Crimes da Ditadura - Folha de São Paulo

Renato Mezan e Maria Auxiliadora Arantes (Dodora) falam à Folha de SP sobre a importância e a atualidade da Edição Especial da Revista Percurso 52: Figuras Políticas do Mal, limites do humano.

Para psicanalistas, é preciso defender memória da ditadura


 ELEONORA DE LUCENA

O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) precisa ser debatido em salas de aula em todo o país, virar tema de livros didáticos, se transformar em assunto de filmes, peças de teatro e séries de TV.

O documento, que mostra como, durante a ditadura, o Estado foi estruturado para prender, torturar e eliminar os opositores, precisa ser disseminado, de forma sistemática e palatável, servindo para organizar discussões em clubes, associações de bairro e sindicatos.

É essencial lembrar o que aconteceu, criar um ritual coletivo para não esquecer a tragédia imposta pelo regime e impedir que os crimes e as terríveis violações de direitos voltem a acontecer. Assim como judeus recordam das vítimas do holocausto fazendo silêncio e tocando sirenes ou europeus homenageiam os mortos nas guerras com desfiles e discursos.

"Está mais do que na hora de o país ter um dia da lembrança ou da memória, em homenagem às vítimas da ditadura. É preciso uma ritualização coletiva, uma simbolização", defende o psicanalista Renato Mezan. Junto com a colega Maria Auxiliadora Arantes, ele sugere as ações delineadas acima.

O psicanalista Renato Mezan fala sobre a Comissão da Verdade
Os dois falam a propósito da última edição da "Percurso", publicação do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, que reúne textos de psicanalistas sobre os efeitos da ditadura em indivíduos e na sociedade. É a partir dessas reflexões que eles apontam a necessidade de ações para que o relatório da CNV "não caia na vala comum".

"Quando acontece uma tragédia dessas e ela não é processada e não se fala respeito, fica um buraco, uma coisa não resolvida que vai assombrar as gerações futuras. Na Alemanha isso ocorreu", afirma Mezan, 64, coordenador editorial da revista.

Para ele, o texto da CNV não cicatriza feridas. Ao contrário, tem um "poder cutucante, estimulante" que é salutar . "Ele abre a ferida com a finalidade de purgar. Ela estava coberta com pele, mas embaixo estava cheio de pus. O relatório lanceta isso", diz.

Na avaliação de Arantes, o impacto do relatório na sociedade pode ser "devastador", se a sociedade tomar conhecimento dos fatos, se colocar de pé e se indignar sobre o que ocorreu no país. E exigir que os militares contem onde estão os desaparecidos. "É uma responsabilidade nossa, da sociedade, não é um problema das famílias", declara.
Segundo a psicóloga, se o trabalho da CNV for bem divulgado em todos os níveis pode provocar movimentos envolvendo também as novas gerações e fazer com que o país avance no campo civilizatório.

"É um momento áureo em nosso país que não podemos deixar escapar. Façamos com dignidade o papel que nos cabe como cidadãos vivos para que esses fatos não ocorram nunca mais e que os responsáveis sejam julgados e punidos", advoga.

A psicóloga Maria Auxiliadora Arantes, em entrevista sobre a memória da ditadura
Autora de "Tortura" (Casa do Psicólogo, 2013), Arantes, 74, foi presa com seus dois filhos no dia da decretação do AI-5 (13 de dezembro de 1968), quando era militante da AP (Ação Popular) em Alagoas. Teve amigos assassinados pela ditadura.

Ela destaca que, como "a crueldade faz parte do ser humano", é preciso fazer "uma negociação permanente para que não haja tortura. Apesar de ser crime no Brasil, ela segue". Cita as rotinas em cadeias e prisões e as violências que atingem negros e pobres no país –temas também explorados pela "Percurso".

"O Estado de exceção continua existindo para grande parte da população brasileira, particularmente para a população jovem das periferias, principalmente negra", escreve a psicanalista Maria Angela Santa Cruz na revista. Segundo ela, a demonização e a criminalização dos jovens pobres os colocam "como os novos inimigos sociais, alguns dos atuais homines sacri brasileiros, vidas matáveis".

Mezan e Arantes afirmam que a discussão do relatório pode provocar redução de tortura nas cadeias –se o texto for integrado à formação de policiais e houver engajamento da sociedade.

"É preciso programas educacionais específicos para estudantes, magistrados, policiais. É um trabalho de formiga. Leva 25 anos para que a formação de policiais nessa linha resulte em mudança de atitude. Não se pode ter ilusão. O relatório produz indignação nas redes sociais, mas essa energia precisa ser canalizada. Sem um tipo de iniciativa organizada e de liderança nada vai mudar. Onde estão o Ministério da Educação, da Justiça, de Direitos Humanos?", pergunta Mezan.

O psicanalista lembra que a formação social do Brasil é "autoritária e excludente, gerando privilégios e vida boa para a minoria dominante".

"Levamos 300 aos para abolir a escravidão. O golpe de 1964 se inscreve no 'mainstream': foi mais um dos episódios de exclusão e autoritarismo. O relatório é parte de um movimento que se opõe a esse veio majoritário e dominante, profundamente infiltrado na cabeça das pessoas, nas suas atitudes. Isso exige ação, não deixar como está para ver como fica".

Otimista, ele enxerga sinais de melhoria e de maior tolerância no país. "Cresce a ideia de que a inclusão social é necessária, que minorias têm direitos, que é preciso melhorar saúde, educação, ampliar benefícios e respeitar as pessoas. Há um clima melhor no sentido de rever esse veio majoritário autoritário e excludente. Se isso mudar, vai levar dez gerações. Leva 200 anos para modificar 500 anos de mentalidade. Mas sem um tipo de iniciativa organizada nada vai mudar", afirma.

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