Entrevista de análise em tempos de pandemia

 

Fundadora do Blog, nossa colega Fernanda Borges discute, com sensibilidade e do ponto de vista do analista, questões da clínica sobre as primeiras entrevistas em tempos de pandemia.

ENTREVISTA DE ANÁLISE EM TEMPOS DE PANDEMIA

Outro dia, em uma conversa, uma amiga psicanalista comentava de seu mal-estar em receber para primeiras entrevistas de análise pessoas que estavam entrevistando mais de um psicanalista, às vezes até 3 ou quatro. Recentemente passei por experiências semelhantes. A situação não é inédita, entretanto, no passado, parecia menos frequente.

A pandemia deflagrou uma onda de sofrimento: a vida passou a ser questionada, o home office aproximou as famílias, mas também foi responsável pelo aumento no número de divórcios e de violência doméstica. A não divisão entre trabalho e casa aliado ao isolamento social e ao fechamento das atividades de lazer habituais produziram um aumento de horas trabalhadas e de casos de burnout. Vimos aumentar o número de pessoas com queixas de insônia, desânimo, cansaço e desesperança ou com sintomas de depressão. Além disso, a popularização do modelo de atendimento remoto produzido pela pandemia também parece ter colaborado com o aumento da demanda por psicoterapia dada as suas conveniências (não perder tempo com deslocamento ou engarrafamentos ou poder ser atendido em qualquer lugar – casa, trabalho e outros lugares pouco convencionais).

Fato é que a saúde mental vem ganhando destaque e tomando a cena nas conversas cotidianas, nos meios de comunicação, nas redes e mídias sociais, nos podcasts, na multiplicidade de serviços oferecidos (aplicativos, plataformas de atendimento online etc) para todos os gostos e bolsos.

Com o aumento da demanda, em um ano e meio, o número de entrevistas iniciais em nossos consultórios aumentaram também. Daí podermos pensar que esse tipo de situação menos comum parece mais frequente porque a frequência de entrevistas iniciais aumentou. Por outro lado, o número de profissionais “psi” cresceu:  nos últimos anos o curso de psicologia entrou para o rol dos mais disputados no vestibular, multiplicaram-se as instituições e cursos de formação em psicanálise, assim como as linhas de terapias e o número de terapeutas alternativos. Natural que em meio a tantas ofertas, o sujeito em busca de cuidado para seu sofrimento psíquico queira descobrir o método que lhe pareça melhor convir e fazer sentido. Frente a esse cenário, gostaria de fazer algumas considerações e lançar algumas questões aos meus colegas e àqueles que estão em busca de psicoterapia.

A psicoterapia de modo geral requer do psicoterapeuta um trabalho cuidadoso e delicado. Na psicanálise tal trabalho conjuga uma série de variáveis, das quais podemos rapidamente destacar: um certo modo de estar com o outro (neutralidade, atenção flutuante, um certo “estado de espírito”, “sem memória, sem desejo”, um certa implicação – analista implicado), numa certa situação (setting, contrato de trabalho que inclui regras de funcionamento e o método a ser empregado – a associação livre) que delimita um campo analítico determinado, com um certo tipo de escuta (escuta empática, escuta flutuante)  e um certo saber fazer (interpretação e manejo) com o que se escuta. Trabalho cuidadoso e delicado que muitas vezes se assemelha ao trabalho artesanal, com um tempo e um ritmo próprio (muitas vezes avesso à produtividade da “sociedade do desempenho”), cuja técnica e resultado se aperfeiçoam com os anos de prática e formação (estudo, análise e supervisão).

Mas retomemos o nosso ponto de partida. Dias depois daquela conversa com minha amiga, retomei o assunto com outros colegas de um grupo de estudos. Alguns deles passaram por situações parecidas. Trocamos algumas impressões e brincamos que às vezes nos sentíamos como se fôssemos meros objetos de orçamento: algumas pessoas nos procuravam como quem pesquisa preços para comprar um móvel, um sofá ou um piso novo para instalar na sala de estar. Embora estejamos no âmbito do consultório privado, inseridos na lógica econômica vigente, esse jeito de procurar análise como quem procura uma mercadoria pode causar algum estranhamento quando consideramos esse aspecto mais artesanal do nosso fazer.  Tal estranhamento não deve nos fazer esquecer que o modo como o sujeito se apresenta já nos comunica sobre o modo como ele se relaciona e de como sofre (páthos) as relações, e que desde o primeiro contato, a transferência está em jogo e temos de estar prontos (ao menos preparados) para lidar com ela; desde o início somos convocados a uma compreensão analítica.

Gostaria de dividir uma outra situação particular vivida por mim para pensar um outro aspecto das entrevistas iniciais. Trata-se da vez em que fui a terceira psicoterapeuta entrevistada e na qual tive a impressão de que o sujeito parecia um tanto “esvaziado” e sem muito a dizer, o que me fez refletir se isso não seria efeito dele ter passado por outras situações semelhantes, exposto seus problemas, questões e motivações num intervalo curto de tempo. Talvez passe desapercebido a essas pessoas que falar de si e de suas dores para pessoas estranhas numa situação de entrevista com um psicoterapeuta não é algo trivial, simples e do qual se sai ileso. Na maioria das vezes, nada com o qual o sujeito não possa lidar, mas não podemos deixar de reconhecer que não se sai do mesmo modo que se entrou depois de uma entrevista de psicoterapia! Afetos são mobilizados e isso em si já é alguma coisa.  

Essa experiência me fez recordar uma recomendação técnica e de um tipo de ocasião similar à busca pela psicoterapia, a consulta médica. Recomenda-se que nas primeiras entrevistas o analista esteja mais à escuta e só venha intervir após o estabelecimento do enquadre e do vínculo terapêutico. Talvez, no momento atual, diante de pessoas que passam por muitas entrevistas, tal recomendação seja ainda mais importante no sentido de “proteger” os candidatos a analisandos. Por outro lado, quando nos é dada apenas a oportunidade de uma única entrevista, não seria um desafio mostrar pela experiência o que é a escuta e o trabalho analítico? Em certo sentido, não podemos ignorar uma certa pressão implícita exercida pelo mercado e pela lógica concorrencial de equiparar a primeira entrevista a uma espécie de “amostra grátis”.

Em relação à consulta médica, podemos pensar em como procedemos quando estamos à procura de um médico. Falamos com conhecidos da área, pedimos indicações à pessoas de nossa confiança ou buscamos referencias que nos passem segurança (por exemplo, formação e experiência na área). Se na primeira consulta nos sentimos bem atendidos, se o médico nos passa confiança, seguimos com ele. Eventualmente, procuramos uma segunda opinião. No entanto, desde o início, a relação médico paciente difere, até porque a natureza dos trabalhos é diversa. As consultas médicas são sempre pagas. A prática da entrevista inicial sem compromisso talvez tenha se incorporado de maneira meio automática entre alguns psicólogos e psicanalistas. Em geral, não costumamos informar valores por telefone ou WhatsApp, mas sim num primeiro encontro e, por isso, se considera não cobrar por ele. Recém-formada adotei essa orientação dada pelos meus professores e supervisores sem muitos questionamentos e, mais tarde, assumi tal prática por achar que valia mais saber o que é uma análise através de uma experiência (a primeira entrevista) do que por uma explicação teórica e formal fora de um relacionamento interpessoal. Além disso, as entrevistas são importantes na construção de uma aliança terapêutica positiva e pode indicar se entre aquele que procura análise e o analista que o recebe será possível o desenvolvimento de uma relação empática e de um vínculo transferencial elementos importantes para a construção do trabalho analítico.

Mais do respostas ou afirmações, essas são apenas algumas primeiras considerações que podem levantar questionamentos e uma revisão sobre os procedimentos adotados as vezes de modo automático e sobre como conduzir a primeira entrevista levando em conta não somente as questões teóricas (o que exige uma maior aprofundamento que não me porpus a fazer nesta breve reflexão), o cuidado com as pessoas que nos procuram em sofrimento,  o cenário atual e as pressões e tensões econômicas e mercadológicas.  

  

Comentários

  1. boas questões, Fernanda. Não é tão nova essa prática de fazer entrevistas com mais de um analista. Vivi isso no início de minha prática clínica

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  2. Ana Maria Siqueira Leal
    Fernanda, gostei de seus questionamentos, me fizeram pensar!

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  3. Muito boas as suas observações, Fernanda. Penso, inclusive, em que medida o que vc descreve não é efeito dessa estranha (para mim) prática de primeira entrevista gratuita, por parte de analistas. A difusão das "experimentações de primeiras entrevistas" não seria, justamente, resposta à lógica da "amostra grátis"?

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