Psicanálise na China – uma história sem fronteiras

Em uma parceria entre o Instituto Sedes Sapientiae e o EBEP-SP (Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos), realizou-se no dia 13 de novembro de 2015, no Sedes, o evento Psicanálise na China. O Blog do Departamento convidou uma das organizadoras, Maria Laurinda R. Souza para contar um pouco sobre o evento.


Foi em uma conversa informal com Joel Birman, ao relatar sua experiência como supervisor em atendimento psicanalítico em um grande hospital psiquiátrico na China, que surgiu a ideia da realização deste evento. Na ocasião ele também mencionou a existência do documentário “Édipo na China”, produzido em 2008 por Baudouin  Koenigem, em que é narrada a recepção da psicanálise na sociedade chinesa após a Revolução Cultural. Membro fundador do EBEP- Rio de Janeiro, Birman não só aceitou o convite para uma palestra sobre o assunto e a exibição do documentário como propôs a parceria com o EBEP- SP representados na organização deste evento por Gustavo Henrique Dionísio e Marta Okamoto.  


Por que uma psicanálise sem fronteiras?
Primeiro porque a expansão da Psicanálise para uma cultura tão diferente do seu berço de origem reativa a potência das descobertas de Freud como um saber que rompe fronteiras e questiona os discursos de verdade pré-existentes. Além disso, pensar uma psicanálise sem fronteiras desperta curiosidade ao mesmo tempo em que nos inquieta tanto pelo questionamento do significado de nossas práticas, quanto pelos riscos de “colonização” sempre presentes na história do movimento psicanalítico e nos sectarismos das escolas que o constituem.

O título também nos fez pensar em um evento aberto a toda a comunidade Sedes com seus departamentos diversos, e na possibilidade de troca com outros espaços de difusão da Psicanálise – daí a parceria com o EBEP.  A ideia central, portanto, seria colocar em cena experiências que questionam a existência de fronteiras.

Na abertura do evento, a afirmação de Freud (1925) publicada em sua autobiografia de que “esta ciência não é, em geral, capaz de resolver certos problemas sozinha, mas parece destinada a oferecer contribuições importantíssimas aos mais diversos campos de saber. (…)  pois, voltando um olhar retrospectivo sobre a obra de minha vida, posso dizer que fui o iniciador de muitas coisas e o instigador de muitas outras, das quais disporá o futuro. Não posso, porém, predizer se será muito ou pouco”, embora preditiva, não o isentaria de espantar-se ao saber que passados quase100 anos, Joel Birman, esse analista itinerante, estaria levando a Psicanálise para a China! E que sua disseminação continuaria a produzir curiosidade e interesse.

Na apresentação do documentário, Birman lembrou que o objetivo central seria mostrar as formas pelas quais se deu o desdobramento do movimento psicanalítico em relação a novos territórios e quais questões este fato nos coloca, já que a Psicanálise, até então, uma prática ocidentalizada, adentra nos terrenos do Oriente. Na China este movimento se inicia a partir dos anos 90, com a entrada de psicanalistas alemães filiados a IPA, e no início do século XXI, com um grupo de analistas franceses e, juntamente com eles, Joel Birman.

Tudo começou com o professor de filosofia Huo Datong, conhecido hoje em seu país como o “Freud chinês”, que ao ler Freud, passou a se interessar pela psicanálise, tendo ido à Paris para fazer sua formação e análise. De volta à China, torna-se um mestre nesse ofício – tanto no sentido da transmissão quanto na prática clínica. Claro que isso só foi possível graças às mudanças politicas e econômicas e o processo de modernização social que se instalou na China nos últimos 70 anos, que transformou um país de camponeses em uma potencia capitalista avançada com todas as perturbações subjetivas que isso acarreta. Essas considerações levaram Joel à afirmação de uma tese básica: a de que a Psicanálise surge a partir dos processos de modernização que aconteceram nas sociedades ocidentais, o que estaria se repetindo na China e em outros países da Europa Oriental.

Mas seria possível o crescimento da Psicanálise em sociedades não democráticas, tese refutada por Roudinesco? Questão debatida no evento, praticar a psicanálise em sistemas não democráticos afetaria os processos de transferência? O analista tonar-se-ia portador de um acolhimento benevolente, ou, a imago do fantasma autoritário vigente no regime politico?

Nas discussões clínicas apresentadas no documentário trazidas para os cursos ou grupos de supervisão, duas questões importantes da cultura chinesa se impõem: as consequências psíquicas tanto da lei do filho único quanto do tempo de duração do desmame. Questões implicadas no processo de modernização deste país, que rompeu com as referências da duração do tempo e exigiu mais mão de obra, quebrou as leis da tradição e instaurou as incertezas, abrindo espaço para as queixas frequentes de ansiedade, depressão e questões ligadas à sexualidade. Parece haver um pedido insistente para uma reafirmação de normas.

O autismo também aparece como uma nova questão, praticamente com a mesma incidência epidemiológica do Ocidente (8% da população), mas que em números relativos, ganha uma repercussão muito mais significativa.

Para finalizar Birman fez uma aproximação entre as consequências da inserção da Psicanálise na cultura japonesa com a forte ligação primária com a mãe – o reino do maternal - com a indistinção eu-objeto, e o que vem ocorrendo na China, evidenciando os efeitos das marcas tradicionais budistas nas duas culturas.

No debate finalas questões trazidas pela plateia apontavam também a preocupação com o risco de colonização, com o predomínio de uma visão única da Psicanálise (lacaniana) e com as consequências da falta de democracia no regime chinês.

Texto escrito por M. Laurinda R. Souza (colaboração de Gustavo Henrique Dionísio)

A gravação este evento está disponível na secretaria para aqueles que tiverem interesse em assisti-lo. Uma cópia legendada do documentário (legendas feitas por Marta Okamoto – membro do EBEP-SP ) deverá ser disponibilizada pelo EBEP. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gaza como Metáfora

Destraumatizar: pela paz, contra o terror

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon