Crônica de uma Andarilha na Pandemia

Marcia de Mello Franco nos presenteia com sua poesia em tempos duros de pandemia. Confira hoje no Blog do Departamento.

CRÔNICA DE UMA ANDARILHA NA PANDEMIA

Parecendo um inseto, de máscara bicuda e óculos de sol, saí para caminhar no sábado ensolarado. Na primeira esquina em que virei já avistei um grupo de pessoas enfileiradas olhando para cima. Alguém estaria prestes a saltar pela janela? Um incêndio em algum prédio? O super-homem? Não... Eram três saguis, andando alegremente pelos fios de eletricidade e fazendo acrobacias. As pessoas sorriam encantadas por baixo de suas máscaras. Afinal, estávamos em Perdizes, bairro bastante central da cidade.

Esta cena me remeteu a outra vivida há umas duas semanas atrás. Passava pelo Sedes, lugar onde entrei tantas vezes para trabalhar ou estudar, e vi um casal em cima do muro, colhendo abacates da árvore do prédio ao lado. _- “Vocês têm até equipamento!”, eu disse a eles ao vê-los usar uma haste com uma cesta na ponta. A mulher me ofereceu dois abacates que tirou de uma sacola já cheia deles. Eles pesavam um pouco e eu, que andei sentindo dores no ombro (o tempo passa!), resolvi aproveitar para fazer os exercícios que a fisioterapeuta me recomendara. Em plena rua, acabei me divertindo com minha bizarrice, ao fazer amplos círculos com os braços que sustentavam um abacate em cada mão.

Quando acabava de me lembrar desta cena, já havia caminhado mais uma quadra e ouvi uma mulher falando muito alto. Ela olhava para a rua Cardoso de Almeida enquanto fazia um discurso inflamado. Com voz firme, gritava coisas como: - “Você está ciente do crime que cometeu?”. O português era impecável e a linguagem lembrava o discurso jurídico. Eu me simpatizei com aquela mulher e pensei que, em tempos de Moro e STF, o discurso jurídico retornava na forma do discurso delirante daquela mulher... Quem será que ela denunciava?

Mais meia quadra em direção ao Pacaembu e uma senhora assustada comenta comigo: - “Você viu aquela mulher? Ela quebrou uma placa! Deve ser droga, né?”. A resposta saiu de dentro do Caps-AD onde trabalhei tantos anos: - “Pode não ser... não é difícil ficar louco na rua...”. Ela ergueu as sobrancelhas como quem se detém para pensar e seguimos.

No restante do meu percurso eu tive muito no que pensar. A primeira conclusão é que eu amo a rua, espaço em que alguém pode enlouquecer, mas onde também pode haver encontros e encantamento. Que cidade é essa que apareceu para mim nessas poucas quadras? Será que, quando saímos do isolamento, encontraremos mais saguis e colheremos mais abacates? Tomara que eu possa encontrar, ao menos, muitos jacarés pela rua...

Por isso que eu gosto de dias ensolarados, eles trazem esperança.

SP, 24 de abril de 2021

Márcia de Mello Franco é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e professora do curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea do Instituto Sedes Sapientiae. 

Comentários

  1. Que lindo, a beleza está nos olhos de quem vê, algo tão insignificante para alguns torna-se tão enriquecedor p outros
    Adorei !!!! Parabéns

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom que gostou, Ivone! Obrigada! De fato, nestes tempos tão sombrios, faz bem estar aberta ao inusitado e incluir novos elementos no olhar...

      Excluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. Enquanto a gente conseguir ver abacates, saguis e jacarés pelas ruas, Marcia. há esperança!
    Que paz te ler!
    Adorei

    ResponderExcluir
  4. Muito bacana, Márcia!! Uma bela caminhada, parabéns!!
    Bjs

    ResponderExcluir
  5. Que bom te encontrar nesta caminhada, Daniel! Obrigada!

    ResponderExcluir
  6. Sair para a Rua , abrir-se para o Mundo ...
    Neste momento, ir para Rua é poder gritar para o mundo !

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Gaza como Metáfora

Destraumatizar: pela paz, contra o terror

‘Onde estava o Isso, o Eu deve advir’: caminhos da clínica contemporânea por René Roussillon