Conto “Janaína Alves”
O Blog do Departamento inaugura uma nova categoria de publicação com um time de colunistas que passará a postar produções próprias. Nossa colunista Maria Laurinda Ribeiro de Souza, membro do Departamento de Psicanálise publica seu conto “Janaína Alves”. Confiram:
JANAÍNA ALVES
“Quinhentos e dezessete anos levando milhões do berço
ao túmulo sem lhes dar a mínima chance de olhar em volta
e refletir minimamente sobre o que estamos fazendo por aqui”
(Antonio Prata, FSP, 10.6.2017).
Segundo o Atlas da Violência de 2017, um jovem de 21 anos, idade de maior incidência de homicídios, e com menos de 7 anos de estudo tem 16,9 vezes mais chances de ter uma morte violenta do que o que chega ao ensino superior, e 147% maior se for preto ou pardo. As vítimas de suicídio e homicídio em nosso país têm cor, gênero, idade e território definidos.
8.05.2017. Em manchete sobre a explosão de crimes no Rio de Janeiro, a Folha de São Paulo publicou a foto de Janaína Alves, mãe de um adolescente de 15 anos , Jhonata, baleado no morro do Borel. A expressão de dor no rosto dessa mãe e a indignação diante das cenas de violência diariamente cometidas neste país são o mote deste escrito. Efeito de minha solidariedade ao luto dessas mães.
I.
Janaína Alves. Esse seu nome. Perdeu o filho. Morte matada.
Pedi-lhe conversa. Aceitou. Mãos cruzadas sobre as pernas. Bermuda rasgada. Blusa suja, manchas de sangue. Olhar turvo. Falou.
Escreve ai seu moço. O senhor perguntou. Vou contar. Disseram foi bala perdida. Foi não. Foi da polícia mesmo. Aconteceu com outros. Mas não podia ser com ele, com meu menino. Só quinze anos. Só quinze anos, seu moço.
De manhã meu menino levantou cedo. Deu-me beijo rápido. Cabelo molhado. Sinto ainda o rosto molhado do cabelo dele. O senhor vê, seu moço, meu rosto molhado? Não, não é lágrima não. Não choro mais.
Pegou a bicicleta. Primeiro dia na vendinha do seu Zé. Os amigos disseram pra não ir, que era furada. Tinha outros jeitos de ganhar dinheiro, mais fácil.
Tomara ele goste do serviço, pensei. Deixe de rondar perdido com a bicicleta. Vá ele ficar como o filho da Dinaura. Virar aviãozinho de traficante. Deus o livre. Não sabia eu o que ia acontecer.
Naquele dia não prestei atenção devida no meu filho. Queria volta atrás. Ir até o portão. Ver, mais uma vez, ele descendo a ladeira. A lama sujando a roda da bicicleta. Num vejo mais.
Hoje, mesmo, faz já um mês, mas hoje mesmo, hoje mesmo seu moço, desci a escada e fiquei olhando. Vi um menino na bicicleta. Queria tanto fosse ele.
Voltei pra dentro. Arrumei os pratos. Sempre ponho o dele. Sei não. Pode estar por ai, olhando a gente. Meu marido finge não ver. Pensa ser loucura de mãe. Diz que o tempo cura. Será que cura? Quero cura não, quero meu menino.
Passo o dia dentro de casa. Não ligo mais o rádio. Vez em quando olho a janela. Estranho o movimento de fora. Antes não me incomodava. Também gostava do barulho, das conversseiras, dos meninos fazendo guerra, dos cachorros latindo, das motos carregando sacolas e gente. Hoje olho e não ouço nada. É tudo parado, vazio... Fiquei assim, olhar furado feito assum preto.
Roubaram a luz dosoios meu. Meu menino gostava dessa música. Sabia assoviar ela. Era lindo quando ele cantava. Foi meu pai que ensinou pra ele. Meu pai era violeiro. Vivia no sertão. Quando vinha gostava de ensinar música pro meu menino.
Quantos anos eu tenho? Tenho trinta seu moço. Tive ele com quinze. Vida dura, mas fiquei feliz de ter meu menino. O pai dele ficou junto. Trabalhei até ele nascer. Depois a patroa não quis mais. Fiz de tudo. Levava ele junto quando podia. Às vezes as vizinhas tomavam conta dele pra mim. Custei achar vaga na creche. Ele gostava de lá. Lembro dele correndo com os meninos, aprendendo a escrever as letras.
Foi tudo tão rápido seu moço. Ele saiu cedo e foi assim, não vi mais os olhos do meu menino. Foi tiro perdido. Foi não, foi tiro direto, foi tiro pro meu menino. Tiraram ele de mim.
A noite é o pior. Acendo vela pra ele. Dizem que ilumina o caminho. Tenho medo do escuro. A luz é pra mim. No escuro não vejo nada. Penso nele assim, perdido, no escuro. Quero não.
II.
A noite assombrou a casa de Janaína. Os pesadelos com o corpo do filho estendido no chão atormentaram seu sono. Mãe e filho agarrados. Unidos num gesto de dor e denúncia.
O marido levantou-se cedo. Tentou, em vão, retira-la da cama. Encolhida, prostrada, ficou assim... A mão às vezes, tocava o rosto molhado pelo cabelo do filho. Quis encontrar no espelho a umidade do rosto.
Olhou pela janela tentando, mais uma vez ,vê-lo sair com a bicicleta. Um vento forte levantou as folhas do chão. A bicicleta e o filho voaram no ciclone das folhas. Apoiou-se nas paredes. Tirou a blusa manchada de sangue e alisou-a sobre a cama. Permanecera com ela, colada ao corpo, desde o dia do crime. Acariciou-a como se fosse o corpo do filho. As lágrimas reapareceram.
Buscou no armário o vestido usado no dia dos 15 anos do menino. É só um bolinho, ela dissera. Fora mais que isso. Vestiu–se, olhou novamente a janela. E viu. Viu a sombra do menino fechando o portão. Correu para a porta e encontrou uma mala. Sim. Encontrou. Pois não houve estranheza ou surpresa. Não se perguntou o que era aquilo ou porque a mala estava ali. Nada. Simples assim. Estava lá esperando e a mala chegou até ela.
Desceu a rua enlameada com a mala na mão. Parou na curva onde vira o filho morto. Fez um gesto de despedida e seguiu viagem.
Para onde? Não se perguntou. Apenas seguiu. Sabia que a mala lhe diria o destino. Na rodoviária pegou o primeiro ônibus. Não lhe pediram passagem. Agarrou-se à mala, como quem carrega um filho no colo. Acomodou-se no banco do fundo. Fechou os olhos. Adormeceu.
Foi longo o caminho. Era o entardecer quando o ônibus chegou à parada final. Entrou no primeiro bar e pediu um lanche. A mala apoiada nos pés.
Na saída do bar seguiu pela estrada de pedra. Estreita. Irregular. Às vezes os sapatos metiam-se nas fendas das pedras e ela precisava abaixar-se para ajudar os pés a retomarem o caminho. Mas seguiu sempre em frente. Terminada a estrada havia uma viela. O chão coberto de musgo. As plantas desordenadas ameaçavam fechar a trilha estranhando a presença daquela mulher carregando uma mala como quem carrega um filho.
A noite chegou. Pela primeira vez, desde a morte do menino, não teve medo do escuro. No final da trilha avistou o mar. Tirou os sapatos. Sentiu a areia escorrendo pelos pés. Caminhou dando a volta no contorno da praia. Cansou-se. Abraçada à mala deitou-se e adormeceu. Não precisou de velas. Sabia que ela, o menino e a mala estavam ali.
III.
- Moça. Moça. Acorda moça. O mar está subindo! Esta mala é sua? É sua a mala?
- Olha o mar. Olha o mar. Está subindo. Acorda!
Janaína abriu os olhos. Demorou a entender onde estava. As palavras chegavam a ela embaralhadas com o som das ondas. A espuma estourando a seus pés.
Agarrou a mala e o menino. Abraçou-os como quem recebe o filho de volta.
- Filho, filho. Jhonata querido, jhonata...
O menino assustou-se. Empurrou-a, desfazendo o abraço e saiu correndo. Na curva do mar, ainda inquieto, virou-se. Viu a mulher agarrando a mala como quem carrega um filho no colo. Fez um aceno e sumiu.
Janaína, imobilizada, agarrada à mala, seguiu-o com o olhar. As ondas salpicaram-lhe o rosto.
Não se sabe mais o que são lágrimas e o que é a água do mar.
Chorou até que o mar se recolheu deixando apenas a areia molhada. Ela também se recolheu. Descalça, retomou o caminho de volta.
Desta vez, as plantas da viela abriram-lhe caminho. Recolheram-se. Na estrada não se incomodou com o chão duro das pedras. Seguiu sempre em frente.
Filho, filho. Jhonata querido, Jhonata. O nome do menino dava voltas dentro dela. Crescia e estourava no peito. Chamava o filho e segurava com mais força a mala. Não fosse perde-la também.
Às vezes, um ou outro passante olhava aquela figura triste e se comovia com as dores da própria vida. Ninguém ousou se aproximar.
Caminhou pela estrada até o final do dia. O cansaço veio junto com a calmaria. Aquietou-se. Os pés estavam feridos mas ela não sentia mais dor. Só queria chegar. Sabia que estava perto.
IV.
Escureceu.
A lua, escondida pelas nuvens, deixava apenas um rastro nublado sobre as pedras da estrada.
Janaína continuou.
A mala não tinha mais peso ou volume. Fazia parte daquela mão estendida.
Um relâmpago anunciou a chuva desbastando o céu. Janaína apressou o passo.
Quanto tempo caminhou assim? Não se sabe dizer.
A água parou de escorrer pelos seus pés e a noite fez-se mais clara.
Janaína levantou a cabeça e viu, ao lado da lua, apenas uma estrela. Sorriu. Sim, pela primeira vez depois da morte do menino, ela sorriu. Um sorriso triste, é verdade, mas ela se deu conta dele.
Lembrou-se da estória dos três reis levando presentes para o menino Jesus. Tantas vezes a mãe a contara. Eles simplesmente seguiram a estrela e chegaram até o lugar onde o menino estava.
Lembrou-se dos pequenos presépios feitos na sua vida de menina pobre: um cestinho de palha, um vidro com papel azul fazendo as vezes de um lago, um papel marrom amassado imitando as pedras da gruta, um bonequinho de pano deitado no cestinho, coberto com resto de tecidos. Uma vaquinha de madeira, um bezerrinho, uma estrela dourada pendurada no teto da gruta.
As lembranças tornaram leve seu caminhar. Deixou-se guiar pela estrela.
Sentiu a água novamente molhando os pés. Estava sobre uma ponte.
O rio, cheio, corria e criava ondas que subiam e atravessavam a pequena ponte de madeira.
Janaína parou no meio da ponte. Apoiou-se na mureta feita com troncos de árvores e ficou ali olhando a água correr e os galhos desaparecendo na curva do rio. O dia amanhecia.
Pousou a mala sobre a água. Com tanta ternura como se estivesse cobrindo o menino jesus em seu berço. Abriu a mão e deixou-a ir. Esperou que desaparecesse junto com as folhas do rio.
Dos olhos, lágrimas doces escorreram até o canto da boca.
Levantou-se e partiu.
Maria Laurinda é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise Teoria e Clínica, autora dos livros “Violência”( 2005) e “Vertentes da Psicanálise”(2017) ambos da Coleção Clínica Psicanalítica, ed. Casa do Psicólogo.
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