O que cabe à Psicanálise neste momento do Brasil?

"Quem acompanha a cena política se pergunta para onde vai o país, governado oficialmente pela esquerda, mas rachado e adernado à direita, num mundo em que cresce a força do fascismo, com seu corolário de racismo, violência de classe e opressão – opressão das mulheres, das minorias sexuais e dos opositores políticos"

Ivan Haro Martins tenta pensar como a psicanálise pode contribuir para a leitura deste nosso tempo. Não deixem de conferir!!!


O QUE CABE À PSICANÁLISE NESTE MOMENTO DO BRASIL?

Ivan Haro Martins


A ilusão durou uma semana. Entre a posse comovente de Lula, no primeiro dia de 2023, e a explosão de violência golpista no oito de janeiro, o Brasil acreditou que, de alguma forma, deixará para trás o envenenamento ideológico e a sedição que o fascismo bolsonarista fomentara incessantemente nos últimos quatro anos.

Mas não.

Quando o vandalismo organizado tomou a praça dos Três Poderes naquele domingo, sob os olhares cúmplices dos militares e dos policiais militares encarregados de manter a ordem, ficou claro para todos algo que a psicanálise suspeita desde a sua origem: a perversão não renuncia voluntariamente. Ela não se redime, e é inútil interpretá-la. Sujeitos perversos e perversões institucionais são barradas somente pela Lei.

Não por outra razão, o protagonista da vida pública brasileira desde o oito de janeiro tem sido Alexandre de Moraes, o corajoso juiz do Supremo que encarna, neste momento áspero da vida brasileira, o papel de fiador da Lei e da Democracia.

Os golpistas estão presos ou andam por aí de tornozeleira eletrônica, a mando de Moraes. Seus financiadores estão sendo investigados. O líder dos criminosos, refugiado em Miami, tenta adivinhar se o aguarda a prisão ou o palanque numa volta eventual ao Brasil. Seus seguidores contam-se aos milhões, porém. Pela primeira vez na história da democracia brasileira, há no Congresso uma bancada de extrema direita tão numerosa quanto popular.

Quem acompanha a cena política se pergunta para onde vai o país, governado oficialmente pela esquerda, mas rachado e adernado à direita, num mundo em que cresce a força do fascismo, com seu corolário de racismo, violência de classe e opressão – opressão das mulheres, das minorias sexuais e dos opositores políticos.

A psicanálise teria algo a dizer sobre isso tudo que ninguém tenha dito? Talvez, porque muitos que pensam o Brasil têm usado a psicanálise – ou pelo menos a linguagem psicanalítica - para tentar entender o que se passa ao nosso redor.

Rodrigo Nunes, autor dos textos luminosos que compõem o volume “Do transe à vertigem – Ensaios sobre o bolsonarismo em um mundo em transição”, começa por apontar “um trauma”: os eventos inesperados e violentos de 2013 assustaram de tal forma a esquerda que ela ainda não foi capaz de processá-los, como se faz necessário para seguir adiante.

Entre as causas profundas daquela insurreição, diz Nunes, encontra-se a “hegemonia neoliberal no campo dos afetos”, quer dizer, a despeito do fracasso econômico dessa forma extrema de capitalismo, que produziu em 2008 a maior crise econômica em quase 100 anos, (cujos resultados persistem até hoje, globalmente, na forma de imensa pobreza e concentração de riqueza), os valores neoliberais ainda prevalecem na população brasileira, que desconhece outra forma de viver ou de pensar.

“O nosso é um tempo em que convivem, lado a lado, um sentimento difuso de que, por motivos diversos, as coisas não podem continuar como estão (...) e a sensação de que as coisas não poderiam ser de outro jeito”, diz Nunes.

Essa paralisia do pensamento em torno de um paradoxo abre espaço para quimeras lógicas como o bolsonarismo, que usa a linguagem da ruptura e da destruição (da revolução, se poderia dizer) para promover o mais rasteiro reacionarismo.

Para entender o que se passa do lado direito do abismo ideológico que nos separa, diz Nunes, é necessário fazer bom uso do perspectivismo, isto é, colocar-se na pele do desvalido (econômico e psíquico) que adere a Bolsonaro afetivamente. Num mundo de enorme desamparo, em que a solidariedade sumiu de vista e todos competem contra todos, aliar-se a quem se diz mais forte faz todo sentido emocional, ainda que o seu programa seja assassinar o outro e destruir o mundo para recolher os espólios.

Para reabrir o diálogo com esse sujeito mesmerizado pelo bolsonarismo, Nunes acredita ser preciso atuar de forma distinta do que tem sido feito. Significa radicalizar como faz a extrema-direita global, mas na direção da mudança efetiva, aquela que impeça a destruição do planeta e da vida social. Enquanto a esquerda e o centro persistirem em “respostas normais” e “gradativas” (business as usual), para uma crise humana e material sem precedentes, que ultrapassou todos os limites toleráveis, continuará aberto para o fascismo o campo retórico e ideológico da mudança (ainda que falsa) que ele agora ocupa.

Francisco Bosco, o cientista político que escreveu “O diálogo possível – Por uma reconstrução do debate público brasileiro”, manifesta a mesma preocupação, a de superar a polarização e “desalienar o debate”. Ele sustenta que o problema dos meios digitais - elementos essenciais da polarização em curso - não é de natureza cognitiva, mas sim afetiva. “Nos termos lacanianos, é um problema imaginário, narcísico”, diz ele. Bosco sustente que “a grande ilusão” do debate público brasileiro, no sentido freudiano da palavra, o grande desejo que o atravessa, é o de pertencimento a uma identidade política. “Em tempos de capitalismo ultracompetitivo e individualismo exacerbado”, escreve, “fazer a experiência de uma comunidade, qualquer que seja, não significa pouco”. A tarefa pela frente, portanto, sustenta Bosco, seria “identificar a lógica de grupo, descrever seus mecanismos de recompensas narcísicas e denunciar o risco permanente de esses circuitos de prazer autorreferenciais sacrificarem a busca pela verdade seus benefícios mais amplos em nome da manutenção do prazer imaginário da confirmação de si mesmo”.

De certa forma, os dois diagnósticos se encontram, o de Nunes e o de Bosco, à medida que sugerem que há por traz da polarização uma alienação ao discurso do outro, causada pelo desamparo econômico e psíquico do nosso tempo. Bosco aponta a necessidade fundamental de pertencer como engenho da polarização. Nunes sugere que a ilusão de radicalismo oferecida pelo fascismo é o motor do engajamento no embate. Ambos os autores apontam para o campo – de enorme importância, mas pouco explorado pela psicanálise - da ideologia. Como ela se constrói? Em que se apoia no psiquismo dos sujeitos? Como se enlaça com a pressão permanente das pulsões?

A mim parece que responder a essas perguntas sobre a construção psíquica da ideologia é a tarefa mais urgente que a psicanálise social tem no Brasil e no mundo.

Estamos divididos e perplexos em 2023, mas sabemos agora, como Freud não sabia na década de 30 do século XX, a que extremos o fascismo pode chegar, e que a sua capacidade de destruição e morte é ilimitada. Se por trás do fascismo existe perversão, como eu acredito, ou se trata de ilusão e alienação, como creem Nunes e Bosco, não importa. É preciso mergulhar urgentemente no fenômeno, com os instrumentos clínicos e teóricos que a psicanálise oferece, em busca de compreensão e saídas.

Ao final da apresentação de seu livro, falando sobre a irracionalidade humana e sua luta desigual conta o pensamento, Bosco cita Freud de uma forma tão bonita, e tão inspiradora, que talvez seja útil reproduzi-la: “’O intelecto humano é impotente contra a vida pulsional”, reconhece Freud. Que, entretanto, ressalva: “A voz do intelecto é baixa, mas ela não descansa enquanto não receber atenção”’. Bem, sejamos parte dessa voz que sussurra, mas não cala.

Ivan Haro Martins é psicanalista, autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro” e integrante do grupo de Psicanálise e Contemporaneidade do Departamento de Psicanálise do Sedes.

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