Uma Narrativa

Astréa Thereza Issler de Azevedo Ribeiro constrói uma interessante narrativa que apresenta uma analogia entre a vendedora de tecidos e o trabalho do analista em ‘construir’ com o paciente, a partir do que ele traz: sintomas, sonhos, atos falhos e o seu discurso livre (roupas remendadas e rasgadas), um novo ‘jeito de ser/sintoma’ (roupa nova) e que possa lhe proporcionar um movimento em direção à realização de seus desejos.

UMA NARRATIVA:

Sou dona de uma loja de tecidos de roupas. Tenho uma infinidade imensa de amostras, de rolos e retalhos de tecido. A loja é muito grande e tenho orgulho disso, porém me envergonho ao admitir que não saberia dizer qual sua extensão total. Talvez eu nunca tenha percorrido todos seus corredores, suas passagens largas e estreitas, seus porões e todas as suas salas grandes e pequenas. É possível que eu nem conheça todos os produtos que existam em estoque. Muitas das vezes aposto na sorte de que ao me deparar com o cliente, cara a cara, o produto que ele tanto deseja surja na nossa frente magicamente. Posso dizer que tenho tido sorte e meus clientes em geral acham o que procuram. É bem verdade que os deixo à vontade pela loja para percorrerem todos seus cantos e procurarem o que desejam.

Meus clientes são pessoas que aparecem aqui vestindo roupas desgastadas e surradas pelo tempo à procura de tecidos que possam fazer remendos e cobrir os seus rasgos e furos. Longe de serem mendigos ou pedintes meus clientes são muitas vezes pessoas ricas e abastadas. Usam essas roupas porque ao longo do tempo tiveram que se defender de algumas lutas travadas pela vida e agora essas roupas lhe são caras e assim não conseguem se desfazer delas. Meu sonho era ter um cliente que dissesse que desejava tecidos novos para confeccionar uma roupa nova. Nunca apareceu um cliente assim até hoje. Quem sabe um dia... Sou muito paciente com as demandas do cliente. Em princípio os deixo à vontade pelo vasto espaço e incentivo a vasculharem a loja toda. Meu trabalho é observar atentamente os detalhes da roupa rasgada e seu tecido original com seus furos, muitas vezes já remendados e fazer sugestões de tecidos. Minhas sugestões têm a meta de estarem de acordo com o desejo do cliente. Em geral é o cliente quem está sempre certo. Porém, outras vezes eles querem só me testar fazendo perguntas absurdas de remendos só para ver o que eu penso, como eu penso e se sou firme em minhas sugestões e opiniões. Sou sempre honesta; nunca renuncio a isso. Talvez por isso os clientes me indicam para outras pessoas. Eles acabam confiando em mim.

Vez ou outra não consigo me deparar com o tecido certo e nem o cliente o encontra. Sinto-me frustrada.  A partir desse impasse que se forma, eu tiro os búzios para me ajudar. Vou numa salinha num beco escondido da loja onde há uma pequena cadeira e uma mesinha com um cesto com os búzios prontos para serem jogados. Um pequeno oráculo modesto. Não disse nunca isso a ninguém. Confesso agora humildemente entre quatro paredes e posso afirmar que todas as respostas sempre foram acertadas e o cliente se viu satisfeito. Os búzios forneceram configurações e eu as interpreto. Me pergunto quem foi o responsável por tal escolha. Os búzios que caem em tal formação? Eu, que sou a intérprete? Minhas mãos que jogam os búzios? O espírito do cliente que está lá na loja procurando por algo? O acaso?... não sei responder. O fato é que alguém ou algo adivinhou qual seria o tecido perfeito e acertou. Isso basta para mim.

*

Pensei em uma breve narrativa que apresenta uma analogia entre a vendedora de tecidos e o trabalho do analista em ‘construir’ com o paciente, a partir do que ele traz: sintomas, sonhos, atos falhos e o seu discurso livre (roupas remendadas e rasgadas), um novo ‘jeito de ser/sintoma’ (roupa nova) e que possa lhe proporcionar um movimento em direção à realização de seus desejos. A ideia do Oráculo se faz presente pois acredito que, apesar de empregarmos as técnicas psicanalíticas, há algo que acontece para além da técnica e que não é sempre prontamente explicável.

*

Astréa Thereza Issler de Azevedo Ribeiro é psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae. Trabalha em consultório particular, e como acompanhante terapêutica. Trabalhou por dez anos como voluntária no Caps Unifesp coordenando grupos com pacientes com transtorno mental grave e atualmente é voluntária no Caism – Centro de Atenção Integrado à Saúde Mental. É também artista plástica pela ‘École van der Kelen’ de Bruxelas e filósofa pela ‘Universidade de São Paulo’. 

Comentários

  1. Astréa.gostei muito. Ando precisando jogar os buzios....

    ResponderExcluir
  2. Encontrar o tecido certo é mesmo uma arte. Às vezes ele surge do inesperado, de repente. Outras vezes, o processo é demorado, trabalhoso, demanda cuidado e cadeiras para sentar e esperar enquanto se fala. Foi um bom encontro essa loja que você nos abriu ao olhar. bjs

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Sobre Silvios e Anieles

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon

O planeta dos macacos brancos