Impressões sobre o evento Experiências Transidentitárias – ressonâncias no campo clínico-político, familiar e social,

Janete Frochtengarten, colega do Departamento de Psicanálise, relata de forma sensível suas impressões sobre o evento Experiências Transidentitárias – ressonâncias no campo clínico-político, familiar e social, realizado pelo Grupo Generidades do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae no dia 23 de outubro deste ano, um acontecimento forte, intenso, que abordou questões importantes para todos que se dedicam à escuta humana.

O evento “Experiências Transidentitárias – ressonâncias no campo clínico-político, familiar e social” realizado pelo Grupo Generidades do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae aconteceu no dia 23 de outubro deste ano.

Um acontecimento forte, intenso, que repercutiu até mesmo no dia seguinte, um domingão, em mensagens/Whatsapp que voavam, febris, entre colegas e amigos.

Começando...

Alguns pontos de vista divergentes vindos de textos de psicanalistas nos anos – nem tão longínquos – da década de 2010.

Michel Schneider e Pierre Legendre (2007) postulam que as transformações que vem ocorrendo no campo da sexualidade e da família são negativas, pois há certas coordenadas universais a-históricas que não podem ser ultrapassadas sem grande custo para a subjetivações[1].

Na contramão:

Geneviève Delaise de Parseval (2008) adota uma posição que implica na necessidade de ir além do modelo de Édipo forjado na época em que a maioria das famílias eram formadas por mãe, pai e filho e de identificações com dois pais de sexos “naturalmente” diferentes, e com dois pais apenas[2].

E Michel Tort (2007) convoca-nos a pensar em múltiplos Édipos possíveis, no compasso do caminhar histórico.

Generidades, o grupo de trabalho de nosso Departamento, que realizou o evento, imerso que é nas transformações ao longo dos tempos, enfrenta o inexorável efeito destes na prática e na teoria psicanalítica.

Então, colegas, tenhamos fôlego e vamos... Maya Foigel, mediadora, ao abrir o encontro, propõe – nada mais, nada menos – bagunçar os pensamentos fixos que se propõem como verdades absolutas sobre as sexualidades.

Às falas iniciais dos convidados (selecionadas a meu modo), convidados bons bagunceiros que aceitaram de imediato participar, acrescento as respostas por eles dadas ao longo do evento:

Convidados

Eduardo Leal Cunha inicia lançando a instigante pergunta: qual o lugar da psicanálise face às experiências transidentitárias?

A resposta vai sendo encaminhada através da contestação da psicanálise que patologiza, que busca “o que deu errado” na história do sujeito, que adota a posição de intérprete, de deciframento, no contexto de um saber soberano. Marca também que a psicanálise vem se recusando a entrar em contato e a levar em consideração os importantes aportes de outras disciplinas que tem se voltado ao estudo das sexualidades. Uma psicanálise que permanece fechada em sua automanutenção.

Mas, como reconhecer outros modos de viver que não sejam categorizados?

A resposta fundamental enfática é: escutando! Admitindo o incômodo, o difícil que é viver a experiência de acolhida das transexualidades, abandonar os conhecimentos prévios. Eduardo propõe fornecer uma rede de proteção, em um espaço de experimentação, no qual se possa produzir e legitimar as possibilidades de vidas singulares.

Hospitalidade, Eduardo nos diz. A dádiva da hospitalidade. Acolher o estrangeiro, o que nos é inédito; acolher o que neste é intrusivo e sustentar essa invasão.

Sem recusar o que precisa ser revisto na psicanálise – o que já está assinalado e assumido desde a abertura pela mediadora do evento, temos endossado essa fala de Eduardo, a não conformidade com a psicanálise das normatividades.

Maya (e outros colegas do público) chama reiteradamente a atenção para o fato de que, justamente, a realização do encontro é dar voz e vez à psicanálise pensada e praticada de outra forma, expondo-se aos riscos de ser questionada fortemente.

E, aqui, entra uma consideração sobre hospitalidade. Quando se hospeda (como, no caso em questão, o Departamento de Psicanálise), por vezes recebe-se posicionamentos vigorosos e até mesmo caricaturais. Podemos pensar que essa seja uma forma de resistência ético-política. Ainda assim, quem hospeda também gostaria de experimentar, na troca que se estabelece, o prazer de se sentir escutado.

Aqui, uma aposta. Esperançamos que sim, que tenhamos sido escutados; assim sendo, o sabor da conversa, aquela que todos desejamos, permanecerá nos dando alento.

Coraci Ruiz

Mãe, documentarista, realizadora, entre outros, do delicado Limiar (2020), Coraci nos fala sobre seu processo de acompanhar afetivamente a filha em seu caminho de transição para Noah, o nome escolhido por ela para poder ser o menino que ansiava ser.

Acompanhar e filmar desde o início, o angustiado questionamento que Noah faz sobre seu gênero, ocorre em um exitoso diálogo mantido ao longo de anos. Nada fácil! Coraci diz que, em um determinado momento pergunta à Noah: “Não dá para você ser uma menina masculinizada?”. A pergunta, depois, deixa Coraci perplexa: como foi possível essa proposta? Bem, pensamos, a mãe também estava em transição...

Todos que viram o filme[3] e o comovente depoimento de Coraci puderam compartilhar da doação sensível, do respeito, do amor que reveste a dupla mãe e filho. Frente à pergunta dos colegas a respeito da ausência do pai ao longo do filme, Coraci responde que, tanto o pai biológico, quanto o seu companheiro atual do segundo casamento, a avó e o avô, todos fortemente implicados, foram periodicamente consultados, acompanhando e aprovando. Sim, na resposta de Coraci o pai está. Mas, a partir desta ausência notada, há abertura para pensar na presença de um terceiro não encarnado em uma tradicional figura paterna. Ir “além do Édipo”, “outros Édipos” possíveis, mencionados no início desse texto.

Coraci também nos conta da dificuldade da dolorosa hesitação em assinar o documento que permitiria a Noah o início da hormonização, e também, a aceitação da mudança de nome. Nesta turbulência, houve, para a dupla, a importante receptividade de um ambulatório multiprofissional que atende às demandas de mudança de gênero.

Noah, agora já um jovem adulto, mora sozinho, cursa uma faculdade de sua eleição e está bem. Noah e Coraci tem um projeto de realizar um outro filme que abordaria a sua vida atual. Aguardamos!

O documentário passa a ser, tal como um propulsionador de pensamentos, citado, aqui e ali pelos demais convidados – mais uma sinalização da capacidade deste de atingir, de imediato, fertilizando.

Luca Scarpelli

Luca se apresenta – “sou publicitário, youtuber, homem trans”. E continua a falar, direta e limpidamente. Acentuo:

- A linguagem falta, a linguagem frustra quando frente às perguntas: o que é ser homem? O que é ser mulher? E suas derivações: como você sabe que é mulher? Como você sabe que é homem?

- Vendo Noah, no filme, fica ainda mais evidente a precariedade da linguagem. Posso dizer: a sensação de gênero é algo implacável! “Sou porque sou”. “Sou porque sinto”.

- A grande sacada do documentário é o transitar. A transição não é estanque, ela não acaba.

- Tenho 31 anos. Há cinco ou seis anos comecei a transição: a hormonização, a mastectomia e fui me dando conta que esta não é definitiva. Não se trata de um começo – meio – fim. Isso é assustador. Estou feliz com meu corpo agora, mas mais adiante, não sei...

- A identidade de gênero e sua expressão não são marcadas em pedra.

- Estamos vivendo a pós-modernidade, com a fluidez de gênero, mas com necessidades classificatórias da modernidade. Uma defasagem que nos permeia.

- A discussão sobre trans é uma discussão coletiva. Como as pessoas cis podem achar que essa discussão não é delas? Ela é sobre a liberdade da humanidade. Ariel Nobre, cineasta diz: “quando uma travesti dá um passo, todos damos”. Um passo que ecoa na cultura, um passo para que um menino possa, sem alarde, brincar com boneca e uma menina com carrinhos.

- Frente a uma pergunta do público de por que LGBTQIA+, por que as caixinhas? Já que se trata de não as ter? Por que não falar apenas gêneros fluidos? Luca responde: porque por enquanto é preciso. Porque há marcadores de gênero a serem preenchidos nos protocolos dos planos de saúde. Como me apresento? Como homem, como marcar ginecologista?

A defasagem na vida cotidiana... Mas, Luca acredita: um dia chegará!

Terminando

Em uma das falas de Eduardo, sobre o impossível das autodesconstruções, ele sublinha que a desconstrução vem da recepção do outro em nós.

Maya, concordando, nos diz: sim, é complicada a autodesconstrução, mas há que apostar no poder transformador dos processos coletivos.

Eis aí o evento!

Janete Frochtengarten é psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae



[1] Referências extraídas do texto “Família, filiação e paternalidade: novos arranjos, novas questões”, de Mariana Ferreira Pombo, publicado na Revista Psicologia USP (2019).

[2] Idem.

[3] Coraci da as indicações para ter acesso ao filme ao final de sua participação; a gravação do evento está no site do Departamento e direto no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=hR3RsBlJnNk.

Comentários

  1. Lindo e potente! Obrigada Janete por nos reportar!

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  2. Que bom, Janete, que vc escreceu construindo seu depoimento recolhendo as participações. quem não pode assistir ao evento tem a oportunidade de recuperar algo dele aqui!ótima retomada!

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  3. maravilhosa apresentação Janete! foi possível apreender a potência deste encontro e a consistência das posições e reflexões! obgda

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  4. Boa, Janete, muito fiel a sua reportagem. Fiquemos com as perguntas por enquanto que, sem perceber, estaremos vivendo algumas das respostas! (Rilke)

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  5. Que bom, Janete, que você tenha escrito sobre esse encontro. Tão rico e tão inquietante. Feliz destaque à hospitalidade; ato generoso de acolhida, como teve Coraci a Noah.

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  6. Querida Janete
    A sua hospitalidade, generosa e genuína, se comprova, ainda quando , com gentileza, a crítica se faz presente ao acolher o estrangeiro. O tema está entre nós e como toda desconstrução exigirá tempo para ser perlaborada e quiçá absorvida. Gostei muito do evento e do modo como você o retratou. Te abraço

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