Coluna “Livros da minha Vida” - “O Conto da Ilha Desconhecida” por Rodrigo Blum

Nesse texto Rodrigo Blum escolhe o “O Conto da Ilha Desconhecida” de José Saramago como texto que marcou sua vida de leitor. Nos apresenta o caminho desde o aprendizado de menino, ao lado de seu avô na beira do rio, até a construção de uma ética que defende o direito inquestionável de sonhar.


Sonhemos juntos.

Navegar é preciso, viver não é preciso...

Que é que queres, Por que foi que não disseste logo o que querias, Pensarás tu que eu não tenho mais nada que fazer, mas o homem só respondeu à primeira pergunta, Dá-me um barco, disse. O assombro deixou o rei a tal ponto desconcertado, que a mulher da limpeza se apressou a chegar-lhe uma cadeira de palhinha, a mesma em que ela própria se sentava quando precisava de trabalhar de linha e agulha, pois, além da limpeza, tinha também à sua responsabilidade alguns trabalhos menores de costura no palácio, como passajar as peúgas dos pajens. Mal sentado, porque a cadeira de palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava a procurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-as ora estendendo-as para os lados, enquanto o homem que queria o barco esperava com paciência a pergunta que se seguiria, E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de facto perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrível comodidade, na cadeira da mulher da limpeza, Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem és, para que eu to dê, E tu quem és, para que não mo dês, Sou o rei desse reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar, Às minhas ordens, com meus pilotos e os meus marinheiros, Não te peço marinheiros nem piloto, só te peço um barco, E essa ilha desconhecida, se a encontrares, será para mim, A ti, rei, só te interessam as ilhas conhecidas, Também me interessam as desconhecidas quando deixam de o ser, Talvez esta não se deixe de o ser, Então não te dou o barco, Darás.

Parado em frente a uma alta estante com coleções de livros de encadernações antigas, duras e belas; herança preciosa de meu avô, procuro calmamente aquele autor ou livro que tenha realmente marcado minha vida de leitor. Aos meus olhos ressaltam Jorge Amado, Monteiro Lobato, Lima Barreto, Machado de Assis, Guimarães Rosa... Sim Guimarães. Neste me detenho um pouco mais e como um sopro escuto: “A vida é muito perigosa”. Escuto novamente, e novamente... em um instante vejo meu avô trazer em suas mãos “Grande Sertão: Veredas”, e me dizer com entusiasmo: “Rodrigo este é o livro mais belo e importante já escrito em todos os tempos!” Seu Odoacro Gonçalves me contava repetidamente que havia lido “Grande Sertão: Veredas” inúmeras vezes e nem por isso se cansava em reler. Confesso que nunca me senti à altura de meu avô para ler “Grande Sertão: Veredas” como ele me fazia imaginar o sertão de Diadorim. Mas não foi em Rosa que minha viagem estacionou. Meu barco aportou em outros portos e logo estava eu e Odoacro sentados em um singelo bote à beira do rio Paraná à espera do fisgar da piapara. Piapara era o peixe desejado no rio que divide São Paulo e Mato Grosso do Sul. Nas esperadas férias de julho, meu avô me apresentava seu mais rico prazer. Saíamos cedo em um pequeno bote a motor até um lugar privilegiado onde montávamos nossa embarcação. Varas prontas e rio calmo, era hora de jogar os anzóis. Lembro, como se fosse hoje, das conversas sem hora para terminar, ou mesmo, dos longos silêncios à beira do caudaloso rio. À espera da mordida da piapara meu avô sempre me oferecia uma barra de chocolate, guloseima cuidadosamente preparada por minha avó Cinira, enquanto iniciava seu mais primoroso ritual: o fumar de seu cachimbo. Sentado ao lado do meu avô em pleno rio Paraná, escutando suas histórias, ajudando a manipular o bote, brigando com as piaparas, inalando o aroma do fumo vindo do cachimbo, me sentia, mesmo ainda sem conhecer, como o velho Santiago frente ao mar. Se o dia era dedicado a pesca, a noite era reservada à prosa. Ao lado de Odoacro, Seu Salu, velho pescador e amigo antigo de meu avô, por toda a vida se dedicou à pesca. Sentados em volta da brasa quente, ficavam relembrando histórias do rio e seus personagens. Eu, menino atento, escutava cada uma das muitas histórias, imaginando cada situação como uma fábula naquele cenário sem eletricidade. A escuta era, desde lá, minha via mais respeitosa àqueles senhores e suas heranças. O encontro de Salu e Odoacro pareceria impossível à luz dos dias de hoje. No entanto, como é sabido, é à beira do fogo que a conversa se encontra com sua forma mais primitiva ou se preferimos mais infantil. É com os olhos atraídos pelo colorido das chamas e o calor da brasa, que despretensiosamente o sujeito fala sem olhar para quem está ao seu lado. Escutar meu avô e Seu Salu, mesmo muito precocemente, me punha perto de um universo ainda inexplorável, inconsciente e fascinante. Minha busca a ilha desconhecida só iria acontecer muitos anos depois. No entanto, hoje sem medo, posso afirmar que o meu primeiro encontro com o divã se deu junto a Salu e Odoacro.

Foi assim, embarcado nas recordações infantis que cheguei em José. Saramago certamente é o autor que mais li. José Saramago e sua escrita particular, seu português de Portugal, suas profundezas e delicadezas sempre me povoaram. Viajei por muitos sítios com José até chegar ao comovente O Conto da ilha Desconhecida, e ali aportei meu singelo barco.

Antes de nos aventurarmos ao mar aberto da psicanálise, convém içarmos nossas velas para o universo inconsciente e nos aproximarmos mais atentamente do diálogo travado entre um homem que deseja um barco para buscar uma ilha desconhecida e um rei sentado em seu trono de certezas. O que pode haver por detrás deste aparente desentendimento ou falta de consenso? Quem pensa que é este homem para desafiar o rei? O que o faz ter certeza que ainda exista uma ilha desconhecida? Por que será que um rei ficaria tão estupefato ou, ainda, insultado com o desejo deste sujeito? Inúmeras outras perguntas poderiam ser levantadas, mas é certo que estas já se fazem suficientes para nortear o início de nossa viagem.

O inconsciente é o infantil na teoria freudiana. Partir desta conceituação significa muito mais do que entender o inconsciente como uma região a ser descoberta ou revelada. Pensar no infantil como uma instância permanente no funcionamento psíquico significa considerar como determinante a força pulsional inconsciente na constituição subjetiva e, sobretudo, postular a ideia do sujeito ancorado desde o nascimento até a morte ao desamparo. Neste sentido, o que Freud nomeia “infantil” diz respeito às vivências essenciais que, reduzidas a feixes, traços e marcas, determinam uma organização subjetiva. Em Freud, o inconsciente é atemporal, ou seja, no registro inconsciente são os traços mnêmicos e os fragmentos articuláveis, que, a rigor, compõem a substância indestrutível do infantil. Sabemos que tais impressões da infância não sofrem um real desaparecimento. É sabido também que tais lembranças não serão recordadas no tempo da criança, ou ainda que somente na idade adulta, mesmo de forma fragmentada e alterada, retornarão à consciência de modo geral indiferenciadas das fantasias. Se é verdade que a pulsão de vida não cessa com a aproximação da morte, é também certo que as marcas da cultura são inevitavelmente cruéis. De posse desta proposição, veremos como acompanhar o sujeito, que deseja um barco para ir à procura de uma ilha desconhecida, considerando a precariedade dos recursos que ainda dispõe.

No texto intitulado Uma Dificuldade no Caminho da Psicanálise (1917), Freud irá nos apresentar brilhantemente o terceiro golpe narcísico a que o homem é submetido: o golpe psicológico. Sentado em seu trono narcísico, o homem tem a enganosa certeza que possui todo o conhecimento sobre si quando estabelece que tudo o que é mental é idêntico ao que é consciente. Ou seja, nesta perspectiva o sujeito se esforça e chega acreditar que tudo aquilo que sabe sobre si é exatamente tudo aquilo que chega a seu conhecimento, mesmo tendo óbvias evidências que inúmeras outras coisas acontecem em sua mente. Afinal, para este nobre sujeito não existem ilhas desconhecidas. Ledo engano. Diz Freud imaginando uma conversa entre dois distintos sujeitos:
            “Vamos, deixe que lhe ensinem algo sobre esse problema! O que está em sua mente não coincide com aquilo de que você está consciente; o que acontece realmente e aquilo que você sabe, são duas coisas distintas. (...) Com frequência, também, acontece que você só obtém informação dos eventos quando eles acabaram e quando você nada mais pode fazer para modificá-los. Mesmo se você não está doente, quem poderá dizer tudo o que está agitando sua mente, coisas que você não sabe ou das quais tem falsas informações? Você se comporta como um governante absoluto, que se contenta com as informações fornecidas pelos seus altos funcionários e jamais se mistura com o povo para ouvir a sua voz. Volte seus olhos para dentro, contemple suas próprias profundezas, aprenda primeiro a conhecer-se! Então, compreenderá por que está destinado a ficar doente e, talvez, evite adoecer no futuro.”
Diante da fatídica dupla constatação de que os processos mentais são, em si, inconscientes; e que as pulsões não podem ser domadas, o rei perde seu trono; ou ainda, como afirma Freud: o ego não é o senhor da sua própria casaVoltemos nossa escuta mais atenta e flutuante à conversa entre o sujeito e o rei. Vamos fazer um exercício imaginário, fundamental para todo processo analítico, e deixar as associações reinarem livremente. Sentados ao lado de tal sujeito (delirante?), recém-chegados ao porto e abertos à uma viagem, o que será que pode nos atrair? Por onde devemos jogar nossas cordas (ou melhor, seria desatar os nós)? Vale a pena ficar jogando uma rede de significantes sem poder estar realmente atento ao sentido desta longa conversa entre um sujeito e seu rei? Que rei será este? E, uma última pergunta, talvez a única e fundamental: que deseja este corajoso sujeito?

Toda resistência tem um momento de afrouxamento ou ruptura. Frente a tanta persistência, o rei haveria de baixar a guarda e aceitar o pedido do homem que desejava um barco. Certo de que não mais havia ilhas desconhecidas e somente ilhas conhecidas, mas preocupado com a manifestação da vontade popular e com o que já havia perdido na “porta dos obséquios”, o rei levantou a mão direita a impor silêncio e disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás de arranjá-la tu, os meus marinheiros são-me precisos para as ilhas conhecidas.

Pronto, o pedido do homem que desejava o barco havia sido satisfeito, e agora? De posse da permissão do rei o homem vai em busca de sua ilha desconhecida, mas como? Antes de seguir viagem sozinho, ganha a companhia da mulher da limpeza, que já não via a hora de mudar de ofício e deixar de limpar palácios, sai de balde e vassoura pela “porta das decisões”.

Sentar ao lado deste nobre e corajoso sujeito, que desafia o tempo para pedir um barco, significa muito mais do que dar ouvidos ou atenção, cuidados ou recursos. Trata-se, sim, de oferecer um verdadeiro dispositivo clínico na contramão da concepção atual que determina que todo indivíduo tem o direito, e portanto, o dever, de não manifestar seu sofrimento, de não mais se entusiasmar com o menor ideal que não seja um bom medicamento para aliviar as suas dores. De posse do aparato psicanalítico, que insiste em nadar contra a forte correnteza neurobiológica, vamos oferecer o barco que tanto deseja nosso sujeito. Mais do que uma mera canoa que flutue com aparente segurança por mares turbulentos, ou pior, que deslize por profundas calmarias tediosas: nosso sujeito deseja um barco que comporte suas angústias, seus medos, seus desejos, seus conflitos. Contrários à ideia da busca incessante pela tranquilidade fictícia do sem dor ou crença da “felicidade”, esta embarcação lançará suas âncoras nas profundezas da subjetividade de sua ilha desconhecida. Assim, o acompanhar desta viagem, onde a bússola psicanalítica servirá como guia, terá como desafio o encontro recorrente com o motor da subjetividade: o conflito psíquico.

Somente o sonho será capaz de oferecer ao mesmo tempo um feixe de luz ao inconsciente e ao devir navegar. Sonhar e devanear sempre foram a mais preciosa produção humana. O sonho para Freud é a prova cabal do determinismo inconsciente. Se em Freud o sonhar tem como principal função garantir o sono de quem sonha, é como realização de desejo que o sonho ganha o status de linguagem e acesso ao conteúdo latente. Assim, em Interpretação dos Sonhos (1900), Freud apresenta de forma inequívoca a importância dos processos oníricos à luz da ciência psicanalítica. Revolucionário e radical, Freud desvela ao mundo científico o desconhecido da ilha conhecida por todos. Se até 1900 a existência da instância inconsciente era negada e repudiada por grande parte da classe médica; a partir desta, que é chamada a obra inaugural da psicanálise, o conteúdo inconsciente passa, então, a ser material de pesquisa e conflito. Aqui já não mais é possível negar o inconsciente, sonhar é do homem, logo cabe ao homem se haver com a interpretação dos seus sonhos. Freud iça sua âncoras, lança-se ao mar profundo do próprio inconsciente em sua auto-análise, viaja em busca das Índias e desembarca nas Américas. A ilha desconhecida do inconsciente continua a ser desconhecida, já que não existem mais ilhas conhecidas, somente ilhas desconhecidas. Freud, guiado pela inquietante sintomatologia histérica, embarca em sua metapsicologia e vai em busca da ilha desconhecida. Os sintomas serão seus primeiros portos. A análise do sentido dos sintomas leva-o em direção ao universo onírico dos sonhos e, com estes, parte em direção aos conteúdos recalcados. O infantil será seu destino primordial. Não a criança como entendiam seus críticos, mas a sexualidade infantil será seu norte principal. Ao pedir um barco ao rei, Freud ofereceu a toda uma cultura sua mais valiosa contribuição. Muito mais do que desvelar o inconsciente em cada um de nós, Freud revelou o determinante inconsciente no humano, assim como o poder da força pulsional e destruidora no seio da civilização. Nem mesmo o rei todo poderoso da consciência seria capaz de domar a força do desejo recalcado, que dirá a lisura de um sonho sonhado.

Em seu precioso texto, porém pouco comentado, Escritores Criativos e Devaneios (1908), Freud irá fazer o encontro entre a psicanálise e sua verdadeira obra. Para Freud a psicanálise é a única ciência capaz de desvelar o recalcado pela escuta do inconsciente. Mas são os escritores os privilegiados sujeitos capazes de brincar com as palavras como as crianças brincam no mais profundo universo infantil. Será então à luz da liberdade criativa dos escritores que Freud nos revelará o mais profundo e imperioso do inconsciente. É a partir da seriedade do brincar infantil que Freud apresentará o fantasiar dos escritores. A criança brinca seriamente, ou seja, cria seu universo de brincadeiras com toda a seriedade que a brincadeira merece, catexiza os objetos a sua volta com a força da imaginação afim de distinguir perfeitamente o brincar da realidade. Neste sentido a afirmação de que o brincar não é antítese do que é sério, e sim do que é real, ganha enorme força conceitual no texto de Freud. De posse deste conceito, Freud vai então nos apresentar o escritor criativo como aquele que brinca como as crianças, que ao criar um mundo de fantasia e leva-lo a sério, mantém uma nítida separação entre a fantasia e a realidade, onde a linguagem será a via da relação entre o brincar infantil e a criação poética. Diz Freud: “a criança em crescimento, quando para de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios.” (p.136). A linguagem portanto, com toda sua inigualável sabedoria, lançou luz sobre a natureza dos sonhos e iluminou os obscuros desejos inconscientes. Os ditos sonhos diurnos, devaneios, a partir de Interpretação dos Sonhos, ganham o reconhecimento justo da realização de desejos, passando a ser nomeados de fantasias. A psicanálise uma vez mais ilumina a ilha desconhecida e temida da loucura, dando o devido lugar ao estranho em cada um de nós. Assim, toda viagem que se possa imaginar tem como destino a ilha desconhecida do inconsciente e implica impreterivelmente no encontro com o estrangeiro que existe no horizonte de nossa existência. Esse estrangeiro que nos é familiar, essa ilha desconhecida onde só existem ilhas conhecidas, essa viagem regressiva que salta ao futuro, terá como guia o homem que deseja e sonha com um barco.

Se o início de nossa viagem teve o devaneio como ponto de partida, a liberdade do pensar criativo e o sonhar serão o porto de chegada. Volto ao comandante Freud para suas últimas palavras que não por acaso revelam o início deste ensaio: “Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua infância), do qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga.”(p.141) Antes de me despedir, gostaria de nomear a ética psicanalítica que norteia minha busca cotidiana às ilhas desconhecidas de meus pacientes, na qual a liberdade está no direito inquestionável de sonhar. Voltemos então ao barco de nosso fiel marujo à luz da poesia de José Saramago:


Desde que a viagem à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar, apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetecesse um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento, nada mais. As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la. Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.


 Rodrigo Blum, agosto de 2018

Rodrigo Blum - Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae -São Paulo-SP, Professor do curso Conflito e Sintoma do Instituto Sedes Sapientiae,  membro do GTEP - Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise do mesmo Departamento.


Referencias bibliográficas:

Freud S. (1908) “Escritores Criativos e Devaneios”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996; v.9.
Freud S. (1917) “Uma Dificuldade no Caminho da Psicanálise”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996; v.17.
Saramago, J. O conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras.

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