Psicodrama Público do Centro Cultural São Paulo
Você já ouviu falar do Psicodrama Público do Centro Cultural São Paulo?
O Blog do Departamento convidou o psicodramatista, psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise Pedro Mascarenhas - um dos coordenadores deste Psicodrama Público- para nos contar um pouco desta história.
Confira a seguir:
Para escrever sobre os Psicodramas Públicos no Centro Cultural São Paulo (CCSP), irei de início, compartilhar algumas perguntas recorrentes acumuladas no percurso destes quatorze anos, entre tentativas de respostas e formulações de novas perguntas:
1- O que significa fazer psicodrama gratuito em um espaço cultural público municipal? Há uma especificidade?
2- O que se entende por espaço cultural público?
3- Em que consiste um trabalho voltado para a cidadania?
4- Entre o psicodramático e o sóciodramático, qual o melhor enquadre para este trabalho? Poderíamos chamar de psico-sociodramático?
5- É melhor trabalharmos com temas predefinidos ou emergentes?
6- Como caracterizar a subjetividade que atravessa este trabalho?
7- Quem são os frequentadores habituais das sessões? Quais são suas motivações? É possível afirmar que os que frequentam assiduamente realizam um processo?
8- O que pode ser considerado psicoterápico nesse trabalho?
9- Como articular o público e o privado?
Sem pretensão de esgotar tais perguntas, tentarei fazer um percurso que passe por algumas destas interrogações.
O psicodrama público do CCSP realiza-se sempre aos sábados, desde agosto de 2003, como um desdobramento do Psicodrama da Ética, realizado no dia 21 de Março de 2001 e coordenado pela psicodramatista Marisa Greeb, ocasião em que foram realizados simultaneamente vários Psicodramas Públicos na cidade de São Paulo.
A partir daí, a convite da Sociedade Amigos do CCSP, Antônio Carlos Cesarino reuniu uma equipe para organizar os Psicodramas Públicos semanalmente.
Na verdade a história do Psicodrama Público é antiga e em seus primórdios era mesmo público, realizado em praças com crianças nos jardins de Augarte entre 1908 e 1911, com prostitutas entre 1913 e 1914 e com refugiados de guerra tiroleses no campo de Mittendorf em 1917, todos em Viena, cerca de cem anos atrás. J.L.Moreno, que nesta época era um estudante ligado aos sionistas vienenses, jamais rompeu com os ideais de sua juventude ao longo de sua vida e obra. Entre apostolado e idealismo, fazia tentativas de vida heroica e marcava sua utopia. Desenvolveu o Teatro da Espontaneidade e, em suas duas obras mais conhecidas - As palavras do pai (1920) e O Teatro da espontaneidade (1923) - registrou seus pensamentos desta época e alguns dos conceitos que posteriormente seriam sistematizados. Para Moreno “o experimento sociométrico acabaria por tornar-se total, não apenas em expansão e extensão, mas também em intensidade, marcando, assim, o início da sociometria política”, o que passou a ser conhecido como a utopia moreniana.
Tal utopia sempre esteve presente em nosso Psicodrama Público e nossa relação com ela é de militância quase religiosa, de paixão, podendo tanto nos inspirar, quanto nos cegar tornando-se um fundamentalismo. Como diferenciar? O trabalho com um grupo aberto contínuo e heterogêneo nos coloca frente a frente com pessoas e sofrimentos diversos. Nosso desafio é abrir um espaço de escuta e criação coletiva de projetos dramáticos singulares, independente de qualquer leitura psicopatológica. Na fala dos participantes, "venho aqui porque o psicodrama do Centro Cultural é como um buraco no muro de Berlim; é poder passar pelo buraco no muro”; “vir ao CCSP é um enorme alívio porque é o único lugar onde podemos tratar questões sem ter um rótulo de doente". No entanto, este trabalho inspirado na utopia moreniana, precisa se desdobrar numa política com P maiúsculo, caso contrário seguimos sendo um barco de motor potente, mas sem direção, consistência e consequências. Pensar sobre uma Política que poderia nos ajudar a seguir a utopia como inspiração, além de uma gestão deste espaço é uma questão controversa, como qualquer Política, mas necessária e obrigatória.
O psicodrama migrou dos psicodramas públicos das ruas para o delimitado espaço dos consultórios, salas de aula e de treinamento atuais. Um movimento de sobrevivência, necessário para o seu desenvolvimento, mas ao preço de diminuir seu impacto revolucionário. Tornou-se mais uma forma de psicoterapia, treinamento ou dispositivo grupal. Em seu texto "Jogo do Esconderijo” (1976) Betty Milan já formulava uma interpretação sobre a evolução da utopia e o processo de "privatização" do psicodrama.
Atualmente há uma ideia prevalente de que tudo precisa ser privatizado, saúde, educação, serviços, etc. sendo privado considerado mais eficiente e o público sujeito a corrupção. Estaria o Estado e a sociedade falidos e sem possibilidade de criação de espaços públicos para o exercício da cidadania? Sabemos o quão complexa é esta questão, atravessada pela ideologia de um mercado neoliberal com seus tentáculos em todas as áreas da vida, inclusive neste espaço do Psicodrama, o que nos exige reflexões e reposicionamentos permanentes.
Para Cesarino o mote inicial do Psicodrama Público seria caminhar na direção da compreensão do que seria cidadania, sem se esquecer de que ela pode ser limitada (ou até descartada) em função da organização da sociedade liberal (ou capitalista). Ou seja, sem nos esquecer de que as relações de mercado neste momento histórico são colocadas acima da cidadania. O adjetivo público dado ao psicodrama por Moreno denota uma característica de grupo aberto não processual, não numerável, em que se trabalham temas de interesse público. Aqui o público é inseparável do psicodrama. Mas também podemos pensar o público como uma característica dos contextos grupal e social, pelo fato deste psicodrama se realizar numa instituição pública, ser gratuito e necessitar de uma série de entendimentos com a instituição. Neste caso seria um dos tipos de psicodrama. Como nomear os outros tipos? Psicodrama privado?
Na verdade esta pergunta é para provocar um estranhamento e um convite ao debate. Os saberes estão sempre tendo que se haver com a sua privatização. O que se entende por público?
Embora pareça uma questão básica com respostas óbvias, o significado de público pode ser múltiplo e variável, de acordo com a época cultural e a necessidade de expressão.
Os urbanistas se interessam muito pelo assunto e caracterizam o espaço público de maneira bastante variada: espaço de visibilidade pública; espaço de uso comum e posse coletiva pertencente ao poder público; espaço da possibilidade da ação política; lugar de representação e de expressão coletiva da sociedade. Destas caracterizações gostaria de focar no espaço público como condição da cidade democrática e lugar de intercâmbio de bens, de ideias, de afetos, de fantasias, de projetos, de sonhos. A produção deste espaço de intercâmbio é coletiva e ambígua, feita a partir de disputas, conflitos e articulações com movimentos de privatizações, cheias de idas e vindas. Um espaço conflituoso que nos coloca frente à questão de sua gestão participativa e de sua avaliação.
No espaço Público, assim caracterizado, o encontro com a alteridade deveria ser uma de suas características, talvez a central, a nossa possibilidade de outramento, nas palavras de Marisa Greeb. Para Cesarino o espaço público não é só um espaço de passagem, ele nos pertence e pode ser um espaço de encontro e convivência.
Como avaliamos o espaço do Psicodrama Público no CCSP?
O CCSP é um centro cultural que abriga um Psicodrama Público, ou seja, um espaço de cultura que abre uma possibilidade de construir uma compreensão do sofrimento humano.
Todo dispositivo cultural público tem como função acolher e fomentar um espaço de resistência. Trata-se de um lugar público onde, além de se oferecer convivência, a vida deve ser potencializada numa vivência estética e transformadora.
O CCSP é um espaço em que as pessoas se sentem à vontade e que permite abrigar diversas formas de expressão cultural contemporâneas. Sua biblioteca é a mais frequentada dos serviços públicos municipais. O público tanto do CCSP quanto do psicodrama é variável e abarca desde moradores da periferia de São Paulo, sem tetos, jovens artistas, grupos com algum tipo de handcap, pacientes de um hospital psiquiátrico próximo, pessoas que transitam pelo local. A estes se juntam, no caso do psicodrama, aos estudantes de psicologia, de psicodrama, sociologia, etc...
A dimensão pública deixa sua marca, seja na construção coletiva e inclusiva para o sofrimento nas diversas situações humanas da vida social e cultural, seja pela possibilidade de não reduzir o sofrimento humano aos códigos de diagnósticos ou aos saberes da ciência médica, psicológica, pedagógica, psicoterápica ou psicanalítica, que podem ser muito úteis, mas não cobrem a amplitude e a diversidade do humano ou como a sociedade se relaciona com o humano.
O Psicodrama Público, sem ser uma psicoterapia no senso estrito, constrói um dispositivo que permite abordar e dar visibilidade aos sofrimentos humanos através de uma escuta polifônica e transversal. Uma abordagem baseada na construção coletiva e no intercâmbio que acolhe e inclui. Por ser uma prática que produz efeitos transformadores diversos nas pessoas, poder-se-ia dizer que se constitui em uma clínica, embora diferenciada, que se opõe de maneira frontal ao espaço clínico dominado pela lógica manicomial. E isso não acontece por ser um trabalho extramuros do manicômio, nem por atender pessoas egressas destes serviços, embora elas possam frequentar, já que é um espaço aberto. Mas por se utilizar de uma lógica oposta em sua episteme, método e prática, em que não isola ou segrega as pessoas em sofrimento e não se detém no olhar patologizante da experiência humana. E, embora não pertença a uma rede como os serviços públicos de saúde mental, pode-se dizer que faz um trabalho antimanicomial. A utopia é moreniana, mas a ética e a Política é antimanicomial.
Há treze anos, no início do trabalho de Psicodrama Público no CCSP, a diversidade de direções que eram apresentadas era seu traço marcante; cada diretor exibia suas singularidades diretivas. Hoje esta diversidade permanece, mas aos poucos, questões formuladas pelos usuários e pelos diretores permitiram a construção de um espaço mais democrático e mais Público, no seu sentido amplo, como já abordamos. Assim estamos, em meio a este processo, às vezes ambíguo e nem sempre progressivo. Acolhermos a participação dos usuários na gestão deste processo é, sem dúvida, um desafio bastante pertinente aos tempos atuais. Uma gestão e avaliação participativa dos conflitos inerentes a este trabalho pelos próprios usuários juntos com os diretores talvez seja outro horizonte possível.
O Psicodrama Público recupera a concepção, entre a palavra psicológica, íntima e doméstica - oikos -, drama do eu-tu, e a palavra política, pública e coletiva - polis -, lugar da nossa tragédia. Foi através da tragédia, no teatro, que, na antiguidade, os gregos articulavam a passagem do mito ao político.
Penso o Psicodrama Público como um dispositivo transformador. A palavra “dispositivo” se origina do grego "oikonomia", gestão do oikos, ou gestão da casa, assim como estamos gestando a nossa casa / grupo / sociedade. Agamben, acrescentando ao pensamento de Foucault novas concepções propõe que dispositivo seja qualquer coisa que tenha a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres humanos. O dispositivo atua no processo de subjetivação. Uso o termo dispositivo na direção proposta por Agamben e, mais especificamente, no sentido que Ana Maria Fernández o emprega, referindo-se a artifícios tecnológicos desenhados por nós nas intervenções institucionais e ou comunitárias... pensados como máquinas, que cria condições de possibilidade, que provoca ou põem em visibilidade e eventualmente em condições de enunciabilidade latências grupais, institucionais e ou comunitárias.
Penso o Psicodrama Público como um dispositivo transformador. A palavra “dispositivo” se origina do grego "oikonomia", gestão do oikos, ou gestão da casa, assim como estamos gestando a nossa casa / grupo / sociedade. Agamben, acrescentando ao pensamento de Foucault novas concepções propõe que dispositivo seja qualquer coisa que tenha a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres humanos. O dispositivo atua no processo de subjetivação. Uso o termo dispositivo na direção proposta por Agamben e, mais especificamente, no sentido que Ana Maria Fernández o emprega, referindo-se a artifícios tecnológicos desenhados por nós nas intervenções institucionais e ou comunitárias... pensados como máquinas, que cria condições de possibilidade, que provoca ou põem em visibilidade e eventualmente em condições de enunciabilidade latências grupais, institucionais e ou comunitárias.
A subjetividade contemporânea chama a atenção para o processo de transformação do cidadão em consumidor.
Ter consciência sobre ser um cidadão dentro de um território nacional seria o objetivo a ser alcançado na modernidade industrializada. Na sociedade globalizada, sem fronteiras nacionais, dominada pelo desenvolvimento do capital internacional, o objetivo passa a ser a formação de consumidores cativos. Consumidor seria a posição determinante que trama a natureza do ser humano de nossa época.
Na sociedade de consumo o novo é melhor porque é novo e vivemos paradoxalmente, sendo obrigados a ser novo e criativo a todo instante. Tudo se espera do objeto a ser consumido e nada do sujeito, transformado que está, nesta sociedade de consumo e espetáculo, a ser somente objeto de consumo ou consumidor. Não existem modificações do objeto pelo sujeito e vice-versa.
Os estados nacionais engendraram práticas cívicas e a consciência do cidadão. O mundo globalizado, supra nacional, engendrou práticas de consumo e de formação de imagem. Não basta consumir tem que parecer que consumiu para um outro que também consome. O consumo requer um espectador também consumidor que testemunhe o Reality show do consumo.
No Psicodrama Público do Centro Cultural uma de nossas questões tem sido a de tentar situar este trabalho não como mais um produto a ser consumido.
Uma questão me chamou a atenção em uma das avaliações realizadas com o grupo de participantes do psicodrama. Ao serem interrogados sobre suas preferências, tomando a distinção entre psicodrama e sociodrama, afirmaram a importância de sua participação efetiva no processo de trabalho, de não se sentirem ausentes ou meros espectadores no próprio processo de realização do trabalho, fosse ele psicodrama ou sociodrama.
Parece que aqui há uma confirmação de que o trabalho público valoriza o processo de fazer junto, deflacionando os consumidores.Um processo de co-existência, co-experiência e co-criação.(Moreno) Estar junto neste processo e poder criar coletivamente alternativas, seja para questões individuais ou vividas como problemas coletivos, criar um lugar, um território. Deixar de ser consumidor, objeto, anônimo. Transformar não-lugares desterritorializados em lugares próprios e singulares de criação.
Em várias ocasiões, tanto como diretor como membro da plateia me senti imerso numa atmosfera mágica e onírica junto ao grupo, sonhando junto. Esta seria para mim uma das características básicas do terapêutico, ou seja, atravessar e se deixar atravessar pelo sonho do outro, criar junto, condições de sonho onde ele não existe. Em outra linguagem, criar trama psíquica, ou o próprio psiquismo.
Ainda na diferenciação entre o público e o privado penso que o sonho é ao mesmo tempo o que há de mais privado e público. Sonhar junto, e depois contá-lo num grupo passa pela própria dobra entre o psico e o sócio.
Pedro Mascarenhas é psiquiatra, psicodramatista pela SOPSP e psicanalista. É membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae.
Referências bibliográficas:
1.Mascarenhas P. A ética da paulicéia desvairada e o psicodrama público. Jornal Em Cena. 2001;18:6-7.
2.Moreno JL. As palavras do pai. 1 ed. Campinas: Editorial Psy; 1992. 200 p.
3.Moreno JL. O Teatro da Espontaneidade. São Paulo: Summus Editorial; 1984. 150 p.
4.Moreno JL. Quem Sobrevivera? Fundamentos da Sociometria, psicoterapia de Grupo e Sociodrama. Goiania: Dimensão Editora; 1992. 220 p.
5.Milan B. O Jogo do Esconderijo. São Paulo: Livraria Pioneira Editorial; 1976.
6.Wechsler MPdF, Monteiro R, editors. Psicodrama em Espaços Públicos - Práticas e Reflexões. São Paulo: Agora; 2014.
7.Batista MA. A utopia moreniana no Centro Cultural São Paulo. Psicodrama em Espaços Públicos - Práticas e Reflexões. São Paulo: Agora; 2014. p. 131-6.
8.Davoli C. Psicodramas públicos. Revista Brasileira de Psicodrama. 2011;19(2):155-62.
9.Mascarenhas P. Psicodrama no Centro Cultural São Paulo: contribuições para a reflexão. Revista Brasileira de Psicodrama. 2008;16:61-6.
10.Quesada L, Delfino C. Psicodrama O encontro do eu no outro. Cultura SP. 2005;2:24-7.
11.Wechsler MPdF, Monteiro R, editors. Psicodrama Público na Contemporaneidade. São Paulo: Agora; 2016.
12.Fernandez AM. O campo grupal: notas para uma genealogia. São Paulo: Martins Fontes; 2006. 230 p.
13.Pavlovsky E, Fernandez AM, . Las lógicas colectivas. Imaginarios, cuerpos y multiplicidades. Ana María Fernández 2011.
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