O Negacionismo como Defesa e Ideologia

"Como tantos de nós, eu me pergunto o que pensam as pessoas que se enrolam em bandeiras do Brasil para pedir nas ruas a volta do “voto impresso e auditável”. Aparentemente, acreditam que haverá fraude em 2022 se a urna eletrônica não produzir uma espécie de recibo com o nome dos candidatos escolhidos. Não existe qualquer apoio na realidade a essa fantasia paranoica. Desde 1996, a urna eletrônica tem se mostrado perfeitamente confiável, e, quando houve dúvida, facilmente verificável, eliminando a possibilidade de fraude. Esses são os fatos. Os críticos da urna eletrônica - Bolsonaro à frente, os blindados das Forças Armadas logo atrás -, jamais conseguiram contestá-los. Quem vai às ruas, portanto, está disseminando uma mentira e atuando como coadjuvante numa farsa."

Ivan Martins, jornalista e psicanalista discute o negacionismo como defesa e ideologia . Confira:

O NEGACIONISMO COMO DEFESA E IDEOLOGIA

Como tantos de nós, eu me pergunto o que pensam as pessoas que se enrolam em bandeiras do Brasil para pedir nas ruas a volta do “voto impresso e auditável”. Aparentemente, acreditam que haverá fraude em 2022 se a urna eletrônica não produzir uma espécie de recibo com o nome dos candidatos escolhidos.

Não existe qualquer apoio na realidade a essa fantasia paranoica. Desde 1996, a urna eletrônica tem se mostrado perfeitamente confiável, e, quando houve dúvida, facilmente verificável, eliminando a possibilidade de fraude. Esses são os fatos. Os críticos da urna eletrônica - Bolsonaro à frente, os blindados das Forças Armadas logo atrás -, jamais conseguiram contestá-los. Quem vai às ruas, portanto, está disseminando uma mentira e atuando como coadjuvante numa farsa.

O que isso tem a ver com a psicanálise?

Para além das questões levantadas em “Psicologia das massas e análise do Eu”, que dá pistas sobre a relação emocional entre Bolsonaro e seus seguidores, gostaria de propor um outro olhar para o cenário brasileiro, centrado no fenômeno do negacionismo.

A esta altura, estamos todos familiarizados com o negacionismo bolsonarista. Contra todas as evidências científicas, Bolsonaro nega a gravidade da pandemia de coronavírus, nega a necessidade de isolamento social, nega a utilidade do uso de máscaras e, por muito tempo, negou a urgência de uma ampla campanha de vacinação. O resultado dessa ruptura com os fatos pode ser medido em centenas de milhares de mortes por Covid que poderiam ter sido evitadas.

O negacionismo bolsonarista também recusa as evidências de aquecimento global, ignora a presença do racismo na cultura brasileira, sustenta que a ditadura militar não matou inocentes e insiste que as urnas eletrônicas são facilmente fraudáveis.

Descontados o cinismo e a desfaçatez -  presentes de forma evidente no discurso de Bolsonaro e de seus aliados no poder - como entender a atitude das pessoas comuns, aquelas que seguem de boa-fé o messias da extrema direita em sua cruzada contra a realidade?

Minha sugestão é que o negacionismo evoluiu de um mecanismo individual de defesa psíquico – a recusa - para uma forma de ideologia coletiva.

O mecanismo psíquico da recusa foi descrito por Freud em O fetichismo (1927). Ao constatar a ausência de pênis na mãe, alguns meninos evadirão o temor da castração negando-se a confrontar as consequências emocionais do que viram. A consciência intelectual da ausência do pênis irá conviver no psiquismo com a negação emocional dessa mesma realidade, numa situação paradoxal que Octave Mannoni resumiu na fórmula famosa: “Eu sei, mas...”.

Esse modelo dissociado de funcionamento psíquico, que substitui o conflito e a culpa pela convivência alienada dos contrários – recusando os limites impostos pela ameaça da castração – constitui a base das personalidades perversas.

Minha sugestão é que o negacionismo oferece a possibilidade de exteriorizar essa personalidade (ou estrutura) num projeto coletivo que opera em escala inédita com a recusa de pedaços da realidade. O negacionismo articula aspectos do psiquismo individual e da cultura, oferecendo um discurso racional (e de sentido social) para moções pulsionais que, de outra forma, quedariam inarticuladas. Logo, funciona como ideologia.

Se a pandemia oferece um obstáculo ao projeto econômico e eleitoral do bolsonarismo, será negada e ridicularizada. Se as queimadas na Amazônia evidenciam a destruição catastrófica do meio-ambiente, serão tratadas como mentiras. Se a urna eletrônica vira obstáculo aos planos de reeleição de Bolsonaro, será posta em questão.

Os fatos são secundários nessa forma de operação do pensamento. Eles convivem confortavelmente com desejos que vão na direção oposta. No fundo, o bolsonarista sabe que não há possibilidade de fraude na urna eletrônica, mas ele vai às ruas assim mesmo, porque a crença esdrúxula no voto impresso o gratifica narcisicamente.

É importante ter em mente que o perverso, mais do que ninguém, sabe como gozar. Aquilo em que todos acreditam, a norma que todos seguem, não faz sentido para ele. As fontes de informação bolsonaristas, por duvidosas que sejam, são portadoras de uma verdade secreta que apenas os iniciados compreendem.

Talvez se deva perguntar, a partir daí, se o negacionismo triunfante da extrema direita é fruto somente da disseminação em larga escala de fake news. Pode ser que as mentiras circulem nesse grupo social por terem encontrado um ecossistema psíquico no qual são bem recebidas. Os bolsonaristas, afinal, escolhem se informar de forma particular e especiosa, em vez de recorrer aos meios que a maioria da sociedade utiliza.

Essa explicação – o negacionismo como defesa psíquica e ideologia – não traz grande novidade à compreensão do que nos cerca, mas ajudar a eliminar algumas hipóteses. Uma delas é que parte da sociedade brasileira tenha se tornado, repentinamente, incapaz de distinguir os fatos da ficção grosseira. Não é o caso. Os bolsonaristas sabem que operam com uma realidade alternativa, mas para eles está bem. A situação é psiquicamente confortável.

Outra hipótese a ser descartada é a possibilidade de esclarecer essa ruidosa minoria. Uma vez que o mecanismo de recusa se instala, ele protege seu portador do desprazer provocado pelo contato com a realidade adversa. O negacionista não vai renunciar ao seu prazer libidinal. Se agarrará às fantasias até o limite do impossível.

Por fim, fica a hipótese de que uma ideologia amparada em traços psíquicos tende a ser mais duradoura e daninha que um mero modismo eleitoral. Ela precisa ser derrotada, mas não desaparecerá. O exemplo dos Estados Unidos, onde Donald Trump, mesmo afastado da presidência, ainda lidera uma vasta e influente facção negacionista, sugere um cenário inquietante para o Brasil.

Ivan Martins é psicanalista, jornalista e autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”. 

Comentários

  1. Muito bom seu texto, Ivan. Esclarecedor de porque é impossível argumentar com essa parte da sociedade brasileira. Obrigada

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