Conversas sobre Psicanálise e Política com Maria Beatriz Vanucchi



​O convite do blog do Departamento de Psicanálise é uma oportunidade para tentar articular algumas hipóteses interpretativas sobre o que se passa na conjuntura política, em que vivemos uma cena social carregada de fenômenos de massa, com o acirramento das paixões odiosas e seus efeitos sobre as subjetividades.

​Neste panorama, o tema da caça aos “corruptos” ganha dimensão e tonalidades de uma moral empobrecida e maniqueísta, a ponto de violar alguns parâmetros básicos do exercício da política e suas disputas.

 A corrupção e a promiscuidade no trato entre o público e o privado é uma prática desde a fundação do Estado brasileiro e seria muito importante   zelar pelo patrimônio público. Porém, o modo como esse tema tem protagonizado a discussão política tem servido mais para mascarar o problema do que para lidar com ele.  A escolha de bodes expiatórios, por parte do discurso midiático, aliada a um verdadeiro espetáculo justiceiro, promovem muitos danos à convivência democrática. ​

​ O protagonismo das delações premiadas e das prisões irregulares se instala como um sintoma social[1], e,me arrisco a dizer ,  encena  a  solução perversa  de uma sociedade que  não   quer saber de sua responsabilidade     em relação  aos crimes da ditadura civil-militar e  das   praticas de violação  com a população em situação de vulnerabilidade.  

 Em face de uma justiça de transição inacabada, que deixou impunes os torturadores, jogando a sujeira de baixo do tapete, temos hoje um deslocamento da ideia de justiça e a fetichização de ritos de compulsão higiênica, como se fosse possível lavar tudo isso a jato, sem entrar em contato com os crimes hediondos sob o comando do Estado. 

 A cena de votação da instalação do processo de destituição de uma presidente eleita, que sofreu os abusos da tortura, aparece como um desdobramento disso ao mesmo tempo em que projeta um cenário ideal para aqueles que não querem pagar o pato e que nunca o pagaram. Estes que sonegam impostos, com contas na Suíça e empresas off shore, são os que criam as palavras de ordem dos gritos de guerra contra a corrupção.

Quem se encarrega de entoá-los, fazendo o coro, é a classe média ressentida pela crise econômica, que grita ofensas, martela buzinas e  faz panelaços  clamando pela punição dos” bandidos”. E, reafirma sua posição na ditadura, denegando o saber que já sabe, sobre a história da corrupção no Brasil.  Tudo isso embalado e orquestrado pelos mesmos que conceberam a mis en scène no golpe de 1964. Outra vez, aqueles que vociferam contra a ilegalidade e a corrupção​, são os que dela se servem​ ostensivamente, só que agora com transmissão ao vivo e a cores.

Resta um clima de impostura, que fragiliza os laços sociais, solapando as referências de sociabilidade e do Estado democrático em sua função de sustentação da lei e de mediação dos conflitos.

Quando o pacto se esgarça, resta para os cidadãos o ônus de reconstruir a cada dia a sustentação de suportes e resgatar suas ​referências simbólicas no laço com o outro, ou se alienar no engodo. Para uns, com bastante trabalho, há a possibilidade de se religar e compartilhar valores e objetos. Para outros, há o abalo da noção de alteridade.

A perspectiva psicanalítica parte da ideia do mal-estar na cultura, como princípio da subjetividade, e aposta no trabalho com a palavra como recurso fundamental no trabalho com o conflito. A impostura da palavra retira o seu valor e comprime os espaços entre os pares no exercício da diversidade de vozes, restando a ruptura do diálogo, a intensificação do gozo e o sofrimento nos laços e no corpo.

Em minha prática de psicanalista e analista de famílias nas instituições, tenho testemunhado a queixa de muito cansaço, maior incidência de​ irrupção da angústia, assim como a intensificação do ódio e do medo. Ficam mais vulneráveis aqueles que não têm redes de suporte ou um repertório para reconhecer e lidar com a ameaça de fratura dos projetos no mundo. Isso ressoa ou faz estragos de acordo com os recursos e a formação sintomática de cada um e ganha expressão na cena transferencial.

É importante reconhecer que, à diferença de 1964, há hoje na sociedade brasileira movimentos de resistência ao embuste desta cena e alguns coletivos tem feito um esforço extraordinário para imprimir movimento e associações, a fim de esvaziar o espetáculo fascitoide que vem sendo montado. Além disso, o que é bastante importante, desta vez as forças armadas não compraram essa briga.

Assim como em outros campos de saberes, nós psicanalistas temos feito movimentos de elaboração de ferramentas, entre diversos grupos e formações, para o exercício de uma psicanálise ampliada e de intervenções com os efeitos de ruptura do contrato social. Isso aparece desde projetos especificamente ligados a isso, como as clínicas do testemunho, com refugiados, com as vitimas de violência do estado na periferia, com cidadãos em situação de vulnerabilidade social.

Houve também uma iniciativa inédita e importante de um espaço de encontro entre psicanalistas de várias instituições, a fim de manifestar uma posição em relação ao risco de ruptura da legalidade democrática. Reunião que aconteceu recentemente no IPUSP, com participação de psicanalistas do Departamento de Psicanálise. Nessa reunião e também no manifesto que ali foi lido, o ponto primordial em torno do qual houve um consenso foi defesa da democracia como condição da própria prática psicanalítica, já que ambas têm na liberdade da palavra o ponto fundamental para o exercício do contrato social e a sustentação da vitalidade no encontro com o mal-estar.
  
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Coordenadora do Núcleo de Atendimento de Famílias no Projetos Terapêuticos e membro da Clínica do Testemunho do Instituto Projetos Terapêuticos SP- de 2013 a 2015.



[1] Flavio Ferraz apresentou essa leitura no encontro no IPUSP. Eu concordo com ela, mas tendo a pensar numa montagem de tipo perversa.  

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