Um rubi no centro da tela
Soraia
Bento escreve um lindo texto sobre o lançamento de
mais um episódio da websérie Psicanalistas que falam, que aconteceu
no dia 16 de abril no Cine Bijou. Nele, a entrevistada da vez, Miriam
Chnaiderman, faz um relato emocionante de sua história que se entrelaça com o
nascimento do primeiro curso de Psicanálise fundado no Sedes Sapientiae de
Madre Cristina. Leitura obrigatória!!!
UM RUBI NO CENTRO DA
TELA
Soraia Bento
Um domingo de sol
reuniu amigos na Praça Roosevelt para prestigiar o lançamento de mais um
episódio da websérie Psicanalistas que
falam, no icônico Cine Bijou. Esse inédito projeto documental foi
idealizado e vem sendo realizado por Heidi Tabacof, estando em sua décima
edição. A originalidade está em usar o
dispositivo analítico da associação livre para ouvir o que o psicanalista da
vez tem a dizer sobre si e seu ofício.
Em tempos de uma
certa banalização do saber sobre a Psicanálise espalhada pelas redes, essa
curadoria propõe a escuta de personagens importantes da história do movimento
psicanalítico no Brasil, de forma a ressaltar o compromisso com a prática de
uma psicanálise no campo social. Como
não poderia deixar de ser, suas histórias como psicanalistas entrelaçam-se com
suas vidas, suas posições políticas/teóricas/éticas e estéticas. Convido à
leitura da abertura no site www.psisquefalam.com onde esse argumento que sustenta “a tela em branco”
está muito bem descrito através das palavras da Heidi.
Heidi tem uma
participação, quase todo o tempo, em off,
como é comum nos documentários, entretanto, sobressaem gestos e expressões que
nos lembram a sua marcante presença na cena, exatamente como um psicanalista na
sessão.
Um belo
enquadramento mostra uma mulher emoldurada em um ambiente familiar, colorida
por uma paleta de cores suaves que se espraia a partir do tom da pele e dos
cabelos da protagonista.
Nosso olhar
vagueia de um ponto a outro, confortavelmente, sem pressa, acompanhando o tom
de voz suave. Meu olhar é capturado pela
palavra rubi, escrita em azul no
vestido multicolorido e vistoso daquela que se apresenta: ruiva, sardenta, de
cabelo crespo e judia. Essa maneira de se descrever lembrou certa passagem na autobiografia
de Freud, onde nos conta que se familiarizou com o destino de ser/estar na
Oposição desde seu nascimento, desenvolvendo a propensão e capacidade de
sustentação desse lugar por ser judeu. Ateu. Proveniente de família modesta.
Além de Freud trabalhar com o que havia de mais inquietante para o moralismo da
época, a sexualidade, avançou no questionamento do lugar de saber do médico, acerca
do sofrimento de seus pacientes e mais, pôs de cabeça para baixo a tradição
filosófica do século XIX, desferindo um grande golpe narcísico em quem tanto
apostou no Eu da razão. Essa digressão é
porque é sempre bom lembrar o que está na origem da Psicanálise. E o que nos
inspira.
Voltando ao episódio,
essa mulher que tem o vermelho no sangue, na origem e no comunismo dos pais é Miriam Chnaiderman. O rubi é a pedra
que escolheria para adorná-la, sem dúvida. De batom e unha vermelha, parodiando
o seu imprescindível filme (De gravata e unha vermelha, 2015).
Em aproximadamente
uma hora e meia de um fluxo associativo cheio de emoção e personalidade,
assistimos à uma historização de um movimento agremiado por sua mãe, Regina
Chnaiderman, ao lado de tantos outros nomes importantes do cenário intelectual paulista.
Esse movimento seguiu
guiado por múltiplos interesses e posteriormente, levou à formação do Curso de
Psicanálise. Quase 10 anos depois, à formação do Departamento de Psicanálise.
Ao ouvir o relato
de uma história de vida que se entremeia à dessa construção de um certo modo de
pensar e ser psicanalista inventado por esse grupo, naquele tempo, reconheço a
herança da criativa coletivização, da hospitalidade de uma mesa farta, e de uma
voraz vontade de experimentação. Essa é a forma tocante com que ela descreve a
mãe e eu, re-descrevo-a também assim. Juntas somos parte de um coletivo que
nasceu dessa vontade de perambular pela cidade, (“Escutando a cidade”) buscando
encontros com quem a habita nos seus infinitos modos de viver. Nesse grupo
vivemos uma pitada dessa engrenagem autogerida, desinstitucionalizada, que traz
muita liberdade, mas que corre o risco de dispersão, não por desinvestimento na
tarefa, mas por falta, justamente da obrigatoriedade, porque o tempo corrido
desses dias nos ocupa mais do que deveríamos, deixando soltos nossos sonhos...
Miriam é
psicanalista, cineasta, mestre em Comunicação e semiótica pela PUC, doutora em
Artes pela ECA-USP, ensaísta que versa sobre teatro, literatura, cinema e
psicanálise.
Nesse depoimento,
conta como a inquietação frente ao estabelecido possibilita a invenção de novos
lugares que podem preservar o rigor teórico na formação e a necessária
desconstrução do que envelheceu. As
fundantes estruturas de poder da IPA precisavam ser questionadas,
principalmente, em terras Pindorama.
O nascimento do
Curso de Psicanálise, em um país vivendo as opressões das ditaduras nossas e
dos nossos hermanos, haveria de
acontecer no acolhimento daqueles que acreditavam na democracia, portanto, na
liberdade das escolhas.
Expressa sua
sensação de perda dessa potência inventiva do grupo quando a formação passaria
por uma institucionalização: dos inúmeros grupos de estudos, onde todos
circulavam a seu bel prazer, ao enquadramento no tempo de seminários e
supervisões e territorializados no Instituto Sedes Sapientiae. Não há mau juízo
no termo enquadramento quando estamos no campo da Psicanálise. Não vejo
contradição nesse ponto com a história de Miriam, se pensarmos que não só segue
sendo participante desse núcleo de formação, como ainda é membro bastante atuante
nas discussões sobre os rumos do Departamento. Vejo antes, como caminho natural daquele modo
de circular que desafiava o status quo e
temia processos que burocratizassem a formação. Seria necessário construir um
curso de psicanálise, em um Instituto com vocação religiosa no comando, em um
país sob regime militar. Que maravilha que esse grupo pôde construir com tantas
armaduras presentes! Parte dessa possibilidade deveu-se a bravura e ao espírito
de justiça da madre Cristina. Quem nunca ouviu histórias sobre a sua pequena
estatura física impedindo militares de entrar no instituto?!
A chegada em 1976 dos
“argentinos” afugentados de seu país natal pelas atrocidades da ditadura, paradoxalmente
aparece no filme como um momento solar e profundamente amoroso. Os casais, seus
bebês, os churrascos, as aulas de samba.... nessa temperatura cotidiana gestava-se
uma família. Para os Chnaiderman havia um efeito reparatório, uma vez que,
acolhendo os exilados, eles sonhavam o acolhimento do filho Carlos, em exílio
no Chile. Como não poderia deixar de ser, Ana Sigal, Mario e Lucia Fuks e um
tempinho depois, Silvia Alonso são integrados como professores no curso. Nos
anos 1985, Cristina Ocariz junta-se também ao grupo de professores.
Os episódios das
cisões que levaram à formação de dois cursos e no segundo momento, a um êxodo
de professores, são descritos de forma muito pessoal, nos dando sua versão das
entranhas dos conflitos dentro dos conflitos. A primeira cisão tem como marca
duas linhas teóricas: nós freudianos, o outro grupo “Formação em Psicanálise”
mais apoiado na escola inglesa. A posição teórica não é desimportante, de certa
forma, determina posições perante o entendimento do sujeito da Psicanálise. O
grupo remanescente queria garantir uma abertura teórica para abarcar o diverso,
o contraditório e novos autores seguiam sendo estudados questionando posições
mais fechadas da Psicanálise. Como já dito, as diferenças teóricas expunham
concepções clínicas e de fundamentos do psiquismo.
Miriam fala da
segunda cisão relativa a reconhecimento e aos complexos processos de
contratação de professores que nos inquietam até os dias de hoje. Miriam
posiciona-se como uma espécie de pivô da questão, naquele momento, entre muitos
outros pontos de discordância. O grupo se desfaz causando muita dor. A
sequência dos acontecimentos sugere que “se os filhos precisaram matar o pai da
horda”, o afastamento de pessoas tão próximas tornou-se quase intolerável.
Hoje, questiona essa interpretação mais óbvia e, gentilmente, parece entender
de outra perspectiva, que essa dispersão possibilitou a busca de sonhos desses
“outros”. Não se trataria de assassinato do pai, mas sim, uma busca de um lugar
que não encontravam mais entre si.
A memória fica
vacilante nos temas familiares. A doença e morte da mãe são momentos no filme
de extrema emoção. Parece que ouço a voz de uma jovem Miriam lamentando a perda
da mãe que também foi mestre e figura central em um dos grandes projetos da
vida de Miriam, atualizada no presente. A memória fica vacilante nos temas
familiares. A grande Regina, transgressora e teimosa deixava-se sucumbir pela
doença. A filha ficou a seu lado, acompanhando-a. No cenário, uma escultura de
mulher amamentando seu bebê pereniza tudo isso.
A nós, filiados a
esse Departamento, assistir a esse episódio é fundamental para entendermos de
onde viemos, o que nos constitui e para onde queremos ir. O legado que
recebemos desses fundadores nos convoca a não deixarmos de lado toda a força da
contestação que a genética da psicanálise porta. O ruído dos conflitos não
cessa nunca e por isso nos obriga a manter em trabalho tamanha herança.
Miriam termina a
filmagem perguntando se faltou falar alguma coisa. Pergunta quase ingênua,
porque sempre falta e faltará ainda que tivéssemos tempo para outras tantas
temporadas. Assim nos vejo hoje, trabalhando com velhas e novas questões,
incessantemente. Assim caminhamos.
Soraia Bento
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professora do curso de Psicanálise
e autora de ensaios e artigos - soraiabento@icloud.com
Para assistir ao episódio: canal YouTube - Psicanalistas que falam, episódio Miriam Chnaiderman
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