Resenha do Livro - Sociedade, Cultura e Psicanálise de Renato Mezan

A convite do Blog, Renato Mezan -  membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae – faz um pequeno resumo de seu último livro Sociedade, Cultura , Psicanálise que será lançado no dia 30 de agosto a partir das 19 horas na Livraria da Vila – Fradique



Sociedade, Cultura, Psicanálise.

“Este livro é dedicado àqueles dos meus colegas que não acreditam na possibilidade de uma Psicanálise aplicada”: assim André Green inicia La Déliaison (O Desligamento), coletânea na qual enfeixa algumas de suas mais agudas leituras de textos literários.

O desprezo por esta prática centenária – inaugurada por Freud em pessoa, que lhe atribuía importância suficiente para reservar a escritos desse tipo a revista Imago – origina-se numa série de suposições a meu ver errôneas. A primeira é que os conceitos e esquemas interpretativos da Psicanálise se prestariam mal à elucidação de fenômenos de ordem diversa daquela para a qual foram criados, a saber os que têm lugar no trabalho clínico stricto sensu. Por isso – segundo motivo – tal uso abusivo das noções analíticas nada acrescentaria à compreensão desses fenômenos, limitando-se a encontrar neles os mesmos elementos que teriam informado a leitura (por exemplo, “descobrindo” que tal personagem tem um Édipo mal resolvido, ou que um crime hediondo resulta de impulsos sádicos não sublimados).

Sofrendo de “tautologite” insanável quanto ao conteúdo, no quesito “instrumentos de leitura” a contribuição da Psicanálise aplicada para o desenvolvimento da própria disciplina seria também igual a zero: nada de proveitoso para a compreensão – e muito menos para a ampliação – do seu próprio campo resultaria de tão inútil empreitada. Em suma: cada macaco no seu galho, e vaias para o que se aventurasse na famosa loja de louças.

O problema com estas três afirmações é que não correspondem à verdade, e é o que procuram demonstrar os textos reunidos no presente volume.  Quer se trate de questões da vida social (Parte I), de obras da cultura (Parte II), de assuntos mais tipicamente psicanalíticos (Parte III), ou da leitura de escritos de colegas (Parte IV), procuram respeitar uma série de princípios e de métodos que visam a tornar convincentes os estudos de Psicanálise Aplicada. Eles começam por contextualizar o tema, continuam com o estudo de algumas características que o individualizam entre outros da mesma classe, e só então se aventuram a sugerir hipóteses de cunho psicanalítico.

contextualização depende da natureza do assunto: no mais das vezes, é histórica (a epopéia do Gueto de Varsóvia, os artigos sobre a tolerância, sobre o amor e o erotismo, o ambiente em que convivi com Scarlett Marton no Departamento de Filosofia da USP, entre outros), mas pode ser igualmente conceitual (a noção de “romântico”, o que torna “policial” uma novela, etc.), estética (o preto e branco num filme de Visconti, a descrição da inveja por Clarice Lispector), ou mesmo propriamente psicanalítica (o que entendemos por “sexualidade” ou “prazer”, exemplos clínicos e referências teóricas nos livros comentados). Uma vez situado o tema nesse gradiente, vou em busca do que o singulariza: os elementos formais a meu ver relevantes são então destacados, e a partir deles vão surgindo as indagações para as quais busco resposta.

Neste percurso, sirvo-me de uma ideia que atravessa todo o volume, e apesar da variedade de tópicos lhe confere certa unidade: há no ser humano aspectos que podemos considerar universais, ou seja, independentes de época e lugar, e outros que dependem de circunstâncias históricas, sociais e culturais. Fazem parte do primeiro grupo as pulsões elementares (sexualidade e agressividade), as angústias fundamentais (de morte, invasão, despedaçamento, perseguição, dissolução, castração...), e o elenco de defesas contra umas e outras; pertencem ao segundo elementos ligados ao ego, ao superego e aos ideais, que o indivíduo absorve por identificação a modelos vigentes no meio em que lhe toca viver (normas, costumes, crenças, valores éticos e estéticos, e assim por diante).

Exemplos dessa forma de proceder encontram-se entre outros nos capítulos sobre o livro de David Levisky Um Monge no Divã, no qual ele se interroga sobre a pertinência de estender o conceito de adolescência para além da sociedade moderna, no que discute os impasses do multiculturalismo (“Nasrah e seus irmãos”), ou no que aborda o prazer que sentimos ao ler romances de mistério: na verdade, é ela que permite o trânsito entre a singularidade das produções humanas examinadas no livro e o que a Psicanálise tem a dizer sobre o funcionamento psíquico da nossa espécie.

A ponte entre cada tema em particular e o arsenal teórico herdado de Freud e dos seus sucessores reside no tipo de problema que aquele permite formular, o que por sua vez convoca para sua solução determinados conceitos analíticos. Assim, o incesto entre irmãos sugerido em Vaghe Stelle dell’Orsa... exige abordar questões diferentes daquelas para as quais apontam o fundamentalismo religioso ou o papel da imagem em certas formas do erotismo.

Talvez o leitor se pergunte por que quis incluir neste volume doze textos sobre obras escritas por outros autores: resenhas e prefácios, como se sabe, não são considerados pelas agências federais como produções válidas para avaliar o trabalho de professores universitários. Segundo elas, não estariam no mesmo plano que os que tratam de temas mais diretamente ligados à sua área do saber, e no fundo não pertenceriam à espécie scriptum scientificum. Como se pode imaginar, essa posição me parece equivocada.

A ciência – qualquer ciência, mas sobretudo as humanas – é uma atividade social, e não somente o fruto dos estudos de um indivíduo isolado. Toda investigação se apóia no que outros produziram e produzem, dialoga com o já estabelecido, às vezes o questiona, outras o aprofunda, ou abre novas perspectivas. Conhecer – e dar a conhecer – o trabalho dos colegas é assim parte integrante da atividade intelectual, e exige tanto esforço quanto pesquisar qualquer outro assunto; talvez até mais, porque para dizer algo pertinente nesse campo é necessário entrar no “mundo” de outra pessoa, procurar compreender o que quis realizar, e avaliar até que ponto o conseguiu.

Por isso, toda leitura é também um diálogo com o autor do texto, e por isso emprego ambos os termos como título da Parte IV do presente livro. Além disso, como os autores aqui comentados pertencem ao mesmo território – o da Psicanálise brasileira atual – o estudo dos seus escritos, se tomado em conjunto, revela algo do que se passa nele. Com efeito, diversos tópicos são focalizados em mais de um dos livros que escolhi discutir, seja na Parte IV, seja nos demais textos: são questões que vêm se impondo nos debates profissionais, e que naturalmente suscitam a atenção de muitos colegas.

Renato Mezan é psicanalista, doutor em filosofia, e professor titular na pós-graduação em psicologia clínica na PUC-SP. É autor entre outros livros, de Freud, pensador da cultura (2006), Interfaces da psicanálise (2002) e Tempo de muda (1998).                                                                

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