Um testemunho sobre nós mulheres
Nossa colega Cida
Aidar, professora do Curso de Psicanálise, compartilha conosco algumas
memórias sobre sua participação no jornal Nós Mulheres e sobre a importância
que o feminismo teve para seu encontro com a psicanálise, brindando-nos
inclusive com link para acesso a edições do jornal. O discurso pode até parecer
datado, mas infelizmente o é menos do que gostaríamos ainda aqui, em nossa
sociedade. Leitura imperdível!
UM
TESTEMUNHO SOBRE NÓS
MULHERES
“O jornal Nós Mulheres foi publicado pela
Associação de Mulheres no período de 1976 a 1978. Esse tabloide artesanal era
instrumento de divulgação de assuntos não veiculados na imprensa oficial,
expressando o pensamento feminista e político de uma época. Vigorando em um
contexto político marcado pela censura, o jornal viu-se obrigado a inovar em
termos de linguagem e abordagem. Hoje, o Nós Mulheres é importante fonte
histórica sobre o feminismo e suas questões”
Sou testemunha dessa história, participei do Nós
Mulheres desde sua fundação até o último número e esse relato é um pequeno
recorte pessoal do que foram esses tempos, do que foi a militância feminista
naquele momento. Contar minha história como forma de recuperar a memória de um
tempo.
Foi através do feminismo que me engajei na luta
política na década de 1970. Luta pelos direitos iguais para as mulheres e
ferrenha luta contra a ditadura. Como era universitária, militei um pouco na
política estudantil, mas foi na luta das mulheres feministas em que realmente
me engajei.
“Desde que nascemos, Nós Mulheres ouvimos em casa,
na escola, no trabalho, na rua em todos os lugares, que nossa função na vida é
casar e ter filhos. Que Nós Mulheres não precisamos estudar, nem trabalhar,
pois isso é coisa pra homem.
(…)
Queremos mudar essa situação.
(…)
Nós Mulheres decidimos fazer este jornal feminista
para que possamos ter um espaço nosso (…) um instrumento de conscientização e
luta”. (Trechos do editorial do número 1 do jornal de junho de 1976. Link na
nota do fim do texto).
Ainda que o discurso pareça datado, essa é a
situação de muitas mulheres pelo mundo e por mais que vivamos subjetividades
diversas nosso funcionamento psíquico/afetivo ainda está imerso em um caldo
cultural e social patriarcal, machista, fálico, racista, transfóbico. É muito
bom saber que o jornal se tornou uma fonte importante de pesquisa sobre a
história do feminismo no Brasil, mas vários dos temas que reportamos,
refletimos, militamos sobre, continuam atuais, bem atuais. Portanto, seguimos
lutando.
O Nós Mulheres surgiu em plena ditadura civil-militar,
em um momento em que alguma brisa de abertura começava a soprar, alguns
exilados voltavam ao país, inclusive uma boa parte das mulheres que compunham
nossa redação, nosso coletivo. Foi justamente uma prima recém chegada do exílio
quem me convidou para a luta feminista.
Primeiro, num “grupão” formado por mulheres de
diferentes origens, inclusive do PCB (Partido Comunista Brasileiro), totalmente
clandestino na época. Esse grupo seguiu, mas várias participantes
pulverizaram-se ou multiplicaram-se em outras formações. Foi daí que partimos
para fundar o Nós Mulheres em 1976.
Hoje temos que falar em feminismos e sua história
está bem relatada.[1]
O movimento ganhou força, se diversificou, se multiplicou, se fortaleceu com o
feminismo negro (fundamental!), com a luta trans, com a militância de nossos
povos originários, com forte participação das mulheres, como a de nossa ministra
Sonia Guajajara. Certamente respiramos melhor agora, mas as estatísticas
brasileiras de violência contra as mulheres são estarrecedoras. Seguimos
lutando!
Algumas questões vão se desdobrando, como a reivindicação
feita pelo movimento trans. Aqui podemos aceitar o desafio e quem sabe
desenvolver a pergunta de Freud “afinal, o que quer uma mulher?” para “afinal,
quem é mulher?”. Muito a refletir,
discutir, digerir, fazer avançar o movimento de libertação das opressões onde
quer que existam. Nesse sentido, sou Queer
desde criancinha…
Agradeço às amigas da equipe do blog, que me
instigaram a escrever sobre minha participação no Nós Mulheres, sugerindo o
tema a partir de uma foto da equipe do jornal que circulou nas redes no dia 8/03/2023.
Assim, comecei a buscar na memória as lembranças dessa história, desse período
de minha vida. Embora vivêssemos as brisas da abertura política, ainda
estávamos em plena ditadura com todo seu aparato terrorista de Estado em
funcionamento; quem viveu sabe que eram tempos de alta tensão. Mas, ao mesmo
tempo, de mudança, de produção e, em minha história pessoal, de abertura para a
psicanálise.
Foi dessa base que parti, que entrei na psicanálise
pelo caminho do feminino. O primeiro livro que li foi Maternidade e sexo,
de Marie Langer, pelas questões que o movimento de mulheres suscitou em mim,
pelas dúvidas, pelo desejo de mudança. Tive minha filha mais velha, comecei
minha formação de analista, fui me analisar.
Minhas lembranças do Nós Mulheres são impressões,
sentimentos, referências aos laços que nos uniam – políticos, ideológicos e
fortemente afetivos – muitos afetos envolvidos. Colegas, amigas, primas, éramos
um coletivo que compartilhava a luta contra a ditadura através da luta
feminista que não poderia ficar para uma segunda etapa, “depois da revolução”,
como queria boa parte da esquerda da época. Nunca nos rendemos a isso e nos
denominamos feministas desde sempre.
Nossa primeira redação foi no porão de uma casa em Pinheiros,
onde funcionava o jornal Versus, também da imprensa independente de combate e
resistência à ditadura, formado praticamente por homens, companheiros que nos
receberam e nos acolheram calorosamente. Formamos uma boa comunidade. Do porão
do Versus fomos para uma sala em um predinho da rua Fidalga, onde ficamos até o
fim das publicações. O Nós Mulheres terminou quando o grupo se dividiu em duas
correntes de intervenção política. Resumindo a história, um grupo seguiu
trabalhando no sentido da outra mulher, a operária, por exemplo. O outro,
voltou-se para pensar as mulheres que formavam o movimento, ou seja, pensarmos
em nós mesmas. E Piera Aulagnier veio em nosso auxílio, quando lemos e
discutimos seu texto “Considerações sobre a feminilidade e suas
transformações”, fundamental para mim, que fez elo entre minha prática
feminista e minha formação de analista.
Olhando os diferentes números do Nós Mulheres é
claro e incrível como tantos temas que abordamos permanecem atuais, como o
racismo – o jornal deu voz às mulheres negras –, o preconceito contra os
homossexuais, a luta dos povos indígenas pela terra. Recomendo a leitura do
editorial do último número, em que essas questões estão presentes. E claro, a
luta contra toda e qualquer opressão às mulheres, que segue forte, com as
diferentes formas e matizes que assumiu.
Penso que minha experiência nessa história pode ser ilustrada
por uma analogia. Há tempos vi uma entrevista de um mestre de dança hindu que dizia
que a dança tem que entrar pelo plexo, na altura da boca do estômago (ele
apontava para a região) e só então subia para a cabeça, ou o cérebro.
Minhas lembranças são assim, eu era muito jovem e
foi uma experimentação que deixou marcas em meu corpo, nos sentidos: cheiros,
impressões na retina, sons-sensações e a lembrança de passagens e pessoas
inesquecíveis.
Depois do fim do jornal, segui um tempo engajada no
feminismo, e imersa no universo do cinema, fiz dois filmes. Já fazia faculdade
de Psicologia e História (que não cheguei a concluir) e hoje sei que foi
através do meu envolvimento com o feminismo e com o cinema que cheguei na psicanálise.
Sem dúvida minha prática feminista e as questões que
me mobilizaram sobre o feminino foram o primeiro fio condutor para começar
minha formação de analista e me analisar. Olhando para meu percurso, para o início
de minha formação é evidente a importância desses grupos feministas na mulher
que sou, nas escolhas que fiz fora de meu consultório, mas também (e tão
importante quanto!) dentro dele, na minha conduta e caminhos como psicanalista.
Seguem aqui alguns links para os artigos e materiais
aos quais me refiro e/ou que são importante fonte de pesquisa para quem estuda
o feminismo:
https://www.ifch.unicamp.br/publicacoes/e-book/198/TRAJET%C3%93RIAS%209/213/TRAJET%C3%93RIAS%209 Autoria de Maria Lygia Quartim de Morais, socióloga e economista, a prima a quem me referi.
https://www.fcc.org.br/fcc/mulherio-home/ O Mulherio foi um jornal editado por um grupo de mulheres que haviam participado do Nós Mulheres em parceria com a Fundação Carlos Chagas.
https://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/nosmulheres/
Cida Aidar - Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professora e supervisora do Curso de Psicanálise, integrante do Conselho Editorial da revista Percurso.
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