Desconstruindo Dilma
O
Blog publica a entrevista de Tales Ab'Saber, psicanalista e membro do
departamento, concedida ao jornalista André de Oliveira do jornal O Estado de
S. Paulo (10/10/2015) em que discorre sobre o seu mais recente livro "Dilma
Rousseff e o Ódio Político"
Na semana em que as contas do
primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff foram rejeitadas pelo Tribunal de
Contas da União, a temperatura política do País aumentou significativamente.
Pela primeira vez desde o início do segundo mandato, o impeachment apareceu no
horizonte como uma possibilidade real. O calor do momento, contudo, representa
para o psicanalista Tales Ab’Sáber o instante mais necessário e ideal para se
discutir o Brasil e seus rumos.
Com o livro Dilma Rousseff e
o Ódio Político, editado pela Hedra e disponível para venda em formato
digital e pré-venda em papel, Ab’Sáber busca traçar um perfil psicológico da
presidente - coisa que já tinha feito com Lula em Lulismo, Carisma Pop
e Cultura Anticrítica, no fechamento dos oito anos de governo do
ex-presidente. A ideia é explicar como as características de Dilma, somadas às
conjunturas do País, a conduziram ao estado de isolamento político em que se
encontra.
Para o psicanalista, o livro faz uso
de um aspecto pouco explorado pela sociologia política - a personalidade dos
governantes -, que pode ajudar a ampliar a discussão, oferecendo diferentes
perspectivas. A seguir os principais trechos da entrevista.
Quais traços da personalidade da
presidente são identificáveis no modo de ela governar?
A presidente tem uma posição singular
na esquerda brasileira. Ela não participou da dinâmica de formação do PT, veio
do PDT de Leonel Brizola, e sempre teve o perfil de uma pessoa técnica agregada
à política. Isso significa que, de algum modo, desde a origem, a presidente
sofre de certo isolamento político. O problema é estrutural e anterior à crise
que o governo está vivendo agora. O jeito dela governar é tomando decisões a
partir do gabinete. Ela manda mais do que negocia. É uma tecnocrata de esquerda
com um traço extremamente controlador, que fica claro na sua dificuldade de
liderar negociações. Dentro e fora do governo. Aliás, nesse ponto ela é
semelhante ao José Serra, seu adversário original em 2010. Os dois descendem de
uma longa tradição originária do discurso positivo, técnico, científico. Fazem
parte de uma “região” simbólica, subjetiva e sociológica bem brasileira. São
tecnocratas, descendentes de um positivismo que acalentava a fantasia da
existência de um sentido racional capaz de botar ordem no País. E que, por
isso, é também muito autoritária. No caso da presidente, sua formação é
completamente de oposição aos militares, mas, curiosamente, ela carrega esse
traço de tecnocrata que eles também tinham.
O Lula, então, é o oposto dela nesse
sentido?
Sim. O Lula, como o grande negociador
que é, era muito mais flexível e carregava menos certezas. Ele deixava as
forças sociais agirem através dele, organizava os poderes reais, mas não
impunha uma forma a eles. A Dilma, por sua vez, não tem a experiência da
negociação. Esses elementos não eram uma garantia do seu isolamento, mas são
traços que poderiam levá-la até ele. No começo do primeiro mandato até existiu
uma fantasia marqueteira em que ela aparecia como uma espécie de rainha, uma
matriarca que conseguiria organizar a política de forma dura. Mas uma faxina no
segundo mês de governo nunca é uma coisa saudável. É uma catástrofe política.
Mesmo porque faz-se a faxina, mas se mantêm os mesmos partidos, o mesmo modo de
operar.
A aprovação de Dilma era alta. Houve
a reeleição e, depois, uma queda abrupta. O que explica essa
queda?
São duas coisas. Em 2012, quando o
governo trabalhou fortemente para diminuir os juros, aconteceu um racha com
parte da riqueza nacional. A partir daí, setores até contraditórios, como
financistas e industriais, se uniram em torno de um discurso geral contra o
governo. Foi a quebra de um pacto estabelecido pelo lulismo. Depois teve junho
de 2013, o grande mistério da política brasileira. Num primeiro momento, foi a
batalha de jovens da esquerda independente por um ponto específico: transporte
público gratuito. Num segundo momento, depois de uma repressão violentíssima,
principalmente da polícia paulista, em que a vida cidadã foi reprimida, virou
um movimento pela democracia. Por fim, num intervalo de poucos dias, a crítica
à esquerda caiu no colo da direita. Em junho de 2013, já com o discurso do
grande capital contrário à política econômica do governo, que começara a ser
forjado em 2012, a direita descobriu a rua.
Por que todas essas questões
confluíram para aquele momento?
Foi quando o “keynesianismo de
consumo” dos governos Lula e Dilma estava deixando de ser viável. O governo não
podia mais bancar isso, inclusive por causa de uma crise mundial do capital. O
governo não soube manejar, não soube evoluir com as novas condições. E é
justamente nesse momento de ruptura de um pacto muito bem resolvido com o alto
capital, que as críticas econômicas liberam as forças antipetistas na vida
social. É um movimento político complexo que acabou por também liberar muitas
vozes diferentes, inclusive a da arcaica tradição antipopular e
antidesenvolvimento social brasileira. O preocupante é que essas vozes têm
aparecido, muitas vezes, na forma de um anticomunismo alucinatório, que joga bomba
e folheto em funeral. E como explicar um movimento anticomunista em pleno 2015?
Entre outras coisas, isso é fruto de um conflito não resolvido. Não resolvemos
direito nossa transição democrática, porque os nossos homens de negócio estavam
envolvidos com a ditadura e isso é constantemente esquecido, escondido. Mas o
pior é que parte da oposição tem se escorado nesse ódio alucinatório, buscado
forças nele para bater no governo e, assim, também acaba alimentando-o. Isso é
muito ruim, porque distorce as coisas. A crise econômica é grave? É. Mas a
politização torna o problema maior do que é. O Brasil já esteve muito mais
quebrado do que agora. E a política do primeiro mandato, de segurar o mercado
interno aquecido, em um momento de crise mundial, conseguiu segurar o
desemprego em 4,5% até o ano passado. No entanto, agora essas ações foram
jogadas no lixo como se elas nunca tivessem existido.
Por que o sr. acha que, além
abandonar essas ações, o governo nem sequer fala mais delas?
Isso é um enigma. Existia uma
política orientada para um sentido e essa política, de algum modo, se tornou
derrotada e inviável. Mas foi por isso, e não por outro motivo, que a Dilma foi
reeleita. O efeito favorável daquela política se esgotou. Mas por que ninguém
sequer fala dela? A política manteve o País animado até o ano passado! É nesse
ponto que falta a força da voz esclarecedora da governante. Ela deveria falar,
mostrar para a vida pública o que e por que está fazendo. Essa voz não veio nos
momentos em que foi mais necessária.
E qual será o desenlace dessa crise?
Com a liquidação política da ação da
presidente, o Lula entrou em cena. E, como ele é muito hábil, em 15 dias
costurou um acordo com o PMDB. Só que a partir daqui tudo é imprevisível. Existe
um grupo tentando forçar um impeachment desde o primeiro mês de governo. Quer
dizer, ela tinha acabado de ser eleita com 54 milhões de votos e já se falava
em impedimento. Isso demonstra uma falta de maturidade democrática imensa, que
acabou por fornecer muito poder para quem detinha apenas pequenos fragmentos de
poder. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, que é um órgão de assessoria
da Câmara, totalmente político, constituído e escolhido por políticos, agora
tem o poder de fazer com que um processo de impedimento siga em frente. A minha
suposição, contudo, é de que o processo de impeachment não interessa a ninguém
sério, nem à oposição, porque entregaria o país ao incerto. Em um determinado
cenário, até o Eduardo Cunha, denunciado ao STF por corrupção e lavagem de
dinheiro, com contas secretas descobertas na Suíça, assumiria como presidente
do Brasil. A quem interessa isso? No entanto, a tática da oposição parece ser a
de manter o governo na corda o tempo inteiro, sem espaço para governar. Só que
isso, somado à fragmentação das forças políticas, pode acabar por sair do
controle e não seria nada bom para a nossa democracia se esse precedente fosse
aberto.
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