inicia seu texto discutindo
várias formas de roubo da experiência. É interessante como dá o exemplo do luto
como uma experiência essencialmente compartilhada. Nos dois filmes, existem
exemplos claros de como esse roubo pode ocorrer. Enquanto na obra
cinematográfica de Almodóvar evidencia-se a tentativa de criminalizar a decisão
racional de encerrar o sofrimento, na produção de Salles observamos a mesma
tentativa de criminalização, porém da existência de um indivíduo, negando à sua
família seu próprio sequestro e falecimento. Não há, nessas situações, a ideia
de um compartilhamento que seja validado enquanto experiência cidadã possível;
se algo se compartilha, é à margem, como Ingrid o faz com seu amigo Damian, ou
como Eunice e sua família buscam respostas e são acolhidos por amigos que são
igualmente criminalizados pelas autoridades. A ausência de reciprocidade se
torna uma desautorização.
A clandestinidade, ainda que
continente entre os pares ou párias envolvidos, é um roubo de experiência
frente à deslegitimação dos processos de morte pelas autoridades, pois é
impossibilitada uma saída coletiva social fundamental para o trabalho de
elaboração do trauma, como Myryam Uchitel nos lembra na última Percurso:
“Não há saída individual para o
trauma. Freud escreve isso no texto O mal-estar na civilização, quando diz que
o destino do indivíduo não é alheio à comunidade na qual se insere, ou quando
em clínica psicanalítica das catástrofes sociais podemos ler que “não saúde
coletiva sem saúde individual” assim como entendemos que não há saúde
individual sem saúde coletiva, (Uchitel, 2024, p. 77)
A interrelação entre individual e
coletivo vira o eixo central da possibilidade ou não de elaborar feridas
abertas em indivíduos que buscam continência em seu meio. Isso também acontece
com o desejo de interromper uma dor intensa e insuportável. O contexto ilegal
do suicídio assistido, retratado no primeiro filme, e o desaparecimento de
Rubens Paiva, relatado no segundo, têm como eixo comum o domínio do Estado
sobre seus corpos e, por consequência, de suas experiências.
Bollas descreve a introjeção extrativa como “o processo intersubjetivo no qual uma pessoa invade a mente de outra e se apropria de certos elementos de sua vida mental” (pp. 195). É marcante a concretude que isso toma quando assistimos à cena em que a polícia invade a casa dos Paiva, fecha as cortinas para que os vizinhos não os vejam, reviram as coisas e levam Rubens embora. Levam com ele a possibilidade de se despedir, a alegria da convivência e também a possibilidade de morrer em paz. Anos depois, Eunice afirmou que o desaparecimento é uma tortura que não acaba para os que ficam. Não surpreende nem um pouco que seus últimos anos foram marcados pelo apagamento provocado pelo Alzheimer; seria um desdobramento de outros apagamentos, ou até o direito “adquirido” de esquecer essa sevicia constante e infindável?
Já no contexto do filme “O Quarto ao
Lado”, as coisas operam de uma forma mais sutil; afinal, tudo se efetua e
acontece conforme o planejamento inicial. Mas a ameaça da criminalização
assombra Ingrid a todo instante. Após o suicídio ser consumado, ela é levada
para um interrogatório, onde um policial, que afirma ser religioso, a ameaça.
Nós, espectadores, ficamos atônitos: como um acontecimento da magnitude do que
foi planejado por Martha de repente é sequestrado por questões que parecem
surreais a Ingrid, ainda muito abalada pela morte que acabara de ocorrer? Fica
difícil entender que tipo de acusação é feita a ela. O desfecho acaba por não
ser tão destrutivo quanto no outro filme, mas nos dá a dimensão de um risco que
ambas sofreram.
Martha lutava para não ter, assim como Rubens Paiva teve, sua morte gerida e ministrada por diretrizes absurdas de um Estado violento com seus corpos. A analogia entre as dores finais indesejadas e a tortura me parece adequada, pois, no final, a dor torna-se um elemento inevitável nesses cenários. Já Ingrid poderia ser penalizada de forma brutal e efetiva por simplesmente acompanhar, oferecer afeto e se afetar com algo que não se assemelha em nada a um crime, ou tampouco a algo imoral.
A ausência do direito às várias formas
de luto parece reforçar a noção de roubo de experiências. Enquanto eu escrevia
essa breve reflexão, deparei-me com uma notícia no jornal que dizia que uma
família que vive em Mauá e perdeu um bebê recém-nascido foi cobrada em 12 mil
reais pela concessionária funerária para transportar esse corpo até a lápide
familiar em São Miguel Paulista. Não há um luto possível. Como pode uma
família, já abalada pela perda precoce de uma vida que mal teve início,
compreender a exigência de um custo exorbitante para enterrar seu filho da
forma como desejam? Alguns veem mais moralidade na cobrança financeira do que
no direito do doente de decidir sobre sua morte. Respeitar a dignidade dos
mortos, independentemente de quem sejam, e preservar a vida possível como um
ato coletivo também perdem sua importância; a morte, além de burocrática,
torna-se rentável.
Vemos uma história onde alguém escolhe
quando partir, limitando a experiência ao suportável. Contudo, essa escolha
leva a uma experiência de marginalidade, lutando para preservar o que se torna
essencial em sua existência. Por outro lado, em “Ainda Estou Aqui”, observamos
a destituição completa de toda uma família que, a partir da subtração de seu
ente, passa a um estado de suspensão das coisas, onde a tentativa é restituir,
reconstituir algo, mas que parece ter sua dimensão insuperável: efeitos muito
danosos da introjeção extrativa.
Mesmo assim, o encanto desses filmes
está no que parece intocável ou inalcançável: a decisão de Martha de morrer sob
a luz do sol; a postura determinada de Eunice ao ser fotografada com sua
família: "Vamos sorrir, sim!"; ou ainda, o que podemos supor que
Rubens tenha pensado ao resistir até o fim, sua família. Tentar encontrar algo
vivo em torno do fim, me lembrou do breve poema que Winnicott deixou em sua
autobiografia inacabada, e compartilhado por sua parceira Claire:
“Oh, Deus! Possa eu estar vivo quando
morrer!” (Winnicott, 1994, p.3)
Penso que estar vivo, é estar completo sem que um agente externo possa capturar algo tão fundamental de nós mesmo. Para que ainda estejamos aqui até a hora de partir.
Gustavo L. Battagliese é membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e integrante dos GTs "Faces do Traumático" e "Diário Clínico"
Bollas, C. A Sombra do Objeto –
Psicanálise do conhecido não pensado. São Paulo: Escuta, 2015.
Uchitel, M. Traumas cotidianos: refúgios
e resistências. Percurso Revista de Psicanálise, Ano XXXVI, n.72. São
Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, 2024.
Winnicott, C. D.W.W.: Uma Reflexão. In
Explorações Psicanalíticas: D. W. Winnicott. Porto Alegre: Artmed, 1994.
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