Éticodivergentes

A partir da frase de Elon Musk de que “a fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia”, Ivan Martins discorre sobre o que ele chama de eticodivergentes, que estariam na contramão das leis e atitudes sociais que tentam proteger os mais vulneráveis e incluir aqueles historicamente excluídos e cujos afetos morais como senso de justiça, empatia e solidariedade estariam dispensados.

 

ÉTICODIVERGENTES

Se alguém me perguntasse sobre o sentimento que mais falta ao mundo, eu diria, sem hesitar, que é a solidariedade - a capacidade humana de vincular-se ativamente ao outro, abraçando seus sentimentos e necessidades, agindo como amigo e aliado.

Os homens e mulheres do século XXI vivem o contrário disso. Estão sozinhos, ameaçados e desamparados, com a cara enfiada no celular. Fora dos eventos e das redes sociais, boa parte das pessoas é triste; sentem-se aflitas e isoladas. Elas não contam com ninguém e ninguém realmente conta com elas. A distopia final do capitalismo - o cada um por si absoluto e irremediável - vai se instalando entre nós. Em nós.

Outro dia, em uma entrevista que ficou instantaneamente famosa, o bilionário sul-africano Elon Musk disse que “a fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia”. A empatia é prima da solidariedade e de certa forma a antecede, em importância e em alcance. Enquanto a solidariedade costuma se dirigir aos que são próximos e de alguma forma semelhantes, a empatia, na sua melhor versão, volta-se ao dissemelhante, frequentemente ao oprimido. Ela produziu modernamente leis e atitudes sociais que tentam proteger os mais vulneráveis e incluir os que foram historicamente excluídos. Mas Musk, o homem mais rico e mais insensível do mundo, acha que a empatia é só uma fraqueza prejudicial ao bom andamento dos negócios. No mundo ideal dele, só os brutos, os espertos e os bem-nascidos têm direito a sobreviver com dignidade.

Ontem, fazendo a feira de domingo, perguntei por que o brócolis estava tão caro, e o feirante “me explicou” que faltava gente no campo para plantar. Ofereciam-se 300 reais por dia, mas não havia quem aceitasse, ele garantiu. Antes que eu pudesse questionar a lógica e a matemática dessa “explicação”, um senhor ao meu lado começou a vociferar que “por causa do Bolsa Família” ninguém mais quer trabalhar.

Poupo vocês do bate-boca que se seguiu, mas o exemplo mostra como Musk tem emuladores no Brasil: não interessa que milhões passassem fome antes do Bolsa Família, inclusive crianças; o que importa é que, agora, supostamente, “ninguém mais quer trabalhar”, porque recebe 660 reais mensais que o Bolsa Família paga a 54 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza...

O que aconteceu conosco?

Há um monte de explicações econômicas e sociológicas para o fanatismo de extrema direita que cresce em todo mundo, mas eu queria focar em algo que tenho observado como pessoa e como analista: parece haver um enfraquecimento geral daquela parte da personalidade que julga e influencia o comportamento humano a partir de afetos morais como senso de justiça, empatia e solidariedade.

Freud dizia que a parte do psiquismo responsável pela autocrítica e pela ética, que ele chamava de supereu, se desenvolve na tenra infância, no confronto entre os desejos (predominantemente sexuais) da criança e as regras familiares que lhe dizem “não”. Em algum momento a criança entende que não pode tudo e é forçada a substituir suas vontades sem limites por regras e valores da família e da sociedade ao seu redor. Ela internaliza na marra as restrições e repressões da cultura em que vive e assim encontra um lugar viável para si e para os seus desejos.

Minha impressão é que a operação psíquica que resulta na criação do supereu e na imposição social da ética (e da culpa) está falhando em larga escala.

Talvez já não se pratique no interior das famílias as restrições que produziam a internalização dos limites e dos valores, aquilo que Freud chamava de castração. Em nosso mundo, as figuras de pai e mãe vão perdendo poder, substituídas pelos tutores digitais da infância – os algoritmos permissivos e viciantes que controlam telefones celulares, tablets e computadores. Para o algoritmo não existe a palavra não.

Talvez a cultura radicalmente egoísta do capitalismo tardio, somada ao colapso da autoridade familiar que vem de décadas, tenha produzido várias gerações de pais e mães sem limites que acreditam, eles mesmos, que podem tudo e têm direito a tudo - e que transmitem a seus filhos essa crença licenciosa e daninha.

Qualquer que seja a causa, a instância psíquica que rege as virtudes morais vai sendo posta de lado em favor de algo mais prático e rudimentar – um supereu apenas operacional, funcional, que age essencialmente para controlar tarefas e agendas, frequentemente de forma obsessiva.

Esse psiquismo utilitário produz gente eficaz para o capitalismo, mas indiferente às escolhas éticas e filosóficas que deveriam dar sentido à vida. A culpa, fenômeno autorreflexivo, dá lugar à vergonha, fenômeno social: não importa o que eu faça ou diga em privado; desde que eu não seja exposto, denunciado, cancelado está tudo bem. A preservação da imagem pública é o que importa.

Os seres humanos que resultam desse colapso de valores são éticodivergentes.

Assim como os neurodivergentes, termo da moda, eles têm um funcionamento peculiar, que diverge da maioria. Mas seu desvio não é cognitivo ou sensorial, ele é moral. Pessoas eticamente divergentes resistem à empatia e a solidariedade, mas não só. Elas funcionam de forma autocentrada. Tomam seus desejos e interesses a cada momento como absolutos e justificáveis por si mesmos. Sentem, profundamente, que a realização das suas aspirações e impulsos justifica qualquer coisa. Há uma dimensão política disso – presente em Elon Musk, Bolsonaro e Trump, descaradamente - e há uma dimensão pessoal, íntima.

O divergente ético é o herói de si mesmo. Frente a ele, o outro da intimidade não tem espaço ou influência. Ele serve enquanto devolver ao divergente uma imagem excepcional de si mesmo. Se o espelho falhar, quando falhar (é só uma questão de tempo...) o outro perderá a utilidade afetiva e se transformará em pouco mais que um empecilho.

Enfim, há várias ideias neste texto e nem todas estão devidamente amarradas, mas acho que o essencial está dito: a sociedade vai lentamente sucumbindo à ausência de solidariedade porque os sentimentos morais que costumavam ser transmitidos pela família e pela cultura vão dando espaço a pulsões controladas por supereus precários que eu chamo de supereus operacionais. Os sujeitos éticodivergentes que emergem dessa situação são eficientes para o trabalho obsessivo do capitalismo, mas frouxos do ponto de vista ético e relacional. Como heróis de si mesmos, têm pouco tempo e nenhuma abertura para qualquer coisa – ou qualquer pessoa – que não contribua para o seu frágil amor-próprio. Na tipologia psicanalítica os éticodivergentes situam-se próximos aos perversos, com quem compartilham atitudes sociais e traços de sexualidade.

Ivan Martins é psicanalista e participa como externo do grupo de estudos Psicanálise e Contemporaneidade, de Departamento de Psicanálise do Sedes.



Comentários

  1. É de praxe que os “neurodivergentes”, como Elon Musk, produzam comentários como o citado. Esses dias escutei de um adolescente. “Na minha cabeça consigo ter bastante raiva, mas quando me aproximo das pessoas surge um sentimento que (ele não nomeou assim), que pode ser entendido como empatia. É possível que como Elon Musk, estejamos muito distantes um dos outros .

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