O Blog do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes é um dos veículos de comunicação em que circulam informações, produção de conhecimento, experiências clínicas e de pesquisa de seus diferentes membros. A interlocução com o público, dentro e fora do Departamento, é uma maneira de disseminar a troca no campo da Psicanálise e possibilitar a ampliação do alcance das reflexões em pauta. Equipe do Blog: Fernanda Borges, Gisela Haddad, Gisele Senne de Moraes, Lucas R. Arruda e Paula Lima Freire.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Era uma vez Pindorama

Mara Selaibe, comenta sobre a importante iniciativa do Departamento de Psicanálise do Sedes de aproximação e de escuta da questão indígena inaugurada pela Revista Percurso que incluiu o tratamento do tema na publicação de número 66 e o evento "Mundos indígenas: o que vive em nós?" realizado no final de junho pelo Grupo da seção Debates de Percurso.

Era uma vez Pindorama

Mara Selaibe

 

“E aquilo que nesse momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio” 

(Um índio, Caetano Veloso, 1977)


Pindorama: Terra das Palmeiras em tupi-guarani, língua das tribos litorâneas originárias.  Desde que os Pataxó foram abordados pela invasão das caravelas portuguesas e seus 1400 homens desembarcaram, nunca mais Pindorama pode ser Terra livre dos Males.

São 522 anos de extermínio e de sofrimentos atrozes; não seria viável neste espaço recuperar dados que os livros escolares de História jamais contaram, mas que se encontram disponíveis na literatura acadêmica comprometida e, principalmente, impresso na vida dos povos originários destas terras. Monte Pascoal, Ilha de Santa Cruz, Terra de Vera Cruz... Marcada pela aliança entre Estado e Igreja, a vida dos indígenas tornou-se propriedade portuguesa e europeia. A Constituição Republicana de 1891 não mudou as condições dos indígenas. E se a Constituição de 1988 salvaguarda o direito de proteção especial à cultura dos povos indígenas, na prática as atrocidades seguem impunes na maior parte das vezes.

Sobre isso não falamos quase nada ainda. E devemos falar, precisamos falar, temos de escutar o que cada cidadão brasileiro indígena tem a nos contar e a nos ensinar, a participar e a transformar nesta vida que tem se tornado a cada dia mais miseravelmente reduzida ao capital. O futuro é ancestral, frase de Ailton Krenak que reverbera pela beleza, precisa ser muito bem compreendida por nós. Trata-se da História da vida neste país – e não apenas nele.

Nessa direção inconteste, o Grupo da seção Debates de Percurso – Revista de Psicanálise inaugurou – no interior deste Departamento de Psicanálise – um diálogo público explicitamente voltado para nossas questões atuais e mais urgentes desde 21 de abril de 1500...  Quem esteve presente na manhã de sábado, dia 25 de junho último, para acompanhar e participar do evento Mundos indígenas: o que vive em nós?[1], transmitido pelo canal do YouTube do Instituto Sedes (e lá segue disponível), possivelmente desfrutou de horas que marcaram suas reflexões e reverberarão daqui em diante para a busca de outros encontros dessa ordem.

Temos ainda mais a agradecer ao Grupo de Debates da revista Percurso uma vez que, antes desse memorável evento, trouxe, em seu número 66, um Debate que nos introduziu a esse tema, incluindo outras vozes e perspectivas.[2] [3]

Os participantes da mesa abordaram a gravidade do que segue se passando no Brasil em relação ao extermínio genocida e aos ataques constantes aos povos indígenas, invisibilizados, traumatizados e desconhecidos da grande população do país. Essa catástrofe humana vem do período colonial e recebeu enorme agravo no período da ditadura civil-militar, conforme podemos ler no Relatório Figueiredo[4], mais de uma vez citado por Renata Tupinambá. Contudo, Renata também sublinhou a força dos “lugares de pensamento indígena”: conceitos, filosofias, cosmopolíticas, manifestações culturais que sustentam a existência e a resistência de todas as coletividades ancestrais e atuais por mais de cinco séculos.

Os presentes puderam dialogar também com os depoimentos dos não-indígenas que mantiveram ou mantêm algum grau de convívio profissional com algumas tribos. Luiz Bologhesi em suas andanças e permanências junto a tribos Yanomami que participaram das gravações de seus filmes, evidenciou as tentativas frequentes, desde a colonização até o presente, de submetimento desses povos a modelos culturais eurocêntricos e como se dá ainda hoje a correlata resistência ativa ou silenciosa que exercem.

Na posição de antropóloga e indigenista, Juliana Rosalen generosamente compartilhou parte de suas experiências junto a povos Waiãpi, no Amapá, tendo como foco o que “aprendi sobre a formação das pessoas” junto a eles, ao longo de mais de duas décadas.

Pataxó, Tupinambá, Guarani, Yanomami, Wajãpi... são povos diferentes, com cosmologias e culturas diversas, com tradições e histórias singulares. E são fontes de brasilidades “pindorâmicas” pouco ou quase nada conhecidas entre nós. Porém, agora, neste Departamento, são fontes de desejo de aproximação na medida em que, afinal, como nos ensina Eduardo Viveiros de Castro “Hoje a população urbana do país, que sempre teve vergonha da existência dos índios no Brasil, está em condições de começar a tratar com um pouco mais de respeito a si mesma, porque, como eu disse, aqui todo mundo é índio, exceto quem não é.”[5]

Mara Selaibe é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae.

[1] Com a participação de Luiz Bologhesi (diretor dos filmes Ex-Pajé (2018) e A última floresta (2021), disponíveis na Netflix), Juliana Rosalen (antropóloga, sócia fundadora do Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena) e de Renata Tupinambá, cujo nome indígena é Aratykra (jornalista da etnia Tupinambá, difusora das culturas indígenas), mediados por Lucila de Jesus Gonçalves (psicanalista e autora de Na fronteira das relações de cuidado em saúde indígena (2011) e Ponte (2018)).

[2] Debate O que vive em nós, com a participação de Emerson Souza Guarani, Juliana Rosalen, Lucila de Jesus Mello Gonçalves, Preiscila Ambrósio Moreira, Thiago Barbalho e Maria Rita Kehl.

[3] Numa feliz coincidência, é preciso marcar que no número 67 da mesma Percurso – Revista de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Sedes, consta a entrevista Pergunte aos indígenas, realizada pela equipe de entrevista junto ao antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro!

[4] Relatório Figueiredo – Jader de Figueiredo Correia foi o procurador da República que entre 1967 e 1968, a pedido do ministro do Interior à época, Afonso Augusto de Albuquerque Lima, apurou, em mais de 7000 páginas, as violências cometidas contra os povos originários a partir de 1950. Violências cometidas diretamente pelo Estado ou por fazer vistas grossas frente aos crimes cometidos por fazendeiros. O Relatório só foi reencontrado em 2012, no Museu do Índio/RJ. O texto está disponível na internet e também há o livro Relatório Figueiredo – Genocídio Brasileiro, de Alvaro Ricardo de Souza Cruz, editado em 2018, pela Lumen Juris.

[5] Eduardo Viveiros de Castro   No_Brasil_todo_mundo_é_índio.pdf   (agosto, 2006)

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