Sobre o evento Relações e objetos na Psicanálise: fundamentos e clínica

Nos dias 3 e 4 de agosto último o Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae promoveu o evento Relações e Objeto na Psicanálise: fundamentos e clínica, com a finalidade de debater o tema sob o ponto de vista histórico e crítico a partir de oticas conceituais diversificadas.

Maria Silvia Bolguese fez um pequeno relato da mesa 2, que contou com os psicanalistas Ana Maria Sigal, Christian Dunker e Elisa Ulhoa Cintra.


Sobre o evento Relações e objetos na Psicanálise: fundamentos e clínica

 Mesa 2: Pulsões, relações e objetos: contraste de concepções

“O tema das relações de objeto corresponde, na história da psicanálise, a um modo de compreensão das experiências psíquicas e afetivas dos sujeitos sempre em um campo intersubjetivo, incluindo aqui a relação transferencial.”

Apesar desse modo especifico de compreender a experiência psíquica e, consequentemente, a experiência psicanalítica, a intenção dos proponentes do evento Relações e objeto na psicanálise. Fundamentos na clinica foi a de promover uma discussão plural, não sectária – por que não dizer, menos infantil – sobre questões cruciais para a psicanalise contemporânea. A ideia era escapar do viés da tensão e do enfrentamento provocados pela crença de que o pertencimento a uma dada escola psicanalítica é suficiente para a formulação das respostas àqueles “velhos dilemas” que persistem vivos ao longo de mais um século de existência da psicanálise.

O titulo do evento já produzia assim uma ênfase interessante ao prescindir da preposição “de” entre as palavras “relação” e “objeto”. Longe de se constituir em um recurso meramente formal ou estilístico, a escolha do título do evento possibilitou que a pluralidade encontrasse espaço para produzir reflexão e pensamento. Assim, atravessamos as excelentes apresentações dos vários colegas que compuseram as três mesas do evento, e que buscaram refletir sobre o tema das relações, da objetalidade e da pulsionalidade, na medida em que trouxeram caminhos que poderiam ou não se contrapor para uma compreensão aprofundada acerca da constituição do psiquismo, base da teoria psicanalítica, incluindo-se, claro, a teoria da clínica.

Nesse sentido, comentarei aqui sobre as reflexões proporcionadas especificamente pelas apresentações da mesa 2, cujo objetivo era fazer falar as visões contrastantes e deixar que colegas psicanalistas de diferentes formações e percursos pudessem efetivamente (com)versar.

Em sua delicada reflexão, Elisa Ulhôa Cintra reivindicou com muita justeza a presença do pensamento de Melanie Klein e suas contribuições acerca das fantasias inconscientes em toda sua dimensão transicional, como fez questão de assinalar. Dialogando com Décio Gurfinkel, a partir do livro “Relações de objeto” (disparador da proposta de todo o evento), seu intuito foi destacar o quanto a objetalidade, a presença do objeto interno na constituição psíquica, pode ser pensada também como uma das contribuições fundamentais da obra kleiniana para os autores que escreveram sobre as relações de objeto, apesar do seu forte acento à importância da pulsionalidade e das disposições internas. A concepção freudiana acerca da dimensão pulsional na constituição subjetiva é acompanhada por Melanie Klein e, em certa medida, até radicalizada. Contudo, os objetos internos, as figuras materno/paternas são elementos fundamentais em sua teoria, não deixando a autora em sua clinica psicanalítica com crianças de incluir os pais e o ambiente como fundamentais para a construção dos espaços nos quais o psiquismo da criança pode se (re)constituir.

Ana Maria Sigal denominou seu texto de “Antropofagia do objeto: desconstrução e reconstrução”, dividindo sua exposição em duas partes. A primeira, bastante oportuna e relevante, destacou algumas de suas ideias advindas do seu longo percurso como representante do Departamento de Psicanálise no grupo Articulação. Perguntando, de saída, se em psicanálise poderia se afirmar quem tem a leitura mais justa ou interpreta melhor o legado de Freud, Ana chama atenção para o fato de que ninguém poderia ocupar este lugar. Existem múltiplas contribuições de diversos autores pós-freudianos que produziram e produzem avanços das reflexões no campo psicanalítico, mas quais seriam os elementos “inegociáveis” para se demarcar o que seria ou não seria psicanálise? A dimensão politica da discussão, assim, é explicitamente trazida para o centro do debate, revelando que é possível e desejável discutir as posições contrastantes. Contudo, diz Ana, os psicanalistas precisam se articular em torno de eixos fundantes, ocupando-se das questões que se impõem contemporaneamente, visando ao fortalecimento da teoria psicanalítica em tempos de constantes ataques, desfigurações e apropriações religiosas ou politico/religiosas. É preciso abandonar a compreensão binária das questões, imaginando que apenas uma ou outra posição expressa as respostas verdadeiras, para aprender a transitar na diversidade. Tomando-se os conceitos centrais, que ela chama de inegociáveis, sexualidade infantil e inconsciente entre outros, afirma que, assim como Freud, todo psicanalista deve ser um revisionista de sua clínica e de suas concepções. No segundo momento de sua exposição, Ana deixa clara sua concepção acerca da pulsionalidade e objetalidade na constituição do sujeito, argumentando que não se trata de fazer oposição entre o interno e o externo como determinantes do funcionamento mental. Acompanhando Laplanche, Ana ressalta que “a pulsão não é biológica (embora sua fonte seja corporal), mas o desejo da mãe ancorado e encarnado no corpo da criança; metabolizado, decomposto e recomposto. O desejo da mãe é “antropofagizado” até se fazer carne e fantasma no corpo da criança.” Não é então casual que Ana tenha revisto em sua clínica com crianças a presença/ausência dos pais no setting analítico, tendo passado a introduzi-los nas sessões junto com a criança.

Christian Dunker trouxe as contribuições de Lacan para pensar as relações de objeto e as implicações de natureza conceitual e também do método.  Retomando o livro de Décio Gurfinkel, concorda em parte com a concepção, ali defendida pelo autor, que estabelece dois paradigmas para pensar o desenvolvimento da teoria psicanalítica: o modelo freudiano pulsional, no qual a dimensão interna e corporal seria pregnante no psiquismo, e o modelo das relações de objeto, que defenderia, por assim dizer, a constituição de uma subjetividade compartilhada, definida previamente pelas relações de objeto, pela alteridade. Christian vai defender que a teoria lacaniana representaria um terceiro paradigma, já que Lacan não deixa de criticar os dois modelos aqui colocados. Ao fim a ao cabo, deixa claro que a teoria lacaniana não poderia ser pensada apenas como uma teoria das relações de objeto, mas muito mais como uma teoria que se ocupa a considerar a relação com a “falta” de objeto. Se, por um lado, o sujeito busca o objeto é porque, de outro, o objeto falta. Seria a partir dos modos de falta de objeto encontradas pelo sujeito - privação, frustração e castração - que Lacan vai desenvolver sua teoria das relações de objeto. A teoria lacaniana da relação com a falta do objeto sublinha a dimensão negativa e abre uma reflexão sobre a clínica do negativo.

Ao final, restava a sensação de que havia muitas possibilidades de discussão, muitos caminhos e oportunidades de pensamentos e reflexões, como chegou a mencionar alguém da plateia. Pulsão e objeto, fantasias inconscientes e transicionalidade, angústia e identificação, narcisismo primário e secundário. São polos que, se insistiam inicialmente em clamar a volta da  preposição “ou”, o que confinaria a discussão em uma dimensão puramente binária, como já havia alertado Ana Sigal, acabaram por ceder espaço, ao longo das exposições e da discussão que se seguiu, para um trabalho que manteve a tensão, o conflito e, até mesmo, a contradição provocada pelos movimentos regidos pela preposição “e”.  De fato, é preciso voltar com bastante calma a estes belos textos, que serão reunidos e publicados proximamente, mas que podem também ser revistos em vídeo disponível na Eventoteca do site do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae. Este texto tem a intenção de incitar esta retomada, pois tais falas merecem ainda um intenso trabalho, tanto pela complexidade das questões abordadas, quanto pela possibilidade não muito frequente de que posições contrastantes gerem condição de criar diálogos e produção conjunta. Entre sujeito, objeto e falta de objeto, fica colocado o trinômio a partir do que se necessita prosseguir pensando.  Sem dúvida alguma, avançamos.

Maria Silvia Bolguese é psicanalista, membro e professora do curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, e colunista do Blog do Departamento. É autora dos livros “Depressão & doença nervosa” (Via Lettera, 2004) e “O tempo e os medos. A parábola das estátuas pensantes” (Blucher, 2017)

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