Entrevista BLOG - abril 2022

Na pandemia os psicanalistas migraram seus atendimentos clínicos para a modalidade remota (telefone, skype, Whatsapp, etc) ou como, nossa entrevistada gosta de chamar, em-linha. Confira a seguir a conversa com Lia Pitliuk sobre esse fenômeno e o retorno aos atendimentos presenciais com o arrefecimento dos casos de covid-19 pós-vacinação. 

 

ENTREVISTA BLOG

ABRIL 2022

1)   O que foi possível observar do atendimento em linha durante a pandemia?

Você está se referindo ao que tem sido diferente do trabalho em-linha anterior à pandemia, não é? A maior de todas as diferenças está em ter sido uma modalidade assumida “no susto” e de forma compulsória, independente das indicações e contraindicações singulares. E também independente das relações que o analisando ou o analista tivessem com os modos de presencialidade mediados por tecnologias digitais. Isso teve efeitos muito fortes, claro, e por essa falta de preparo, nessa passagem muitos processos se enfraqueceram ou mesmo se inviabilizaram.

Antes da pandemia, o tema do em-linha não era conversado abertamente nos colóquios e encontros, e os analistas, em sua maioria, estavam despreparados para a própria montagem do setting, e mais ainda para a sustentação da disposição subjetiva necessária para a clínica analítica. A segurança do analista na própria proposição dessa modalidade conta muito para o desenvolvimento do trabalho, esse foi um ponto importante para tantos processos terem se interrompido na passagem para o em-linha. Daqui para a frente, penso que precisamos nos instrumentalizar cada vez mais e melhor, porque suponho que o em-linha não vá evaporar, caso se decrete o fim desta pandemia.

 

2)  Essa modalidade veio para ficar?

Tenho certeza que sim, e não só por pandemia. O mundo se transformou, a vida se transformou, nós não somos os mesmos de poucas décadas atrás. Não seria cabível que a psicanálise sobrevivesse num mundo assim globalizado, móvel e veloz, funcionando da mesma forma que no mundo de territórios delimitados e estáveis da modernidade. Ela se transforma por múltiplas vias, e o desenvolvimento de uma clínica em-linha é só uma delas. A formação dos analistas também está se transformando, por exemplo, estamos tendo muito a discutir.  

Claro que é problemático, é difícil, e que envolve mil dúvidas, questionamentos, riscos etc. Mas com a psicanálise isso nunca foi diferente, nem no século XX, nem agora no XXI.

 

3)  Você tem pesquisado ferramentas teoricoclínicas para potencializar a clínica em-linha, não é mesmo? Pode nos contar um pouco sobre isso?

Isso mesmo. Nos grupos de estudo e pesquisa, começamos a explorar as potencialidades de algumas linhas de pensamento, dentro da psicanálise, que pudessem nos ajudar a desenvolver uma clínica em-linha forte e que não implicasse num afastamento do corporal, do sensorial, do afetivo, da intimidade relacional etc. – enfim, de toda a dimensão do sensível.

Nos grupos, iniciamos essa busca por Winnicott e em seguida por Bollas, e a potência do pensamento dessa dupla só cresce, a cada dia – para a clínica psicanalítica em geral, é claro, mas muito particularmente para a clínica em-linha: ela ganha uma perspectiva de abertura de caminhos que merece muito ser examinada. A proposta clínica de Bollas, mais especialmente, tem sido fonte inestimável de fortalecimento para a clínica em-linha.

 

4) O que se tem observado sobre o retorno do atendimento presencial? Quais questões têm se apresentado?

Nesse momento todos os grupos estão discutindo isso, e até agora o que mais tem se destacado – como sempre - é a singularidade de cada situação clínica e de cada analista. Mas há um tema que, de certa forma, me parece uma novidade, que é a questão do setting híbrido em-linha/presencial. Durante o isolamento social, os analistas eram praticamente unânimes numa posição contrária a essa prática, e recentemente isso vem entrando em discussão, com o relato de muitos analistas de uma surpreendente experiência de continuidade nas análises com alternâncias de settings.

Tenho me perguntado sobre isso. Por um lado, temos que convir que o tempo da pandemia já foi um tempo de setting híbrido, porque tantos os analisandos quanto os analistas variaram muito os espaços físicos onde trabalharam  - da sala da própria casa para o carro, daí para um gramado sob uma árvore ou um quarto de hotel em outra cidade. Trabalharam também variando os dispositivos de comunicação, conforme a necessidade ou a disponibilidade.

Não seria possível que isso não produzisse marcas. Acho provável, assim, que estes 2 anos de trabalho em-linha tenham favorecido que os processos tenham se alojado mais na própria relação analista-analisando, de modo que as circunstâncias ambientais que cercam a dupla tenham perdido a importância que tinham antes. Isso tornaria mais compreensível que a alternância de settings impacte menos, hoje, do que o faria há tempos atrás.

Temos muito a pensar e a discutir. O que tem me espantado, de fato, é que não estejamos fazendo muitos encontros, simpósios, colóquios, debates de todo tipo, sobre clínica em-linha e sobre formação em-linha. Que bom que o blog do departamento está antenado com o tema! Espero que por aqui possamos conhecer um pouco mais as várias perspectivas que atravessam nosso depto, em relação a estes assuntos. Obrigada, pessoal do blog!

LIA PITLIUK – Psicanalista e psicóloga. Membro do departamento de Psicanálise e do departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae (SP), onde é docente no curso de formação de analistas, coordenadora dos grupos "EmLinha - Grupo de estudos e pesquisa sobre a clínica psicanalítica online", e “A perspectiva relacional em psicanálise”, e membro dos grupos  "Espaço Potencial Winnicott: estudo e pesquisa em Psicanálise" e "Winnicott: leituras e reflexões”. Docente no curso de pós-graduação em Psicanálise, Parentalidade e Perinatalidade do Instituto Gerar de Psicanálise e em cursos livres deste Instituto e do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Supervisora e coordenadora de grupos de estudo sobre Freud, Winnicott e Bollas.

Comentários

  1. Oi Lia: muito bom saber que vocês estão estudando essas questões. Muitos de nós engatamos numa outra forma de trabalho sem tempo e espaço para pensar nos efeitos destas mudanças, aliás bem interessantes. Um abraço, Eva

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Precisamos pesquisar, estudar, pensar muito sobre tudo isso, não é Eva? Qualquer hora, quero fazer isso com você também!!!! Abraços! Lia

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Sobre Silvios e Anieles

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon

Morte como Vida - pequenas reflexões a partir de Antônio Cícero