A psicanalista Maria Cristina Petry, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, compartilhou com a equipe do blog uma entrevista que deu sobre a "cura gay", homossexualidades, transexualidades e prostituição. Confira!

SOBRE A CURA GAY, HOMOSSEXUALIDADES, TRANSEXUALIDADES E PROSTITUIÇÃO: ENTREVISTA PARA FINS ACADÊMICOS

Virginia Carvalho e Stephanye Gomes Albino (estudantes de Jornalismo da Uninove)
Entrevista com Maria Cristina Petry

Ao pensarmos na decisão do juiz, voltada para as pessoas que não aceitam a própria sexualidade, entramos em embate com a questão da sociedade não aceitá-las num primeiro momento e, por consequência, tais pessoas não se aceitam. Como ajudar essas pessoas sem colocar a homossexualidade como uma doença?

Em primeiro lugar, esclarecendo a toda a sociedade que a homossexualidade não é uma doença. A prática clínica nos mostra isto. Freud, em 1935, já afirmava que não considerava a homossexualidade uma doença e que não confiava numa possível reversão da mesma. Em 1990, a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da lista de doenças e o Conselho Federal de Psicologia já a havia retirado da lista de transtornos mentais em 1985, assim como, no mesmo ano, o Conselho Federal de Medicina desclassificou a homossexualidade de ser um “desvio e transtorno mental”. Já a Associação Americana de Psicologia o havia feito desde 1975 e a Associação Americana de Psiquiatria, desde 1973.

O fato da sociedade não saber lidar com as diferenças, sequer poder respeitá-las, manifestando seus preconceitos através de atitudes como intolerância, discriminação, bullying e exclusão social acabam por provocar - ou simplesmente agravam - o sofrimento e conflitos dessas pessoas, cuja vivência não corresponde a uma heteronormatividade estabelecida no âmbito social, histórico, cultural, político, religioso.

Consequentemente, são os sentimentos de menos valia, inadequação, depressão e as tentativas de suicídio, assim como as internações compulsórias de adolescentes e a medicalização desnecessária, entre outros, que fazem com que pessoas homossexuais nos procurem em consultórios para que possam ter um espaço de escuta e acolhimento.

Conforme dito em meu artigo Ainda sobre as manifestações de repúdio à chamada “cura gay”, publicado em 25/10/2017 no Blog do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae: “Nós, profissionais da saúde, sempre nos propusemos a atender casos de homossexualidades pelos efeitos de sofrimento que isto pode causar no Sujeito, na medida em que ele nos procura espontaneamente; porém não se trata de reverter a homossexualidade, mas sim de tratar as angústias que podem advir de problemáticas geradas, acima de tudo, por conta do preconceito e intolerância sofridos por estas pessoas, cujas identidades de gênero e/ou orientação sexual elas mesmas têm de aprender a lidar.”

É, portanto, oferecendo esse espaço de escuta e acolhimento, sem discriminação, onde o que é considerado é o Sujeito constituído na sua singularidade, digno de respeito e de direitos como qualquer cidadão. Ao oferecer um atendimento em que possa, a partir da empatia, ser estabelecida uma relação transferencial, é que nós, profissionais da saúde, podemos propiciar possibilidades de elaboração psíquica das suas angústias e ajudar essas pessoas a lidarem com seus conflitos e dor, de maneira a poderem assumir o seu desejo e a escolherem um caminho de vida a percorrer que lhes faça sentido.

Acreditam que essas terapias de reversão sexual podem causar danos psicológicos irreversíveis aos que foram submetidos a ela?
As terapias ditas de reversão sexual são refutadas segundo a orientação do Conselho Federal de Psicologia, expressa em sua Resolução de Nº 01/1999 que proíbe “qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas” e veta “eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. Esta é a resolução que está sendo questionada na justiça por algumas pessoas que ainda consideram a homossexualidade como uma doença.
Entendemos que a homossexualidade não é uma doença, tampouco uma escolha opcional - ninguém escolhe sofrer ataques advindos de preconceitos arraigados na sociedade - trata-se de uma característica que não deve ser considerada patológica. Portanto, não há que se propor tal terapia.
Se essas terapias questionáveis existem, pode-se imaginar no mínimo o acréscimo de sentimentos de culpa aos já sofridos e reforçados sentimentos de inadequação, e a sexualidade, ao ser entendida como algo a ser condenado e reprimido, traz consequências maléficas aos sujeitos.


Atualmente, parte da comunidade LGBT luta contra a despatologização de pessoas transexuais: como essa iniciativa do juiz interfere na luta?
A questão sobre patologização versus despatologização das transexualidades tem sido bastante contraditória entre a própria comunidade LGBTs. Isto porque é justamente o fato de ser classificada como doença que pessoas trans, desde que se encaixem numa concepção fixa de gênero, podem obter todo o tratamento de readequação sexual gratuito pela rede pública. No entanto, parte da comunidade é contrária por entender que todos devem ter os mesmos direitos garantidos, fora da concepção de doença.
Considerando que sua pergunta aponta para o fato de que parte da comunidade LGBT luta contra a despatologização de pessoas transexuais, neste caso, especificamente, a decisão do juiz não interfere na luta. Isto porque me parece que estas pessoas citadas desejam manter o status quo, vez que provavelmente estão se beneficiando dos aparelhos de Estado onde, através de atendimentos multiprofissionais, conforme diagnóstico médico estabelecido para as pessoas trans no DSM-5 - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - atualmente não mais como transtorno de identidade de gênero e transgênero mas, ainda sim, como Disforia de Gênero, podem ter atestados os seus direitos e a sua condição favorável às chamadas cirurgias de ressignificação sexual, ou seja, cirurgia genital irreversível e tratamentos hormonais pelo SUS - Sistema Único de Saúde - além de possibilidades de acesso jurídico para mudança de sexo e gênero em suas Certidões de nascimento, como também a retificação do nome de batismo pelo nome social adotado.
Importante salientar que os transexuais não devem ser confundidos com os homossexuais, porque sexualidade não é a mesma coisa que identidade de gênero. Lembrando ainda que, em Psicanálise, falamos em identificações.
O que tenho percebido mais recentemente são algumas pessoas trans que, conforme dizem, não sentem a necessidade de realizar uma transição completa, porém fazem questão de ter reconhecido o direito a um nome social por elas escolhido e o direito de serem respeitadas em suas singularidades destoantes de uma cisnormatividade estabelecida. A partir daí, podemos pensar em como garantir os direitos reivindicados sem que, para isto, pessoas trans precisem continuar a ser diagnosticadas patologicamente. O Conselho Federal de Psicologia lançou em 22/05/2015 o site Despatologização das Identidades Trans como parte integrante da campanha de luta contra a homofobia, produzido pela Comissão de Direitos Humanos, mostrando que, apesar das conquistas alcançadas nos últimos anos, a população trans ainda tem seus direitos condicionados a um diagnóstico patologizador. Portanto, é preciso levar adiante estas questões, envolvendo também as demais áreas do conhecimento.

Qual a sua posição quanto aos profissionais que alegam existir uma forma de reverter a orientação sexual de uma pessoa e que exercem tratamentos sobre isto?
Penso que lhes faltam leituras, conhecimento e experiência sobre o assunto. Ou ainda, que possuem uma visão deturpada, atravessada por questões de valores pessoais.

Como questões como a cura gay podem refletir diretamente na mente de pessoas homofóbicas?
Como já disse, acirrando comportamentos preconceituosos, de intolerância, exclusão, discriminação, marginalização do convívio social, enfim, cada vez mais havendo um aumento de segregação e violência contra os homossexuais e pessoas transgêneros, na medida em que são consideradas pessoas doentes, o que é um engodo.

Como estar exposta à violência diária na prostituição afeta o psicológico de uma garota de programa, principalmente trans?
É importante ressaltar que as questões vivenciadas por garotas cis são diferentes das vivenciadas por garotas trans. Contudo, qualquer pessoa que esteja exposta à violência diária terá, em seu psiquismo, marcas profundas dessa violência. Embora cada um tenha seu modo de interpretar as situações vividas e cada ser tenha as suas características e maneiras de lidar com os acontecimentos, o que observamos é que a maioria tende a se portar e a reagir com a mesma agressividade a que foi submetida, fazendo deste comportamento um meio de defesa frente a possíveis novas formas de agressão.

Quais são os perfis de mulheres cis e mulheres trans que procuram esse meio de sustento?
Existem diversos motivos para que uma mulher, independente da sua identificação sexual, seja ela cis ou trans, procure na prostituição o seu meio de sustento, seja para a sua própria subsistência, da família, de um filho ou ainda de um vício. Embora não tenha na minha prática clínica pessoas oriundas de tal vivência, entendo em linhas gerais que os perfis podem ser os mais variados possíveis, desde o de uma pessoa mais tímida com tendência à submissão até o das mais seguras e independentes; desde o das meninas em tenra idade que são aliciadas sob falsas promessas de sonhos a serem realizados, passando por aquelas que se tornam escravas sexuais, que foram violentadas por pessoas oriundas do próprio ambiente doméstico e familiar. Também temos as que dependem de uma certa proteção dos seus agenciadores/cafetões - cuja relação é abusiva e baseada na agressão, seja ela física ou psicológica - e as que encaram com mais objetividade e autonomia esta atividade profissional, podendo até obter prazer, tanto com os diversos programas acertados quanto com as próprias relações em si. Enfim, devido à complexidade de cada ser e do que seria abordar nesta entrevista cada perfil em particular, deixo em aberto esta questão.

O que leva homens a procurarem se satisfazer com mulheres trans para logo em seguida assassiná-las, como é visto em muitos casos?
Cada caso é um caso, no entanto, e também analisando de maneira genérica, podemos pensar sobre a hipótese de que parece existir uma identificação possível destes homens com as mulheres trans - na medida em que se ama no outro aspectos que se encontram em si mesmo; desejo narcísico, inconsciente. E então, levados que foram a realizar uma fantasia inicial, no seu término, num ato de insensatez, matam - na ilusão de poderem incorporar os aspectos desejados do outro, senão pelo que são mas por aquilo que representam: mulheres fálicas, irresistíveis, capazes de seduzir e despertar no outro um desejo conscientemente negado por conta de preconceitos. Ou ainda, o que se sabe de mais comum é que esses homens, na medida em que rejeitam em si alguns aspectos encontrados nelas, passam a querer apagar qualquer rastro deste desejo que lhes provocou e seduziu e assim o fazem, matando literalmente estes corpos.

O Brasil é o país que mais mata travesti no mundo e o que mais consome pornografia LGBT, o que isso implica psicologicamente falando?
Implica em falar a respeito do desejo, do quanto a pulsão sexual mobiliza os seres independente do sexo, gênero ou identificação. Implica em tentar entender que, em dado momento, certas pessoas, ao se perceberem à mercê de tão recalcado desejo, passam a negar e a sentir ódio por aquele outro ser, tão desprezado por elas, que é capaz de despertar as suas mais poderosas fantasias e sensações.

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