Era uma vez Pindorama
Mara Selaibe, comenta sobre a importante iniciativa do Departamento de Psicanálise do Sedes de aproximação e de escuta da questão indígena inaugurada pela Revista Percurso que incluiu o tratamento do tema na publicação de número 66 e o evento "Mundos indígenas: o que vive em nós?" realizado no final de junho pelo Grupo da seção Debates de Percurso.
Era uma vez Pindorama
Mara Selaibe
“E aquilo que nesse momento se revelará
aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio”
(Um
índio, Caetano
Veloso, 1977)
Pindorama: Terra das Palmeiras em tupi-guarani, língua das tribos litorâneas originárias. Desde que os Pataxó foram abordados pela invasão das caravelas portuguesas e seus 1400 homens desembarcaram, nunca mais Pindorama pode ser Terra livre dos Males.
São 522 anos de
extermínio e de sofrimentos atrozes; não seria viável neste espaço recuperar
dados que os livros escolares de História jamais contaram, mas que se encontram
disponíveis na literatura acadêmica comprometida e, principalmente, impresso na
vida dos povos originários destas terras. Monte Pascoal, Ilha de Santa Cruz,
Terra de Vera Cruz... Marcada pela aliança entre Estado e Igreja, a vida dos
indígenas tornou-se propriedade portuguesa e europeia. A Constituição
Republicana de 1891 não mudou as condições dos indígenas. E se a Constituição
de 1988 salvaguarda o direito de proteção especial à cultura dos povos
indígenas, na prática as atrocidades seguem impunes na maior parte das vezes.
Sobre isso não falamos
quase nada ainda. E devemos falar, precisamos falar, temos de escutar o que
cada cidadão brasileiro indígena tem a nos contar e a nos ensinar, a participar
e a transformar nesta vida que tem se tornado a cada dia mais miseravelmente
reduzida ao capital. O futuro é ancestral,
frase de Ailton Krenak que reverbera pela beleza, precisa ser muito bem
compreendida por nós. Trata-se da História da vida neste país – e não apenas
nele.
Nessa direção inconteste,
o Grupo da seção Debates de Percurso – Revista de Psicanálise inaugurou – no
interior deste Departamento de Psicanálise – um diálogo público explicitamente
voltado para nossas questões atuais e mais urgentes desde 21 de abril de
1500... Quem esteve presente na manhã de
sábado, dia 25 de junho último, para acompanhar e participar do evento Mundos indígenas: o que vive em nós?[1],
transmitido pelo canal do YouTube do Instituto Sedes (e lá segue disponível),
possivelmente desfrutou de horas que marcaram suas reflexões e reverberarão
daqui em diante para a busca de outros encontros dessa ordem.
Temos ainda mais a agradecer
ao Grupo de Debates da revista Percurso uma vez que, antes desse memorável
evento, trouxe, em seu número 66, um Debate que nos introduziu a esse tema,
incluindo outras vozes e perspectivas.[2] [3]
Os participantes da mesa
abordaram a gravidade do que segue se passando no Brasil em relação ao
extermínio genocida e aos ataques constantes aos povos indígenas,
invisibilizados, traumatizados e desconhecidos da grande população do país.
Essa catástrofe humana vem do período colonial e recebeu enorme agravo no
período da ditadura civil-militar, conforme podemos ler no Relatório Figueiredo[4], mais de uma vez citado
por Renata Tupinambá. Contudo, Renata também sublinhou a força dos “lugares de
pensamento indígena”: conceitos, filosofias, cosmopolíticas, manifestações
culturais que sustentam a existência e a resistência de todas as coletividades
ancestrais e atuais por mais de cinco séculos.
Os presentes puderam
dialogar também com os depoimentos dos não-indígenas que mantiveram ou mantêm
algum grau de convívio profissional com algumas tribos. Luiz Bologhesi em suas
andanças e permanências junto a tribos Yanomami que participaram das gravações
de seus filmes, evidenciou as tentativas frequentes, desde a colonização até o
presente, de submetimento desses povos a modelos culturais eurocêntricos e como
se dá ainda hoje a correlata resistência ativa ou silenciosa que exercem.
Na posição de antropóloga
e indigenista, Juliana Rosalen generosamente compartilhou parte de suas
experiências junto a povos Waiãpi, no Amapá, tendo como foco o que “aprendi
sobre a formação das pessoas” junto a eles, ao longo de mais de duas décadas.
Pataxó, Tupinambá, Guarani,
Yanomami, Wajãpi... são povos diferentes, com cosmologias e culturas diversas,
com tradições e histórias singulares. E são fontes de brasilidades
“pindorâmicas” pouco ou quase nada conhecidas entre nós. Porém, agora, neste
Departamento, são fontes de desejo de aproximação na medida em que, afinal, como
nos ensina Eduardo Viveiros de Castro “Hoje a população urbana do país, que
sempre teve vergonha da existência dos índios no Brasil, está em condições de
começar a tratar com um pouco mais de respeito a si mesma, porque, como eu
disse, aqui todo mundo é índio, exceto quem não é.”[5]
Mara
Selaibe é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise
do Sedes Sapientiae.
[1] Com a participação de Luiz Bologhesi (diretor dos
filmes Ex-Pajé (2018) e A última floresta (2021), disponíveis na
Netflix), Juliana Rosalen (antropóloga, sócia fundadora do Iepé – Instituto de
Pesquisa e Formação Indígena) e de Renata Tupinambá, cujo nome indígena é
Aratykra (jornalista da etnia Tupinambá, difusora das culturas indígenas), mediados
por Lucila de Jesus Gonçalves (psicanalista e autora de Na fronteira das relações de cuidado em saúde indígena (2011) e Ponte (2018)).
[2] Debate O que vive
em nós, com a participação de Emerson Souza Guarani, Juliana Rosalen,
Lucila de Jesus Mello Gonçalves, Preiscila Ambrósio Moreira, Thiago Barbalho e
Maria Rita Kehl.
[3] Numa feliz coincidência, é preciso marcar que no número
67 da mesma Percurso – Revista de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do
Sedes, consta a entrevista Pergunte aos indígenas,
realizada pela equipe de entrevista junto ao antropólogo brasileiro Eduardo
Viveiros de Castro!
[4] Relatório
Figueiredo – Jader de Figueiredo Correia foi o procurador da República que
entre 1967 e 1968, a pedido do ministro do Interior à época, Afonso Augusto de
Albuquerque Lima, apurou, em mais de 7000 páginas, as violências cometidas
contra os povos originários a partir de 1950. Violências cometidas diretamente
pelo Estado ou por fazer vistas grossas frente aos crimes cometidos por
fazendeiros. O Relatório só foi reencontrado em 2012, no Museu do Índio/RJ. O
texto está disponível na internet e também há o livro Relatório Figueiredo – Genocídio Brasileiro, de Alvaro Ricardo de
Souza Cruz, editado em 2018, pela Lumen Juris.
[5] Eduardo Viveiros de Castro No_Brasil_todo_mundo_é_índio.pdf (agosto, 2006)
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