O sentido de um tempo: para sempre e nunca mais

Inspirada pela visita ao Museu de Arte Osório César, sediado no Complexo Juqueri, nossa colega Soraia relembra suas experiências no campo da saúde mental nos anos de 1984/5, período em que o Brasil passava pelo processo de redemocratização. Nesse belo texto a autora nos fala de ações voltadas aos direitos humanos, de memória e da restauração da possibilidade de sonhar.  

 O SENTIDO DE UM TEMPO: PARA SEMPRE E NUNCA MAIS

Soraia Bento


Nos longínquos anos 1984/5 um grupo de jovens universitários que cursavam Psicologia e Medicina, reuniu-se nos porões da FMUSP com um desejo vivo de refletir sobre os caminhos que a área da saúde mental poderia percorrer em um Brasil sob processo de redemocratização. Éramos muito jovens, tínhamos nascido sob as garras da ditadura civil militar e alimentávamos o sonho de viver em liberdade de pensamento com garantia de direitos na diferença. Essa era a perspectiva que orientava nossos olhares, nossos autores estudados e nosso desejo de iniciarmos uma prática clínica. A partir de um relatório da Comissão Teotônio Vilela por Direitos Humanos (CTV), tivemos acesso à investigação de violações cometidas aos sujeitos internos em estabelecimentos de privação de liberdade sob custódia do Estado, como manicômios e prisões. As descrições eram aterradoras e incendiaram a nossa força juvenil a buscar elaboração do traumático vivido através de alguma ação. A verdade inacreditável era verdade, mesmo inacreditável!

Nenhum muro nos deteria sem que pudéssemos questioná-lo empunhando livros e coragem. Iniciamos com duas ações paralelas: conhecer o maior número das chamadas instituições totais entre São Paulo e Rio de Janeiro e infiltrar-nos em uma clínica feminina do complexo Juqueri com a consígnia de que faríamos um trabalho voluntário, passando tempo com as internas para ocupá-las com histórias, brincadeiras e outras coisas que se faziam nos hospitais psiquiátricos com alguma dignidade.

Visitamos a antiga FEBEM, o Manicômio Judiciário, O Hospital Anchieta, Hospital Vila Mariana, Engenho de Dentro, Pedro II, o ateliê onde trabalhou Nise da Silveira... em cada lugar, incontáveis histórias se abriram.

Conhecemos Artur Bispo do Rosário e seus mantos adornados pelos bordados feitos a partir do desmanche de tecidos, de onde retirava os fios de linha. A figura de Bispo do Rosário e seus estandartes era a síntese da resistência contra os processos de dessubjetivação, não da esquizofrenia propriamente dita, mas do confinamento imposto pelo Estado. Se o propósito era retirar todas as garantias identitárias, tornando os pacientes zumbis; ele, ao contrário, era um rei no seu território, diferente de tudo e de todos, sendo duplamente louco porque adoeceu e porque ao romper com o sistema para dar textura e forma às vozes que o acompanhavam, tornou-se artista, único.  Ele vivia entre suas empoeiradas obras deslumbrantes e montanhas de sucata recolhida em um anexo próprio. Aquele espaço despertava encantamento sem tamanho, mas também dimensionava o sofrimento de uma vida apartada do espaço social. Curiosidade, simpatia e admiração nos aturdia nessa visita guiada por ele.                                                           

Sim, romantizávamos muito o saber da loucura e ao adentrar o espaço de horror, encontramos um universo de sobreviventes estropiadas por um processo terrível de alienação: mulheres vestidas com aventais iguais e puídos, andando a esmo no pátio delimitado por muros altos e um avarandado que contornava o belíssimo pavilhão projetado por Ramos de Azevedo. Em poucos passos fomos conhecendo a carência de convívio em que viviam aquelas mulheres. Chegavam pedindo tudo: principalmente para serem tiradas dali, mas também pediam cigarro, bala ou nossos pertences. Queriam nos tocar como se fossemos seres de outro planeta.

Muitas histórias foram ouvidas ao invés de serem contadas por nós, como imaginado inicialmente. Fomos ganhando um pouco da confiança de algumas que resistiram a robotização e a clausura. Nos falaram da Rotunda, lugar onde os “rebeldes” eram confinados em solitárias forradas por estofamento para machucarem-se menos quando desesperavam. Eletrochoques, “sossega-leão” e camisa de força eram as “terapêuticas” adotadas contra rebeldias.

Subversivos, jovens grávidas, gays e lésbicas eram internados pelos familiares por não aceitarem suas escolhas. A força bruta da tortura e do exílio, em prática nos anos de chumbo, condensavam-se nesse abusivo exercício de poder das “famílias de bem” que decidiam afastar aqueles membros desadaptados em relação aos seus valores.

O modo como se estabelecem as relações de poder dentro dos espaços asilares, sem dúvida, passa pelo poder no uso excessivo de medicações antipsicóticas e pela supressão de referenciais identitários e familiares, produzindo sujeitos sujeitados. Na perdição e apagamento de suas histórias, os nexos associativos vão esvaindo-se com o tempo e fabricam-se andarilhos com seus maneirismos, dando voltas em círculo, numa conversa interminável com as vozes que habitavam suas cabeças. Uma mulher de meia idade repetia sem parar seu nome, sua ocupação antes da internação e cidade onde morava. Ficava clara a tentativa de preservar na memória a sua identidade, mas também ficava sugerido o aprisionamento nas referências da anamnese psiquiátrica. Porém, com uma simples pergunta sobre o tempo de permanência no hospital, uma certa singularidade foi resgatada:  - “não sei, mas esse muro já foi pintado algumas vezes”. Qual seria o intervalo entre as pinturas: 10, 15 anos?!  Trata-se de uma bela imagem literária.

A partir das nossas conversas, criamos uma festa como projeto de trabalho conjunto. Inventamos a festa a partir das lembranças de músicas significativas que eram aprendidas e cantadas por todos nós. Sem nenhum exagero, foi uma festona com sanfoneiro, pipoca, salsicha e sorvete. Foram 4 meses de preparativos entre buscar patrocínio externo e o convite ao resgate das histórias de vida. Ouvimos que sem homens a festa perderia sua graça e batalhamos pela autorização para a entrada de alguns internos para dançarem com elas. Foi um dia louco e inesquecível...

Histórias, nossas e delas, foram entremeando-se para nos escancarar a força bruta do pulsional. Para conter as intensidades da experiência convidamos Suely Rolnik e Sergio Maida para nos ajudar. Constituiram para nós, uma espécie de casal parental, sabido dessas coisas da subjetividade e de instituições. Foram fundamentais continentes para nossas angústias. Estudamos e vivemos a loucura em nós e no outro. Um de nós sucumbiu e fez um vôo sem retorno, do 11* andar ao chão. A dor de olhar para o lado de dentro de si levou-o ao salto eterno como saída. Nunca esteve confinado entre muros, porém a impossibilidade de viver dentro dos muros interiores, conduziu nosso jovem poeta ao extremo.

Algum tempo depois, o grupo, no formato original, se desfez; resistimos uns poucos, garantindo uma visita semanal ao Juqueri, já sem outro objetivo a não ser estar lá, com elas.

O hiato entre essas experiências e uma visita atual ao Museu de Arte Osório César, sediado no Complexo Juqueri, é imenso, mas condensou-se em um instante, quando a percepção da exuberância arquitetônica, do caminho de asfalto bordeado pela mata e do barulho do trem, reconectou fios que andavam perdidos na memória.

O museu fundado em 1985, foi restaurado depois de um incêndio e reinaugurado no final de 2020. Cem anos antes, o médico Osório César fundou uma escola livre de artes plásticas depois de ficar impressionado com a produção de alguns pacientes. Casado com Tarsila do Amaral, convidou intelectuais e artistas; Flavio de Carvalho esteve entre eles; para influenciarem no fazer artístico, mostrando nova técnicas. É lindo ver a transformação em alguns.

O museu dispõe de um rico acervo com obras de vários artistas que estiveram ali internados.    

A visita, numa linda tarde de inverno, contou com a companhia de uma amiga historiadora e uma monitora local. Conversando sobre os artistas, nossa guia postou-se em frente a uma tela em que uma mulher japonesa era representada múltiplas vezes, como se dançasse em frames. Com os olhos marejados, ela nos diz que o tema comum entre os artistas era a saudade de um tempo e de lugares inalcançáveis. A artista Masayo Seta soube representar como ninguém seu Japão perdido para sempre.

O tempo que corria no complexo Juqueri tinha a densidade do para sempre e nunca mais.  Os lugares de memórias difíceis nos lembram daquilo que não pode ser esquecido, para não ser repetido.

Esses artistas convidam nossos olhares, para reconduzi-los aos seus sonhos de outrora.

Em tempos de ataque à democracia orquestrado por um homem sem escrúpulos, que ocupa o mais alto cargo dentro da nossa República e de uma sensação de atordoamento zumbi da grande massa digitalmente indignada, mas sem maiores manifestações na rua, essas lembranças da juventude vieram à tona. Nós também precisamos restaurar nossos sonhos de democracia e ar respirável para sustentar enunciados nas ruas.

Se “No princípio era o verbo”, no fim há de ser também. O verbo, do ponto de vista semântico, contém a ação. Os sonhos daquela juventude, que subiu no trem e entrincheirou-se com os deserdados da sociedade, não podem ser em vão. Já passamos dos 50 anos de idade, mas estejamos resistentes contra a apatia e prontos para abraçar quem mais vier para tomarmos o trem de hoje.

Soraia Bento é psicanalista, professora e supervisora do curso de Psicanálise e membro do Departamento de Psicanálise

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