Como os beduínos

O Blog do Departamento publica hoje um texto da colega Mara Selaibe, com interessantes reflexões sobre sua apresentação no grupo de trabalho Inquietações da Clínica Cotidiana, pensando neste como um dispositivo coletivo de construção imaginativa sobre nossas clínicas.

 Como os beduínos

Mara Selaibe

                                                                                                             

Você apresenta um fragmento, uma sessão clínica, em estado bruto. Não deve fornecer para a assistência dados da história de vida da pessoa em atendimento e nem nada sobre o processo de análise em movimento. Quem estará presente? Colegas..., no máximo 25. Depois de você falar, os colegas falarão e você escutará. Mas terá tempo, ao final, para suas considerações e para falar do atendimento livremente! E, claro, tudo se dará online.

Nada fácil. Nada muito conhecido. O modelo de apresentação e discussão clínica de caso, ou o modo de expor publicamente um fragmento clínico, com o propósito de discutir uma postura teórico-clínica do analista à frente de um atendimento, são ambos classicamente utilizados, todavia distanciam-se da forma acima descrita.

É essa a consigna proposta pelo Grupo de Trabalho Inquietações da Clínica Cotidiana. Esse Grupo tem mais de duas décadas de existência; trata-se do GT mais antigo em atividade no nosso Departamento. De certo, essa experiência acumulada nos fornece a referência necessária para aceitar um convite tão provocativo! Ao menos foi essa consideração a responsável primeira por eu topar o convite e seguir. Assim, estive à frente do encontro do Inquietações... no dia 20 de maio último. Decidi agora escrever no BLOG para compartilhar algo com os leitores no depois do calor da hora.

Enquanto considero qual dentre minhas inquietações (elas sempre são muitas!) será própria para esse espaço, imagino como receberei as colocações dos presentes diante de um material tão vastamente trabalhado (no processo de condução da análise) e tão minimamente exposto ali, em 30 minutos máximos... Nada a ver com uma supervisão, está claro. Ao redigir trechos da sessão, eu mesma noto linhas presentes no meu relato, descortinadas apenas agora, pela ponta do meu lápis. E já começo a vislumbrar alterações naquela inquietação inicialmente considerada. Tudo bem, isso faz parte! Prossigo. Ao finalizar, durante a releitura, me dou conta de já ter feito o primeiro nível do trabalho de elaboração incluído numa apresentação. Ótimo! Já está valendo!

Mas ainda assim, como poderei escutar os presentes se manifestarem a respeito do exposto se as ideias trazidas ficarem distantes do meu raciocínio clínico? Explico depois para o colega? Justifico? Não... Esquisito... Para que poderia servir? E se não entenderem a minha inquietação? Trabalho perdido? Se ela já se tornou para mim mais nítida desde a escrita, perdida não estará. Além do mais, alguns hão de chegar junto...

Por essas interrogações e ponderações fui me pautando até compreender o cerne da experiência anunciada. A consigna proposta pelo GT contém um nível sutil a ser apreendido. De fato, não se trata unicamente de uma apresentação com fins destinados a quem apresenta o fragmento de sessão, para que esse elabore sua inquietação. Trata-se de um grupo de colegas presentes e dispostos, sim, a elaborar, a partir de um atrator estranho (o meu relato, nesse caso), algo de suas próprias e íntimas considerações teórico-clínicas. E isso vale inclusive para mim, estando à frente e oferecendo o relato-atrator de pensamento. O relato opera feito um resto diurno e se liga com algum desejo de saber, articulado a uma espécie de impulso investigativo de cada qual e que, arregimentados grupalmente, são fortalecidos num trançado conjunto. Portanto, todos os presentes são convocados a participar como se fora a elaboração coletiva de um sonho; não de um sonho, mas de pequenos estratos de sonhos sonhados por cada qual, ali: tantos sonhos quantos participantes estiverem presentes e trabalhados com as participações de todos. Todos se escutam e acabam por ter de confrontar suas ideias diante das ideias de todos. Uma confrontação eximida de chegar a um ponto qualquer. Uma confrontação de fato íntima a cada qual, juntamente com e diante dos outros.

Ouvi dizer, há décadas atrás, que os beduínos vão se deslocando pelo deserto e à noite as mulheres e crianças dormem numa mesma tenda, todas juntas. Alguém tem um sonho e desperta; conclama as companheiras. E, então, se põem a elaborar aquele sonho conjuntamente, falando cada uma à sua vez. É parte do coletivo, já não é de ninguém em particular. E assim, um tanto envoltos nesse modo feminino desses berberes, processamos o tal material clínico bruto apresentado por mim no encontro. Saímos de lá cansados pela intensidade da tarefa, mas satisfeitos por levarmos conosco, cada um consigo, uma reelaboração conjunta daquilo mesmo que, à sua maneira, tinha podido trazer.

Mara Selaibe é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae e articuladora de Relações Externas do Conselho de Direção - gestão 2021/2023 do Departamento de Psicanálise.

Comentários

  1. Não pude estar nessa apresentação, mas gostei de ler suas construções a respeito desse espaço. Muito bonita sua imagem dos beduínos e do sonho partilhado. Parabéns pela delicadeza do texto

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  2. Mara, que relato bacana e estimulante para futuros encontros!obrigada por compartilhar!bjs

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  3. Mara querida: acrescento que seu texto permitiu que estes restos de sonhos elaborados conjuntamente se estendessem até outros encontros do Inquietações. Pude me sentir envolvida num coletivo maior que inclui tanto os encontros que assistí quanto o do qual participei, e agora o seu, que não pude ver, mas vi. Valeu! Beijo

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  4. Nanci, amiga! que ótimo! obrigada. bj

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