Fala, homem! (Reflexões clínicas sobre os atendimentos de um grupo de escuta de homens)

O Blog publica um texto das psicanalistas Cristiane Gomes e Sabrina Arini, do grupo "Fala, homem!", contando suas impressões sobre a construção da masculinidade e sobre a escuta do sofrimento envolvida em um ideal de homem presente em nossa sociedade.

FALA, HOMEM!

(REFLEXÕES CLÍNICAS SOBRE OS ATENDIMENTOS DE UM GRUPO DE ESCUTA DE HOMENS)

Por Cristiane Gomes e Sabrina Arini

E o que falam os homens?

Ou, melhor colocado, o que escutamos, enquanto psicanalistas, nesta fala?

Como ruído de fundo, perpassando todo o discurso, uma surpreendente e flagrante fragilidade da posição masculina. O suposto sexo forte, escorado por seus inquestionáveis privilégios históricos, se revela permanentemente por um fio.

Um integrante do grupo chega para o encontro visivelmente alterado, e relata o assédio que acaba de sofrer, de um outro homem, no metrô. Se diz afrontado: - Ele achou que eu não era homem?

A masculinidade parece estar sempre em risco, precisando ser provada a todo momento, uma exigência constante e opressiva, impossível de ser satisfeita.

O achado clínico subverte a hipótese psicanalítica clássica, de que é a feminilidade que precisa ser construída pela menina, pois, para o menino, já de partida dotado de aparato sexual evidentemente superior, e heterossexual desde o seu primeiro objeto amoroso, a masculinidade seria naturalmente dada.

Neste sentido, a proposta de Stoller* sobre a construção da masculinidade fornece um argumento interessante: se é óbvio que o primeiro objeto de amor do menino é uma mulher, é também inegável que, nos primeiros estágios da vida, o menino experimenta um período de fusão e absoluta intimidade física e psíquica com a mãe, marca esta que introduz o perigo de um sentimento de unidade com uma mulher. Ainda segundo o autor, para atingir a masculinidade, o menino precisa enfrentar a separação da mãe, abrindo mão dessa intimidade idílica e se livrando dos vestígios de feminilidade que possa haver desenvolvido nesta simbiose.

Assim, entendemos que, para o homem, há algo do feminino que precisa ser radicalmente evitado. Seja na tentativa de separação da simbiose materna, como de qualquer resquício de fragilidade que remeta à identificação feminina. O masculino se ancora na ideia da total potência. E, para nossa surpresa, os homens realmente acreditam que esse homem absoluto, poderoso, inteiro, exista. Passam a vida tentando preencher os itens dessa ‘tabela’, buscando chegar o mais próximo possível desse ideal.

Mais do que isso, sentem uma angústia imensa por não ser esse homem idealizado, porque não o ser é praticamente deixar de ser homem. Por isso é tão comum que, entre eles, os xingamentos girem em torno dos termos 'maricas', 'gay', 'boiola', para citar alguns. E que poderiam ser substituídos pelos rótulos 'frágil', 'passivo', ou 'menos homem'.

Mas o que parece apenas uma brincadeira 'de meninos' traz em si um efeito muito nocivo, pois nesta construção do masculino, ser visto como 'menos homem' impacta profundamente a subjetividade deles, e faz com que passem a nortear as suas decisões em grande medida a partir deste referencial.

Ouvimos também, com muita clareza, o quanto os homens não aprenderam, de fato, a falar sobre os seus afetos. Porque esse é um dos ensinamentos de 'como ser um homem de verdade'. Não chorar, não valorizar os próprios sentimentos e, na maioria das vezes, não saber o que fazer com eles, integram a lista de regras a serem seguidas para se tornar um homem com H maiúsculo.

Então, quando são invadidos por afetos, emoções que não reconhecem e com as quais não sabem lidar, o único caminho possível e autorizado é o da violência. Não dispõem de nenhuma outra legenda para nomear o que sentem a não ser a raiva.

Ao relatar a perda recente da sua gata de estimação, um participante do grupo descreve a importância da gata para ele comparando-a ao aspirador de pó que, segundo disse, também dava um 'up' em sua vida. Completamente tomado por um sentimento que não podia nomear ou entender, ele grita com o grupo todo e sai, em um movimento bastante disruptivo.

Nesta busca constante por alcançar um modelo masculino inatingível, se desdobrando para tornar-se este homem 'sem buracos', acabam se transformando em sujeitos depressivos ou agressivos – consigo mesmos e com os outros.

Os homens morrem mais cedo, vão presos em maior número (são 96% da população carcerária), matam mais e suicidam‐se quatro vezes mais do que as mulheres. Se convertem em bombas relógio, prontos para explodir.

É essencial e urgente podermos sustentar a referência de outro modelo masculino possível. E, ao oferecer uma escuta sensível, criar a possibilidade desta fala em primeira pessoa que possibilita o reconhecimento e a nomeação dos afetos.

Porque ser homem, hoje, é matar ou morrer.

Ou estão totalmente inebriados neste lugar de absoluta potência, e capazes de aniquilar o outro para se sustentar ali, ou estão aniquilando a si mesmos exatamente por não conseguirem alcançar este ideal. É absolutamente sem saída.

Escutar os homens é uma tarefa inadiável.

(*) Stoller, R., Perversão: A forma erótica do ódio. São Paulo, Hedra, 2018, pp. 76-82.

Cristiane Gonzalez Gomes é psicanalista e engenheira, mestre em Sistemas de Informação. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e integrante do “Fala, homem!” desde 2019.

Sabrina Arini é psicanalista, faz o curso de Psicanálise: Teoria e Clínica do Departamento e coordena o projeto Roda de conversa: “Fala, homem!”. Coordenou grupos no projeto Nuraaj (Clínica do Instituto Sedes Sapientiae). É formada em comunicação social pela ESPM e mestre em comunicação pelo IED (Instituto Europeu de Design) de Barcelona.  

Comentários

  1. Bom dia! Gostei de ler o texto. Muito bom saber das rodas de conversa para homens. Vocês apontam questões fundamentais da encruzilhada em que ficam muitos homens. Os dados sobre mortes, suicídios, homicídios e encarceramento são estarrecedores. Parabéns! Paula Francisquetti

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  2. Oi, gente. Sempre bom que nossos encontros geram ensaios e reflexões que só fazem as moléculas circularem.

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