Lançamento do livro “Ditadura Civil-Militar no Brasil - o que a psicanálise tem a dizer”

No dia 20 de agosto ocorreu o lançamento do livro “Ditadura Civil-Militar no Brasil - o que a psicanálise tem a dizer”, organizado Dodora e Flávio Ferraz (São Paulo: Sedes Sapientiae/Editora Escuta, 2016). No evento organizado pelo Departamento de Psicanálise/Instituto Sedes Sapientiae houve um debate sobre o tema do livro com a participação de alguns de seus autores. O Blog, dando continuidade à série “Conversa sobre Psicanálise e Política”, convidou uma das debatedoras para compartilhar conosco um pouco deste debate. Confiram a seguir um recorte do texto apresentado por Marlucia Melo Meireles na ocasião.


Nossos pacientes são os mesmos de antigamente?

Em diversos lugares do mundo contemporâneo, sofremos com a ruptura da frágil coesão que garante a integração na malha social. Há um ódio consentido, gerador de modalidades de conduta particulares, explicitamente fomentado por uma paixão brutal pela destruição do outro.

No Brasil vivemos, no atual momento, também uma grave crise em nossa recente democracia. Democracia oriunda da luta política empreendida durante todos os 21 anos da ditadura civil-militar. Surpreendentemente, caminhamos na direção contrária de nossas conquistas e esperanças. Um grupo de usurpadores, apoiado por vários segmentos da sociedade civil, vale-se de pretenso e perverso fundamento jurídico para legitimar a violência contra nossas instituições, levando ao retrocesso democrático.

Diante de nossos olhos, a apropriação do verde-amarelo encobre, novamente, o conservadorismo e sua incapacidade histórica de assumir a alteridade, a diversidade e a inclusão. Os novéis autodeclarados patriotas desaguam seu ódio, cativando, fascinando, seduzindo e submetendo parte da sociedade a este discurso retrógrado. Estamos vivendo um período de muita insensatez, com poucas perspectivas a curto prazo.

Não há como esquecer, do ponto de vista político-ideológico, as atitudes de ausência e ambiguidades, nos anos da ditadura, de dirigentes e de muitos membros das Sociedades Psicanalíticas ligadas à IPA – que na época representavam uma hegemonia entre nós –, disfarçando tácito apoio ao regime autoritário[1]. Atualmente, é insustentável a suspensão de juízo, pelos psicanalistas, sobre o que ultrapassa os limites dos consultórios. O contexto social no qual o paciente está inserido não deve ser ignorado.

O processo antidemocrático atual – que está apenas começando – será longo, demorado, sem qualquer prenúncio de saídas simbólicas criativas. Já vimos este filme antes. É a banalização da nossa história recente de lutas, é um brincar com nossa indignação.

Durante a ditadura civil-militar, as Forças Armadas assumiram explicitamente o papel repressor e o exercício da mordaça.

Hoje, esse papel está diluído e não é explicitamente assumido. Aqui e ali, novos atores se outorgam o direito de proibir a palavra de qualquer um, ungindo-se de falsa superioridade e, arrogantemente, exercem sua brutalidade, sua violência, disseminando ameaças de toda ordem, exigindo submissão.

De um lado, vitoriosos eufóricos, exultantes, ambiciosos e desafiadores nos solicitam escuta para seus dramas existenciais. De outro, a apatia, a tristeza da derrota, os descréditos no embate, na vivência das contradições, as dúvidas e constrangimentos sofridos, retomam também o caminho dos consultórios.

Buscam guarida e acolhimento tanto para dúvidas oceânicas quanto para certezas cristalinas, para ideias embaralhadas ou pensamentos estereotipados, eufóricas alegrias ou tristezas extenuantes. Ambos, na esperança de resgate do direito de livre expressão para o escoamento tanto do mal-estar sentido, quanto da suposta vitória conquistada.

O espaço clínico, seja em consultórios ou instituições, é testemunho de uma inadequação entre a representação que herdamos do paciente dito “tradicional” e estes pacientes “rebeldes” que hoje atendemos na prática do ofício de psicanalistas. Podemos, portanto, dizer que não há mais pacientes como os de antigamente[2].

 Se sustentarmos esta nostálgica posição analítica tradicional, ouso dizer que repetiremos, no interior de nossos atendimentos clínicos, a violência praticada lá fora. Estaremos surdos para os relatos atravessados pelos acontecimentos e transformações históricas em que todos estamos envolvidos, analistas e pacientes. Nossos pacientes têm o direito de bradar, falar, concordar, discordar, comentar, insurgir diante da patologia político-social em que se encontram imersos. A sessão analítica pode ser o espaço, a eles oferecido, para legitimar suas dúvidas, reconstruir valores, descrenças e revoltas.

Mesmo sabendo que há intensidades no traumático impossíveis de serem elaboradas, cabe a nós, psicanalistas, em nossas conversas clínicas ao pé do ouvido, reunirmos as condições de colaborar, a partir de nossa experiência e da especificidade de nosso questionamento, para a introdução do intolerável político em nossa clínica. Trata-se de uma condição necessária, de um lugar possível para o exercício histórico, de expansão de cidadania. Não há como deixar escapar o testemunho de uma época, da dialética de um tempo que evoca, no presente, o tempo pretérito e a condensação de outros tantos.

A pessoa que está diante de nós, inegavelmente, é um sujeito inserido em sua história, inscrito e referido às suas formações inconscientes, transformando e sendo transformado pelos valores histórico-individuais, histórico-políticos e socioculturais do mundo em que, passageiramente, habita.

Marilucia Melo Meireles é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre em psicologia clínica e doutora em psicologia social pelo IPUSP, autora de livros.

[1] Velloso, M., Meireles, M. A Operatividade da Psicanálise Vivida por Enrique José Pichon-Rivière: São Paulo; Velloso Digital, 2ª ed., 2014, p. 45-64.
[2] Meireles, M. Anomia: Ruptura Civilizatória e Sofrimento Psíquico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

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