Sobre um Tiroteio
Lucas Ribeiro de Arruda, aluno do curso de Psicanálise do Sedes,
apresenta hoje no blog uma crônica que nos aproxima do universo do
acompanhamento terapêutico. Confiram!
SOBRE UM TIROTEIO
MARÇO
2022
1.
PREÂMBULO
Um
homem corre perigo. A todos isso ocorre menos a ele. Ele está em perigo
justamente porque isso não ocorre a ele. Me contrataram para salvá-lo. Mas
descobri que para salvar é preciso se arriscar. No mundo das existências não
tem corda para lançar para alguém no precipício. É preciso correr o perigo
juntos. Qual exatamente é o custo disso?
Sou
um tosco, pensei, na primeira vez que vi o homem. Oi, eu comecei.
“Oi”
é o cumprimento mais usado no início de qualquer conversação. Parecia que eu
estava dando tiros no escuro. O homem sabia não responder. Vim aqui para
pensarmos algo, eu disse. Não dá, estou muito ocupado, falou esse homem sentado
que não deixava de fitar um ponto a sua frente. Um homem sentado na poltrona é
um homem sentado na poltrona é um homem sentado na poltrona, disse um dos mais
velhos ao lado. A energia que não vejo nele é equivalente a toda a energia que
gira em torno dele.
Quem
nunca levou um tiro? Disse o parente que me contratou. Ele ter que pagar para
mim era o tiro que ele recebia? Ou o tiro era como uma frustração antecipada de
que eu iria falhar? Ou seria o tiro fatal em seu próprio parente? Ele sempre me
paga a mais. Seu trabalho é impossível, disse ele para mim. Por isso que me
paga a mais? Qual o valor do impossível? Uns trocados a mais? Tudo por um
punhado de dólares? E o preço de salvar alguém, qual é?
2.
CENÁRIO
Entro
de novo no terreno do homem. Meses já se passaram daquela mesma coisa. A
comunidade da vizinhança fala comigo. Isso, aquilo, ontem, hoje. Conheço mais
familiares. A prima do homem não escuta, disseram. Mas muito atenta, isso com
certeza. Talvez ela não escute nada do que deveria escutar. Ou talvez ela
escute muito, quem sabe. O som estridente do aparelho da sala revolve os tímpanos
ainda vivos do homem. E percebo, que a vida. A vida vai ficando surda. Me
oferecem um pedaço de qualquer coisa. Acho que como. Até que entrei na surdez
do homem. Não ouvia nada. Ouvia só um rugido inexistente.
Não
tenho irmãos, o homem disse, só tem quem fale que é meu irmão, e sou dono disso
tudo aqui. Um conhecido dele iria dizer mais tarde que esse homem não tinha
nada dentro, só o mal. Sempre me falaram o horário errado para eu encontrar o
homem. Toda vez aquela sua prima continua me tomando por outra pessoa, toda vez
que apareço. Fui percebendo que um tiroteio se anunciava, mas o que via era só
um jogo de esconde-esconde. Mas quando acertaram finalmente em cheio minha
bochecha falante, na minha atual surdez, só conseguia ouvir o homem do meu lado.
Em seu silêncio escolhido sempre olha para frente. E mesmo se eu cruzar sua
vista com meu corpo, ainda não corto seu olhar-horizonte.
3.
O
TIROTEIO
Metal
não é só arma, depois de um ano foi a primeira coisa que o homem disse para
mim. Todo metal frio, morto e esquecido, como essa cumbuca, como os carros, ou
sua cara de tacho, ele disse, tem eletricidade, potência. A loucura, pensei.
Mas o homem disse que iria provar, que mediria a energia dos metais. Outro dia
eu levei para ele um medidor. Foi o primeiro dia que saímos para fora de seu
trono. Procurando velharias de metal na rua. Entre carros, pedestres e
pedregulhos.
Ficávamos
vendo o ponteiro, eu me esgueirando quase para fora de seus ombros, tentando
não perder o movimento sísmico do medidor. Ficávamos vendo o ponteiro não se
mexer. Mas eu já estava surdo. Acreditei, todo metal frio e esquecido, guarda
uma energia secreta. O homem não é uma cápsula. Que existe para se esconder. O
homem é energia, entendi. Talvez o único metal sem energia seja mesmo somente a
arma de um tiroteio.
Uma
bala não é uma bala. Uma bala é um metal, revelou ele. E todo metal, pelo
menos, uns amperes têm. Quer ver?
4.
O
RESGATE
Comecei
a recordar de sussurros no silêncio da noite. Às vezes quando saía da casa do
homem, queria chorar em algum canto. Outras vezes sentia raiva. Até entender
que ele era um homem sem continuidade. Um homem que não ligava um ponto no
outro, para formar uma linha. Era um homem sem projeto, um homem anti-projétil.
Que não se lançava, que não se atirava. Era o próprio homem ponto, homem que
não queria atirar nos outros. Um ponto que não existia. Ou um ponto do tamanho
do mundo? Comecei a desejar ser como ele. Observar as árvores como ele observa,
ver as formas do vento. E guardar tudo para mim, o que não é do mundo, esse
mundo de cápsulas em toda sarjeta. Ele vive sim numa cápsula, cápsula ponto. Já
cheguei a amar ele, já cheguei a odiar ele.
Já
faz dois anos que o conheço.
Poderia
eu estar falando de um gângster ou um criminoso. Ou de um líder corrupto. Ou de
alguém que detém muito poder. Mas estou falando de um esquizofrênico crônico
muito embotado, onde parece que nada acontece em sua vida. Poderiam dizer,
vendo de fora: que trabalho monótono! Mas deixo testemunhado o que vivo com ele
a partir de sensações contratransferenciais. O que é essa ameaça de um tiro?
Todos em volta como sujeitos-projéteis. Sujeitos adjetos?
Perfuração
que não é a da intimidade e esse eterno jogo de esconde-esconde.
5.
O
INVISÍVEL MOVIMENTO DE UMA BALA
Em
um tiroteio em que é sempre melhor ficar bem escondido, corro o perigo junto
com ele. O esforço é transformar o que é tiro na própria energia dos metais
parados. Energia essa, que é a do próprio homem parado.
O
perigo de me jogar em direção a outra pessoa, sem ter corda que me resgate. Me
jogar em busca de uma cápsula inexistente, na esperança de que quando a achar,
não seja mais cápsula, mas seja arma. Arma como um metal. Que não mata, mas
movimenta, instrumento. E nós entre governos e desgovernos.
Não
seria assim com todos nós, em nossas buscas por nossas identidades? Uma que
atira, que passa por cima, e outra fluida, que procura formas? O masculino não
estaria nessa fase glacial, como a energia desse homem, lutando por alguma
movimentação que não seja a rigidez de uma bala?
Sim,
há energia em todo ser que se julga parado: movimento.
Lucas Ribeiro Arruda é
psicólogo pela PUCSP, ex-aluno do Curso Conflito e Sintoma e atualmente no
terceiro ano do Curso de Psicanálise do Sedes Sapientiae. Trabalha como AT no
Instituto A Casa.
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